DIÁSPORA

OPINIÃO | Quando a rádio falava em português – Um olhar histórico, uma leitura pessoal, por Diniz Borges

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A rádio em língua portuguesa sempre desempenhou
um papel importante junto da nossa comunidade.
Liduíno Borba in “Miguel Canto e Castro-Saudades da Nossa Terra”

Cheguei aos Estados Unidos há quase 55 anos! Tinha 10 anos quando no sombrio 26 de outubro de 1968 aterrei no aeroporto de Fresno, na Califórnia, proveniente duma jornada de vários dias, feita em dois barcos e três aviões. Poucos dias depois de chegar a terras americanas, estava eu com os meus pais, em casa dos meus tios, ouvindo o nosso nome na rádio de língua portuguesa. Era a voz do saudoso Joaquim Morisson, emigrante da ilha do Faial, locutor da rádio no centro da Califórnia e agente de viagens e assuntos de emigração, a dar‑nos as boas-vindas à comunidade portuguesa do centro da Califórnia. Apesar de já na minha ilha gostar de ouvir o Rádio Clube de Angra, fiquei a partir daquela tarde de domingo (não por ouvir a saudação de boas‑vindas), um ouvinte assíduo da rádio em língua portuguesa. Aliás, recordo‑me vivamente, que os meus sábados à tarde e domingos (praticamente durante todo o dia) eram passados junto ao recetor a ouvir aquelas vozes que nos transmitiam uma amizade especial. É que a rádio em língua portuguesa no centro da Califórnia, toda ela então feita por produtores independentes, que compravam horas às estações americanas, era, sobretudo, uma rádio que comunicava diretamente com os ouvintes. Uma rádio que aproximava as comunidades. Uma rádio que mantinha a língua portuguesa viva.  Foram as avós e as rádios em língua portuguesa as grandes impulsionadoras da língua portuguesa na Califórnia.

A história da rádio portuguesa no centro deste estado norte-americano é extremamente interessante. Foi no ano de 1937, como está documentado no excelente livro “A Presença Portuguesa na Califórnia” do Professor Dr. Eduardo Mayone Dias (a quem devemos a histórias dos portugueses na Califórnia), que o casal Inácio (Enos) e Margarida Santos começaram o primeiro programa de rádio em língua portuguesa nesta parte do estado. O programa que teve como primeiro nome Recordações de Portugal, mudou, pouco depois para Programa Portugal e continuou a emitir semanalmente até meados da década de 1990, já então na posse de Joe Silva. O Programa Portugal iniciou as suas emissões antes de muitos açorianos, na sua terra de origem, terem a sua rádio, já que o Rádio Clube de Angra e o Clube Asas do Atlântico começaram as suas transmissões na década de 1940.  Se durante alguns anos o casal Santos dirigia o único programa de rádio em língua portuguesa nesta zona.  Pouco mais de uma dúzia e meia de anos mais tarde outras vozes começaram a ouvir-se nas ondas hertzianas do mundo americano: Maria Sousa com Ecos dos Açores, Ana Calado com Melodias de Portugal, George Ázera com A Voz da Lusitânia, Joaquim e Amélia Morisson com Ecos do Vale, Joaquim Correia Sr. com Estrelas de Portugal, Casey Santos com Hora de Recreio e Idalina Melo com Aurora de Portugal, António Carvalho com Portugal Terra de Fé e Lúcia Noia com Sol de Portugal, este mudado em 1974 (depois da Revolução dos Cravos) para Portugal Novo. Todos estes programas iniciados em alturas diferentes, mas todos produtos das décadas de 1950 e 1960.  Já na década de 1970, aparecem Eduardo Paim com Amor da Pátria, Pedro Miranda e Manuel Simões com Jardim dos Açores, mais tarde só com Pedro Miranda e rebatizado como Pérolas dos Açores, Maria Fernanda Simões com Saudades da Pátria, Diniz Borges com A Voz do Emigrante, Aires Madruga da Silva e Carlos Reis com Voz Portuguesa, este tendo continuação apenas com Aires Madruga da Silva e João e Ana Maria Morisson com Portugal na Califórnia.

Foram estes homens e mulheres da rádio que para o bem e para o mal, serviram a nossa comunidade durante vários anos, e eu diria muito mais para bem. Foram estas vozes que os portugueses e luso‑descendentes se habituaram a ouvir, quer nas manhãs de cada dia, o caso de Casey Santos, Lúcia Noia e mais tarde Carlos Reis e Madruga da Silva, quer aos sábados e domingos, os dias nobres para a rádio portuguesa onde cada locutor(a), com o seu próprio estilo, comunicava com os ouvintes. É que esta era uma rádio de afetos, de amizades, de dedicação, de sentimentos e duma comunicabilidade intensa. Os locutores da rádio em língua portuguesa eram figuras queridas, convidadas para as festas pessoais, desde os casamentos às matanças de porco. E esses convites tinham reciprocidade através do microfone, ou seja: as famílias esperavam pelo disco que lhes era dedicado, pela oferta musical, pelo anúncio que solidificava a amizade entre o locutor e as famílias da comunidade. Depois havia preferências! Havia quem adorasse o casal Morisson, Joaquim e Amélia, (confesso que era um desses admiradores) particularmente pelas célebres “Lições do Joaquim”, pequena rubrica semanal em que o casal, ela como professora, e ele como aluno, davam‑nos uma série de lições de gramática, de cultura, de crítica social e política; havia quem gostasse da voz suave e melodiosa de Inácio Santos, quem preferisse as notícias locais dadas pelo George Àzera—um dos poucos a dar notícias do mundo americano local; quem preferisse a leitura de poesias que Lúcia Noia apresentava, e que tenho de reconhecer que com os meus 11 e 12 anos, mesmo sem muitas vezes perceber o poema, adorava ouvi‑la. Depois quem gostava de desporto esperava para ouvir as notícias que o Eduardo Paim ia dar ao programa Portugal Terra de Fé, até que mais tarde este também começasse o seu próprio programa. Aliás, foram estas pessoas, e com o empurrão do amigo e também locutor da rádio de então Manuel Simões, regressado aos Açores, que em finais de 1976, com 18 anos, comecei o programa A Voz do Emigrante.

Foi esta gente, muitos antes de haver as chamadas organizações mais viradas para a cultura, mesmo a cultura popular, como por exemplo o Tulare‑Angrense que começou no ano de 1964, a Tulare‑Angra do Heroísmo Sister City Foundation em 1967, os programas de língua e cultura portuguesas nas escolas secundárias de Tulare em 1976, o Centro Cultural de São João Batista em Hanford no ano de 1980, a Filarmónica Portuguesa em 1981 ou o Centro Português de Evangelização e Cultura no ano de 1986, que no sul do Vale de São Joaquim preservava e promovia a língua e a cultura portuguesas. Era a única voz pública que tínhamos. Eram também os fomentadores dum vasto calendário social.  As festas com que celebravam os aniversários dos respetivos programas eram acontecimentos marcantes. Pelo preço módico e simbólico de $1 cada, os salões portugueses enchiam‑se. Havia música portuguesa, a massa sovada, os petiscos da nossa gastronomia tradicional e a comunidade, numa era mais simples, com menos eventos sociais, vestia‑se com a sua roupa domingueira e lá estava em vulto. É que as “festas da rádio” revestiam-se como autênticos bailes de gala.

Hoje a rádio em língua portuguesa no sul do Vale de São Joaquim, na Califórnia, está muito diferente. A mudança começou na década de 1980, precisamente, no ano de 1980, com o programa Rádio Aliança 80. Um programa diário, uma aliança entre três locutores: Joe Silva, Madruga da Silva e Diniz Borges.  Primava pela diferença e pelo espaço noticioso. A partir daí a rádio foi‑se transformando.  Nos finais de 1981, Joaquim Correia Jr. e Diniz Borges fundaram, com a presença do locutor Henrique Dédalo, a primeira estação de rádio de circuito fechado na Califórnia: Rádio Clube Comunidade. Depois do desaparecimento desta rádio, circunscrita a quem queria pagar uma cota mensal, e com a recusa das emissoras americanas de permitirem a presença dos programas independentes em línguas estrangeiras, construi-se uma aliança, e num formato mais abrangente, nasceu outra emissora de circuito fechado, a KTPB que foi a primeira estação de rádio na Califórnia a transmitir 24 horas por dia em língua portuguesa. Iniciada em Novembro de 1988—o primeiro dia de transmissão foi o dia das eleições presidenciais nos EUA, acontecimento que a estação transmitiu ao vivo com comentários sobre o acontecimento—  durou até 2005, ano em que cessou a suas transmissões porque a maioria dos programas haviam também cessado e porque pouco depois da KTPB começar as suas emissões, a KIGS, estação na onda média, começou a transmitir em português, tornando o projeto do circuito fechado, um projeto com poucas probabilidades já que tinha de competir, diretamente, com uma estação sem restrições de audição.

Hoje, dos programas independentes supracitados nenhum sobrevive, até porque os locutores dessa geração, a vasta maioria já faleceu.  Hoje, a rádio já não faz as suas festas, e o calendário social dos emigrantes dos Açores e açor‑descendentes (estes segundos a vasta maioria da comunidade local), está repleto de acontecimentos, alguns cada vez menos frequentados porque a assimilação e a integração ocorreram e a comunidade fica mais americana e menos portuguesa, em termos de comunicação, mas, definitivamente.  não em termos de orgulho da sua identidade, da sua ancestralidade.

Em 2019 o Instituto Português Além-Fronteiras-PBBI da universidade estadual da Califórnia em Fresno, com o seu Azorean Diaspora Project, produziu, de segunda a sexta, uma hora de programa de rádio em língua inglesa (com música em português) numa estação multicultural de Fresno.  Eram 60 minutos, em cada dia útil, dedicados às vivências açorianas no cento da Califórnia, com segmentos de poesia, gastronomia, história, entrevistas e painéis.  Pouco a pouco o Portuguese-American Hour tornou-se em menos de dois anos, um dos programas mais ouvidos da estação multicultural de Fresno, a KGST. Infelizmente, como aconteceu tantas vezes na nossa rádio em ondas hertzianas, a estação foi vendida e o formato multicultural desapareceu.   Estuda-se neste momento um formato para emitir um programa em inglês, sobre a comunidade portuguesa, particularmente do Centro da Califórnia.         

Dir‑se‑á, em género de conclusão, que na comunidade de hoje, no mundo da alta tecnologia, com a rádio de Portugal diretamente nas comunidades, já não há a necessidade da mesma rádio, apesar de haver quem ainda insista.  Não haja dúvida que é essencial que a comunidade, apesar da americanização e das novas plataformas, tenha a sua própria voz, em português, mas também em inglês.  Quer nas rádios tradicionais, quer nos podcasts.  

Há ainda que registar o papel dos programas de rádio independentes na fomentação da língua e cultura portuguesas e no estabelecimento de pontes que ligavam o emigrante à sua terra de origem, assim como a vivacidade que davam a uma comunidade em construção. Sem eles, sem a sua ousadia, a sua coragem, a sua dedicação, a comunidade portuguesa/açoriana seria diferente. Foram os locutores dos programas de rádio que mantiveram, durante muitos anos, a chama da portugalidade acesa em terras do centro da Califórnia. Daí que há que contar essa história e há que nesta, e noutras comunidades, prezar‑se a nossa memória coletiva.  Há que narrar‑se o nosso património em terras californianas, o qual seria muito diferente se não tivéssemos tido as rádios locais de língua portuguesa.  E há que registar essa história, conscientes que foi um tempo que não volta, e se não cuidarmos do futuro, através de alguma ousadia no presente,  a comunicação social de expressão portuguesa na Califórnia desparecerá.