DIÁSPORA

OPINIÃO | Diálogo de e para todas as Gerações, por Diniz Borges

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A voz da poesia tem
a cor do “vinho novo.”
Álamo Oliveira do poema v.n.

            Um dos prazeres da vida é ler e reler um bom livro.  Há outros, evidentemente, mas a leitura é um dos raros aprazimentos da solitude.  Pegar num livro e retirar-se para o mundo do imaginativo é refugiar-se num outro cosmos, que alivia o isolamento que cada vez mais afeta o ser humano do pós-modernismo, mesmo, e especialmente, quem está rodeado de gente por todos os lados e a toda a hora.  É que a literatura pode não tornar-nos melhores cidadãos, como escreveu o crítico literário norte-americano, Harold Bloom, mas transporta-nos para uma sublimidade única, porque, parafraseando Pablo Picasso, só a arte pode, efetivamente, varrer o pó que a repetição do quotidiano nos coloca na alma.

            Para que se leiam sentimentos humanos em linguagem humana tem de se ler, como escreveu Harold Bloom: humanamente, ou seja, o leitor com o seu todo.  É que, conforme nos explica o mesmo crítico norte-americano, todo o leitor é mais do que uma ideologia, inconsequentemente das suas convicções, e para usufruir a obra literária terá, indubitavelmente, de transportar para o ato da leitura o seu todo—corpo e alma.  Dir-se-á que o criador literário falará apenas à parcela que o leitor quiser trazer para a leitura.  Daí que quanto mais o leitor trouxer para um livro, mais esse livro lhe dirá.  E foi, precisamente, o que me aconteceu com a coleção de poesia de Álamo Oliveira, poesia da qual sou leitor há mais de 30 anos e que agora está reunida em Versos de Todas as Luas, publicado pela editora Companhia das Ilhas.     

            A língua portuguesa, recheada de verdadeiros criadores no mundo literário, tem no arquipélago dos Açores, alguns dos seus mais empenhados escritores, esmerados cultivadores da palavra, cuja escrita, como, todas as obras literárias, coloca-nos, entre a verdade e o sentido, num espaço cosmológico específico onde, tal como escrevo conceituado escritor de língua inglesa, William Blake: devaneamos e choramos.  E entre esses criadores, está um dos mais prolíferos e profícuos destas ilhas, deste país e da língua portuguesa: José Henrique do Álamo Oliveira

            Se acreditamos que a poesia está muito mais perto da verdade do que a história, como nos disse Platão, a obra do poeta, agora reunida nesta magnifica coletânea, é um indício translúcido de um percurso que começou na década de 1960 e onde estão desvelados alguns dos dilemas, dos sonhos, das vivências, mais genuínas, do povo destas ilhas.  Desde A Minha Mão Aberta, em 1968 que temos na obra deste poeta não só o percurso de um artista comprometido com o seu povo e a sua terra, porque e à semelhança do que escreveu algures o conceituado literato e naturalista do princípio do século vinte nos Estados Unidos, Ralph Waldo Emerson, “o povo e não a universidade deve ser a escola do escritor”, mas, temos, sobretudo, o itinerário e as utopias dum arquipélago, dum povo, duma cultura.  Todos os temas pertinentes à história do povo destas ilhas, o que ficou, e o que, como ele próprio o disse “por necessidades da barriga” teve de sair destes pedaços de basalto, estão, intimamente, insculpidos na poesia de Álamo Oliveira.  É que ainda acredito, veementemente, no papel ativo da literatura na vida dos povos e das sociedades: assim o disse o escritor espanhol Camilo José Cela: a literatura também serve como denúncia dos tempos em que se vive.

            Versos de Todas as Luas, a antologia poética do escritor do Raminho e do Mundo, mostra-nos que um poeta não só escreve com as suas ideias, mas também com os seus instintos, com a sua intuição, com todo o seu interior, e que todo o criador literário é essencialmente alguém que entorta a realidade, baseada numa experiência ou obsessão pessoal, e apresenta essa distorção numa forma tão persuasiva que é compreendida pelo leitor como uma descrição realista e objetiva da realidade.  O que o célebre inventor do cubismo, Pablo Picasso o definiria como: “toda a arte é uma mentira que nos diz muitas verdades.” 

            Nesta coleção de poesia de Álamo Oliveira, o leitor conhecedor da sua obra poderá ter o prazer único da tal releitura, tendo a certeza que irá descobrir novos matizes e outros mundos.  Enquanto o leitor que desconheça a sua poesia (haverá mesmo alguém nos Açores que desconheça?) poderá ter o prazer da descoberta de uma voz poética que é também a sua voz.  De um mundo em que estão todos os mundos e todos os mistérios destas ilhas.  Onde estão as inquietações da justiça e o grito da liberdade.  É que os poemas Álamo Oliveira são pedaços dum coração que há muito se dedicou à arte, para bem da humanidade, e para ela vive.  A arte é a amante que o acompanha.  A musa que o detém refém.  A dona da sua alma, da sua essência.

            Uma palavra ainda sobre o ofício da escrita.  O escritor estadunidense Ernest Hemingway, falando sobre a solidão da arte de escrever, disse: “as organizações de escritores podem paliar a solitude do escritor, mas não beneficiarão a sua escrita.  Pode crescer em estatura pública e despir-se de algum isolamento, mas o seu trabalho poderá deteriorar-se.  Porque o escritor trabalha só, e para o bem ou para o mal, terá de enfrentar a eternidade ou a falta de eternidade, todos os dias.”  E é essa solidão, incompreensível para muitos, que o artífice da escrita necessita a fim de alimentar a sua reflexão, para que possa interiorizar o mundo que o rodeia, e eventualmente, expelir a sua produção.  É que toda a obra literária é uma luta, e Álamo Oliveira, conhecedor perspicaz do cânone literário ocidental, contém na sua poesia elementos fundamentais para uma obra de arte que ora inclui a ironia subtil de Cervantes e Shakespeare, ora a agressividade de Dante e Milton, ou o que Natália Correia sobre os Quinze misteriosos mistérios disse ser uma “invulgar dádiva de poemas de um poeta açoriano à lírica portuguesa.”    

            Ler Versos de Todas as Luas, a poesia completa de Álamo Oliveira, é obrigatório para quem queira compreender a açorianidade.  Poeta que “sem raiva” continua “a lançar sementes / nas terras do seu país.”  

            *título inspirado de um verso do poema memória 2 de Álamo Oliveira.