OPINIÃO | Casa do Tempo: Um Cântico Atlântico da Açorianidade no Sul do Brasil, por Diniz Borges

“Lélia Pereira Nunes é uma açoriana de 276 anos – bem conservada, como diria Onésimo – que honra e orgulha o sangue insular nas duas margens do rio Atlântico.”
— José Andrade, no prefácio.
Na enroscada do tempo que dança entre as ilhas e o continente, sopra o vento do Divino Espírito Santo, cruzando mares com coroas, promessas e saudades. A Casa do Tempo não é apenas um livro — é uma travessia. Um altar de memórias onde os fios invisíveis da história tecem, entre as pedras das ilhas e a areia das praias catarinenses, uma identidade viva, vibrante e em constante movimento.
Neste seu novo livro Lélia Pereira Nunes transforma a experiência da escrita em ponte viva entre os Açores e o Sul do Brasil, especialmente Santa Catarina. Publicado recentemente, no Brasil e nos Açores, para marcar os 275 anos do povoamento açoriano em Santa Catarina e os 350 anos de Florianópolis, a obra é uma coleção de 36 textos entre ensaios, crónicas e memórias que celebram o elo indissolúvel entre duas margens do mesmo mar. Na introdução, a autora convida-nos a embarcar numa jornada atlântica: “Casa do Tempo circula livremente entre Santa Catarina e Açores […] construída com o cromatismo do sentir” (p. 19). Esta afirmação revela-nos, clara e inequivocamente, o tom da obra: mais que um inventário de tradições, trata-se de uma travessia emocional e identitária.
É impossível ler-se Casa do Tempo sem nos comovermos com a beleza e intensidade da escrita de Lélia Pereira Nunes. A sua prosa é mesclada com emoção, conhecimento e lirismo, num tom confessional que une a força da memória à delicadeza da palavra: doçura que os brasileiros sabem elaborar como ninguém. Na introdução, a autora diz-nos: “A distância entre duas margens é, muitas vezes, ilusória. […] Alguns aurífices da palavra […] são também pontes” (p. 19). É exatamente isso que a escrita da minha amiga Lélia Pereira Nunes faz: constrói pontes de afeto e identidade.
Com rara sensibilidade, ela escreve que “o tempo tece sinas e fortunas e perpetua memórias que se misturam e, salvaguardadas em Casa do Tempo, são compartilhadas com emoção, empatia, seriedade” (p. 11). Como se testemunha, desde as primeiras linhas deste livro, a Lélia domina o gesto de narrar como quem borda, costurando passado e presente, entrelaçando os fios da história coletiva com os da sua biografia. Numa linguagem, que é, simultaneamente jornalística, literária e antropológica, a autora preserva e revela a essência da açorianidade: “Textos bastante heterogêneos […] mas especialmente sobre o que mais nos une – Santa Catarina e os Açores, sempre com os olhos abertos para as nossas mundividências” (p. 22).
A identidade cultural herdada dos “casais açorianos” está presente em cada esquina da Ilha de Santa Catarina. Lélia Pereira Nunes dedica-se a desvelar essa herança com paixão e precisão, como no ensaio “Patrimônio Cultural de um Povo – A Literatura de lá para cá e de cá para lá” (p. 27), onde afirma que “construímos uma grande passarela de convergências” entre o ontem e o hoje. A literatura, nesse contexto, é celebrada como manifestação viva da açorianidade. Ela cita autores como Cruz e Sousa, Salim Miguel, e Pedro da Silveira, mostrando como o imaginário insular ainda pulsa na produção cultural catarinense. A cultura literária é vista como espelho da alma açoriana em terras brasileiras: “o imaginário histórico-cultural do mundo insular dos Açores permaneceu entre nós e ainda se sustenta” (p. 28).
Um dos fios condutores mais potentes da obra é o culto ao Divino Espírito Santo, tratado com profundidade em diversos textos, entre eles “É o Espírito Santo que chega para te abençoar!” (p. 43). A autora narra com emoção a celebração que ocorre em catorze comunidades da Ilha de Santa Catarina, ressaltando seu papel como “elemento unificador de socialização e de identidade cultural tal qual nos Açores” (p. 35). A Festa do Divino é descrita como um ritual de pertença, onde a fé e a cultura se fundem. A memória da festa revive não apenas a religiosidade, mas também a ancestralidade coletiva: “A abertura do Ciclo do Divino […] nos faz sentir a alegria e o respeito da nossa gente por uma tradição que retrata o sentido de pertencer a uma herança cultural com 275 anos” (p. 43). O Espírito Santo é, assim, o elo invisível que continua abençoando as travessias entre ilhas e continentes.
Em textos como “Agora, conhecemos!” (p. 31) e “Açores, Ilhas do Espírito Santo” (p. 177), Lélia amplia o conceito de “açorianidade” para além da geografia, tornando-o um sentimento, uma vivência afetiva transatlântica. A campanha “Viva Açores – Conhecer é viver!”, curada pela própria autora, é exaltada como marco do reencontro identitário entre os açorianos do Brasil e suas origens europeias. A autora celebra esse reencontro simbólico como uma “ponte de mão dupla, deixando passar conhecimentos, emanar sabedoria, emergir afetos e pensar o futuro” (p. 31). O projeto gerou documentários, publicações, intercâmbios e eventos educativos que revitalizaram laços históricos muitas vezes esquecidos, como evidenciado também em “Espírito Santo unificador em terras de São Paulo” (p. 127), que revela a presença açoriana também fora do Sul, em um Brasil plural.
A força da açorianidade revele-se também na sua capacidade de se reinventar. Em “A bordo do Jezus, Maria, Jozé – Como teria sido?” (p. 139), Lélia revive a viagem dolorosa dos primeiros casais açorianos, destacando o sofrimento, a coragem e o sonho que motivaram a travessia. “Fico a imaginar o que teriam sido aqueles oitenta dias a bordo: os padecimentos sofridos e as perdas humanas” (p. 14). Esta evocação do passado projeta no presente a força de um povo que resiste e se adapta. Na outra margem, os Açores também reconhecem esse Brasil açoriano. Em “Transatlântico: migrações, açorianidade & interculturalidade” (p. 157), José Andrade defende que o arquipélago deve se ver como “um arquipélago transatlântico […] no centro do mundo”. A reciprocidade do olhar – o Brasil nos Açores – é um gesto de pertencimento mútuo, que a obra defende como essencial.
A “Casa do Tempo”, que dá nome ao livro, é mais do que uma metáfora. É um lugar de memória viva, como explica a autora ao falar da Casa do Tempo da Ilha do Corvo, nos Açores: “Ali, na Casa do Tempo estão os primeiros 300 anos da sua história. Naquele dia, decidi que ia atrás das minhas Casas do Tempo e este seria o título do meu próximo livro” (p. 21). Cada ensaio, crónica ou memória do livro é uma pedra nessa casa simbólica. A Rua da Igreja em Tubarão (p. 56), a Lagoa da Conceição, as festas da Ilha, os sotaques, os mitos: tudo compõe esse edifício lírico, onde a identidade se refugia e se projeta. A casa é, simultaneamente, um relicário do passado e um farol para o futuro.
Casa do Tempo também se afirma como uma obra de imenso valor para a diáspora açoriana, na sua globalidade — seja ela residente no Brasil, nos Estados Unidos, no Canadá ou nas Bermudas. Ao reunir histórias, símbolos, tradições e afetos transatlânticos, Lélia Pereira Nunes oferece um caminho de reencontro entre os descendentes açorianos e sua matriz cultural. Ao dar corpo, cor e voz à açorianidade em terras do sul do Brasil, o livro serve como um espelho para qualquer açoriano da diáspora, independentemente da latitude ou da distância geracional. A autora escreve com plena consciência desse papel: “Era preciso fazer mais, dar a conhecer os arquivos da memória coletiva ‘de cá’, fruto da grande travessia dos que nos antecederam […] bem como os arquivos da memória ‘de lá’, dos que ficaram e pouco ou quase nada sabem sobre o estado de Santa Catarina” (p. 20). Essa ponte afetiva, construída com palavras, é essencial para uma diáspora muitas vezes dispersa ou desconectada de suas origens. Por isso, Casa do Tempo é também um convite a um novo domínio, um apelo para que os açorianos do mundo se reconheçam uns nos outros — não apenas como lembrança, mas como continuidade viva, intercultural e mutuamente enriquecedora.
No fulgor das coroas, no azul das rendas, no compasso das bandeiras, a Casa do Tempo continua a erguer-se — viva, telúrica, oceânica. Neste livro, Lélia Pereira Nunes não só resgata uma história, mas convoca-nos a habitá-la, como quem regressa à casa da infância. A casa é feita de palavras, de fé, de travessias, de lembranças que o mar jamais apagou. E quando, das praias do Pântano do Sul ou do miradouro da Lagoa do Fogo, alguém cantar “Viva o Divino Espírito Santo!”, o eco dessa voz será o sopro de uma açorianidade que se recusa a desaparecer — e que, graças a obras como Casa do Tempo, renasce em cada leitura, em cada celebração, em cada reencontro entre o Brasil e os Açores, entre os Açores e a sua Diáspora. Em Casa do Tempo, a açorianidade, abençoada com muitas nuances e intertextualidades, ergue asas feitas de memória e sonho, e, com elas, atravessa o Atlântico não por um mar que nos separa, mas por uma ponte azul que une ilhas e continentes, passado e futuro, numa dança eterna de culturas que se reconhecem e se renovam no voo sagrado da identidade.