DIÁSPORA

OPINIÃO | Tempos e Espaços: refletir e agir para bem da diáspora, por Diniz Borges 

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“A nossa gente é assim: sabe sempre acumular
e economizar energia e calor humano…”

in Cartas da América, Pe. Xavier Madruga

Do baú das recordações, esta crónica contém dois excertos de dois humildíssimos escritos que foram apresentados e publicados em outros espaços e outros tempos, mas que, para bem ou para mal, ainda são relevantes e, com renovada urgência.  O primeiro fez parte duma apresentação feita na cidade de Toronto, no Canadá, no XV Ciclo de Cultura Açoriana promovido pelo saudoso jornalista Manuel Oliveira Neto, no agora longínquo ano de 2001.  Infelizmente o apelo feito há duas décadas precisa ser repetido e daí que o incluo, com alguns ajustamentos, como é óbvio.   O segundo extrato é duma alocução feita em maio de 2004 na (desaparecida também há quase duas décadas) Festa do Emigrante em Tulare, na Califórnia.  Já lá vão 19 anos.  E também fala da comunidade que somos e da reflexão que ainda continuamos a precisar dos passos que ainda não demos.  Ambos estes escritos foram publicados no livro: Á Sombra da Saudade, se bem que de uma forma diferente e sem a reescrita, feita para esta crónica.  Como nos disse o escritor americano John Updike:  “escrever e reescrever é uma procura constante do que se está a dizer.” Nestes dois eventos, ambos com vinte anos de distanciamento, nota-se como a nossa diáspora, necessita de estar em constante renovação e reflexão.  Eis, pois, essas reflexões, que ainda hoje acho pertinentes e necessárias.   

…É imperativo para os açorianos, e seus descendentes, que a língua esteja nos currículos oficiais do ensino secundário (porque é o veículo com maioríssimos números de alunos de línguas estrangeiras nos EUA) e que motivem os seus rebentos a aprenderem a língua portuguesa.  No país dos números, por muito que se queira ensinar uma língua a nível oficial, nunca acontecerá se não houver gente interessada, aulas cheias.  A língua portuguesa terá de ser vista pelas novas gerações, não como algo que se ensina unicamente num espaço fechado e muito nosso, num salão ou numa garagem, mas lá fora no seu (e também nosso) mundo americano, onde os seus colegas estão, e também, a poderão aprender.  Esse esforço só pode ser feito pela comunidade e com a comunidade.     

No campo cultural, o combate terá de engrenar a via utilizada por outros grupos étnicos.  Se por um lado queremos manter as nossas tradições, os nossos espaços, há que sacudir com o isolacionismo que ainda se vive em várias festividades açorianas na Califórnia, e em outros espaços geográficos da grande América.  Apesar, de hoje haver maior abertura para a participação de outros grupos étnicos nas nossas festividades, a qual tem sido motivada pelos casamentos multiétnicos e multirraciais, persiste-se, em demasiados casos, com a mentalidade que “isto é só nosso”, quando sabemos que a cultura é de todos, e partilhando-a com os outros grupos étnicos, apenas a enriquecerá.   

A nossa participação nas grandes manifestações sociais e culturais do multiculturalismo californiano é ainda extremamente deficitária.  Quando o fazemos, especialmente a terceira e quarta gerações, fazem-no intimamente ligados à cultura dominante, sem qualquer nuance açoriana ou portuguesa.  É que a cultura é algo vivo e não uma mera peça de museu que se traz à praça pública quando se confecionam festas ou alguém nos visita (visitas que por vezes nos dividem).  E a cultura é evolutiva, interliga-se com outras culturas, e deve permanecer ilimitada e arejada. 

Porque os emigrantes açorianos para o Eldorado americano partiram para ficar; porque há mais de cento e cinquenta anos que homens e mulheres dos Açores reconstroem as suas vidas em terras californianas; porque os Açores estão bastante distantes do pacífico; porque a nossa emigração estancou há quarenta anos; porque geograficamente estamos muitos dispersos; os açorianos da Califórnia, cuja vida coletiva está, felizmente, repleta de sucessos, particularmente económicos, têm agora que pausar e refletir a sua contiguidade no século XXI.  Seremos ou não relevantes no multiculturalismo californiano? Numericamente somos pouquíssimos, portanto terá mesmo de ser pela via cultural.

Depois da euforia dos anos setenta, e primórdios de oitenta, do século passado, durante a qual se edificou a maioria das nossas escolas portuguesas e cursos em português no sistema de ensino oficial americano, em que se criou a maioria das filarmónicas que hoje existem, os grupos desportivos, os grupos de folclore, as danças do Carnaval terceirense, os centros paroquiais e culturais, as estações de rádio em língua portuguesa (quase todas desaparecidas), e dos jornais (reduzidos a um) — agora que a Diáspora na da Califórnia (e o mesmo se dirá em outras partes) vive um novo ciclo, o ciclo dos açor-descendentes, há que cogitar em tudo o que se criou, há que refletir naquilo que já não se pode (e talvez não se deva) conservar, naquilo que é fictício, e no que ainda se conseguirá assegurar.   

O momento é de mudança na Diáspora Açoriana da Califórnia, de mudança sem complexos e com coragem ou de estagnação.  E embora o que se vive hoje no estado do Eldorado seja produto de outra época, da era antes das altas tecnologias e das comunicações rápidas, a miscigenação das nossas comunidades, de todas elas, é inevitável e acontece a passos largos.  Daí que talvez por ser uma comunidade muito antiga, salpicada com algum (ou bastante) sangue novo que agora já tem mais de meio século, possamos olhar para a metamorfose da Califórnia e dela tirarmos algumas ilações para as comunidades mais recentes e as menos dispersas: o caso de algumas zonas do Canadá, da Nova Inglaterra e talvez até mesmo da zona de Newark e Nova Iorque.  É que afinal, praticamente todas as nossas comunidades açorianas nas Américas têm sido construídas por um universo de partidas sem retornos. 

…ao celebrarmos a Herança Portuguesa, a Festa do Emigrante, queria apenas vos pedir para continuardes a serdes quem sois.  Gostaria muito que aproveitássemos esta celebração para regozijarmo-nos pelo que temos feito, o que temos construído, os pilares de uma cultura que mescla culturas, línguas e linguagens, e por isso é uma cultura viva.  Que nunca peçamos desculpa por sermos quem somos e por sermos açorianos, sim açorianos, mas diferentes dos que ficaram nas ilhas.  As nossas vidas, marcadas por convivências com outras raças, outras religiões e outros grupos étnicos, tornaram-nos, culturalmente, muito mais férteis, o que não acontece se ficarmos sempre num gueto comunitário.  E nunca esqueçamos que não somos, nem filhos de segunda, da pátria de origem, nem enteados desprotegidos, deste país de acolhimento.  Temos direitos nos dois países e devemos reclamá-los e usufruí-los.  

Queria ainda aproveitar estes breves minutos para também vos pedir que com cada celebração como esta, em que a língua e a cultura portuguesas ainda nos reúne debaixo do mesmo teto, tivéssemos um espaço para refletirmos este nosso mundo de dois mundos, o nosso viver com duas  ou várias culturas e com duas línguas (esses cada vez menos, infelizmente), e como será esta comunidade daqui a uma dúzia de anos, já que todos sabemos que a mesma, provavelmente, não será impregnada com sangue novo, isto é, novos emigrantes, pelo menos com o êxodo que tivemos nas décadas de sessenta e setenta do século passado.  

Quero acreditar que teremos força de passarmos o nosso legado cultural às novas gerações.  Quero sentir que esta amalgama de conhecimentos que temos auferido ao longo de anos dar-nos-á a habilidade que necessitamos para, ao abarcarmos com outras agregações culturais, nomeadamente a dos nossos filhos cada vez mais americanos, estejamos preparados para abraçar outros costumes, outras culturas, sem abdicarmos da nossa e permitindo que a mesma se misture cada vez mais nas instituições do grande mundo americano.  Só temos a ganhar se isso assim acontecer.  Cada passo na integração, sem diluição, é um passo certo na continuidade da comunidade para além da emigração.  Quem vos disser ao contrário, infelizmente, está apenas a alimentar o seu egocentrismo.  A nossa comunidade está a mudar e essa mudança terá de ser acompanhada pelos nossos “líderes” com uma imaginação colossal. 

Nesta comunidade, como em todas as nossas comunidades, temos, felizmente, muitos homens e mulheres com responsabilidade nos vários sectores comunitários.  A Diáapora ainda possui muitos talentos que fazem com que as nossas associações tenham cabeça, tronco e membros.  Daí que desejo saudar-vos e agradecer o que todos têm feito pela língua e cultura portuguesas, pelas nossas tradições populares.  E peço-vos para que continueis com o vosso trabalho.  Sei que muitos de vós estais cansados, sei que os aborrecimentos por vezes ultrapassam as diligências, mas há que ter homens e mulheres com vontade e aptidão para navegarmos este navio comunitário aos mares de um amanhã, que embora seja diferente, e sê-lo-á, continuará, acima de tudo, a celebrar o espírito açoriano, mas também o lusitano, e porque não, o lusófono.   

É que na nossa Diáspora reside um manancial de aptidões, de gente talentosa e criativa.  De homens e mulheres de boa vontade, que ainda sabem lutar contra a maré, não tivéssemos vindo de ilhas abandonadas pelo terreiro do paço, colocadas à mercê da sua força telúrica, que evoluíram graças aos nossos antepassados.  Por isso acredito, veementemente, que com o diálogo, o espírito crítico, o trabalho despretensioso e verdadeiramente comunitário, possamos continuar a construir uma Diáspora que ultrapasse os desafios do pós-modernismo que nos afetam e passarmos, com cuidado e com trabalho, não só o nosso legado cultural, mas, a ferramenta e a abertura para que os filhos, netos e bisnetos dos emigrantes possam construir a sua própria Diáspora e a sua forma de estarem ligados à terra dos seus antecessores.