DIÁSPORA

OPINIÃO | Emigrante? Sim, com muito gosto! Por Diniz Borges

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A pátria somos nós, a nossa pátria é feita de todos
os mundos que entram no nosso mundo.
Onésimo Teotónio Almeida in L(USA)Lândia: a décima ilha

Acabo de ouvir uma frase que pensava estar no esquecimento e que tinha sido produto de um tempo e de um lugar.  Infelizmente não foi.  Há dias, escutando uma intervenção sobre as comunidades portuguesas, ouvi esta ressuscitada frase: “eu não gosto do termo emigrante, porque acho que não são emigrantes, mas sim portugueses a residir no estrangeiro.”  Lamento, mas eu sou emigrante, os meus pais foram emigrantes, os mais avós maternos foram emigrantes (dos poucos que regressaram à sua terra), os meus dois rebentos são filhos de emigrantes e os filhos deles, netos de emigrantes.  Somos, com muito orgulho, uma família de emigrantes.    Aos dez anos de idade, os meus pais tomaram a decisão de saírem da sua ilha e tentarem nova vida nos Estados Unidos da América.  Emigraram para o “melting pot” de então, hoje, felizmente, mais um mosaico humano.  Aqui estou há 54 anos, e apesar de ter vindo muito novo, e da minha formação ser quase toda americana, sou, como muitos outros homens e mulheres, um emigrante português, dos Açores, com dupla nacionalidade, que vive, trabalha, chora e ri, em terras americanas. 

            Não tenhamos receio de nos identificarmos como tal.  Não vejo, nem nunca vi, ser-se emigrante como algo pejorativo ou ignominioso, mesmo na rebeldia da minha juventude quando queria ser americano.  Por necessidade ou por opção, ser-se emigrante é conhecer-se algo mais, é ir além de—com toda a carga emocional e todos os custos que esse, ir além de, contém.  Se a emigração por vezes é um drama, e para muitas famílias açorianas, foi isso mesmo, não tenhamos hesitação ou embaraço de admitirmos que fomos ou somos parte desse drama.  O rótulo de “portugueses residentes no estrangeiro” não nos retirará nem um milímetro desse percurso, nem transformará nenhuma das nossas realidades de povo outrora dividido entre duas terras, duas línguas e duas culturas, mas que hoje, particularmente nos EUA e no Canadá, vive harmoniosamente com: duas línguas, duas terras e várias culturas. 

            Nós emigrantes, e até mesmo luso-descendentes mais ligados à vida comunitária, temos sido bastante submissos, aceitando todas as etiquetas que o efémero momento político, ou os adentes do mesmo, nos queiram colocar.  Acho que não deveríamos permitir que nos continuem a tapar o sol com a peneira.  Penso que não seria má ideia assumirmos a nossa condição de emigrantes e que isso de “portugueses residentes no estrangeiro” é apenas semântica oportunista e completamente despida de qualquer reflexão.  É que mesmo a mais primária das cogitações permitir-nos-á chegar à conclusão de que, nem só o termo emigrante não é ultrajante, como é mais do que óbvio que o ato de emigrar transforma-nos.  É também, um ato de coragem.   Daí que não podemos ficar como meros “portugueses residentes no estrangeiro.”  Nem tão pouco esse termo coaduna com a Diáspora que somos. 

Quem um dia saiu da sua terra e agora faz vida num outro país, viveu uma transformação e quantos mais anos ficar nessa condição de emigrante (o que para a maioria dos que emigraram dos Açores para o continente norte-americano significa o resto da vida) maior será essa metamorfose.  Não tenhamos dúvidas.  E são essas nuances que contribuíram e contribuem para um Portugal universalista, para os tais Açores de Mil Ilhas (terminologia de Rui Faria da AE Azores), para a açorianidade como como conceito mundial. 

O nosso país de origem não precisa de “portugueses residentes no estrangeiro” a trabalharem e a viverem em guetos de pequenas e grandes cidades do mundo, enquanto enviam as suas receitas (que não são as mesmas do passado) para a terra que os viu nascer.  O nosso país necessita sim de emigrantes portugueses, e luso-descendentes, conscientes da sua condição de cidadãos de duas pátrias, que participam ativamente nos destinos das mesmas e que contribuem, para a miscelânea cultural que é este nosso mundo do pós-modernismo.

Se o termo, “português residente nos estrangeiro” é utilizado, como me foi dito algures, como incentivo político para que participemos nas eleições em Portugal, nomeadamente para a Presidência e a Assembleia da República, com o devido respeito que tenho pela importância do voto, acho que é de apelar, quase mendigar, aos emigrantes que se naturalizem cidadãos dos países onde vivem e que, aí sim, votem, e tenham voz ativa, como já o têm em variadíssimos lugares do mundo americano e canadiano.  Vejamos, na Califórnia por exemplo, onde há cerca de 150 emigrantes e luso-descendentes eleitos para cargos públicos, porque nos envolvemos e temos voz no nosso futuro e podemos ser uma voz para Portugal.  O voto no país de origem, direito garantido na constituição portuguesa, para quem o desejar usufruir, tem sido, como os números indicam aqui nos Estados Unidos e no Canadá, extremamente insignificante, mas também aí, até por razões ocultadas e obsoletas do conceito “português residente no estrangeiro.”

Quero acreditar que,quando se fazem estas afirmações, são ocorrências de circunstância, ou então, frases que tentam aproximar os emigrantes da sua terra de origem, mas que infelizmente têm efeito reverso.  Tal como a política da saudadezinha já está (ou deveria estar) totalmente ultrapassada, nós, homens e mulheres que deixámos território português não somos meros residentes no estrangeiro.  Somos sim, homens e mulheres que apesar da distância das nossas ilhas ainda comungamos os valores culturais que trouxemos na bagagem, ou que nos foram passados pelos nossos pais ou avós.  E esses mesmos valores estão misturados com as realidades, a cultura, a modernidade do incomensurável mundo norte-americano.  Esses valores estão já amalgamadíssimos nas nossas vivências coletivas e individuais de quem um dia emigrou ou é filho/a, neto/a de emigrante.  Já não pertencemos ao gueto de “residentes lá fora”, mas sim emigrantes e descendentes integrados no mundo norte-americano, perfilhando várias culturas.

Mais, é tempo de se fazer um esforço coletivo e absolutamente necessário, para não dividirmos o que já está desunido.  Quer os emigrantes de há 200 anos, quer os emigrantes de hoje, são todos emigrantes.  Quer se tenha emigrado com uma saca de remendos e analfabeto, quer se tenha emigrado com uma mala de marca e um curso académico, é-se emigrante.  Aliás, podia até perguntar quem é que teve mais coragem, o emigrante que sem conhecer a realidade americana meteu-se num barco, e em alguns casos atravessou o continente americano à busca das “Califórnias perdidas de abundância”, ou quem vai com curso feito e já com colocação numa multinacional da alta-tecnologia?  Não estará o mundo já demasiadamente separado? Temos que bater com a porta quando a classe do mundo político ou diplomática faz essas insinuações.    

E o pecado, não é apenas da terra mãe.  É importante que também na diáspora tenhamos outro comportamento.  A Califórnia é o único estado na união americana que tem uma semana dedicada ao emigrante português.  Em cada ano, desde a década de 1960, que o executivo do estado da Califórnia designa a segunda semana de março como a semana do emigrante português.  Desde Ronald Reagan, o primeiro a assinar a resolução, que todos os sucessivos governadores o têm feito.  Porque o termo emigrante é, por incrível que pareça, pejorativo no país dos emigrantes, houve quem na nossa comunidade (sem maldade, entenda-se) propusesse que passássemos de semana do emigrante português para semana da herança portuguesa.  Acho um erro! Primeiro porque já temos o mês de junho como mês da herança portuguesa.  Segundo, porque se as novas gerações, e mesmo os mais idosos de terceira, quarta e quinta gerações, apesar de não serem emigrantes, devem estar consciencializados que alguém na sua família foi, alguém veio do outro lado do atlântico.

Celebrar a semana do emigrante português na Califórnia, oficializada pelo poder político deste colossal estado, é celebrar os emigrantes presentes e os emigrantes do passado, é uma forma muito bonita para os luso-descendentes (na Califórnia quase todos açor-descendentes) celebrarem o legado dos seus antecessores e pensarem duas vezes antes de caírem na tentação de injuriar o emigrante, independentemente de onde venha, porque ele também tem raízes na emigração, porque todos já fomos estrangeiros.  Bem-haja a todos quantos ainda celebram a semana do emigrante português na Califórnia.  Aliás, a contínua decretação desta semana pelos sucessivos governadores é implícita que somos emigrantes e não meros “portugueses residentes no estrangeiro.”    

Chegou o momento, ainda mais uma vez, de abandonarmos esse debate caricato de emigrantes/portugueses residentes no estrangeiro, e começarmos a conhecermo-nos muito melhor, como, por exemplo, através dos intercâmbios, diálogos e colóquios que com as novas tecnologias temos oportunidade de criar e abrir a todas as latitudes.  Não nos fica bem irmos buscar frases que deveriam ter morrido com o século XX.  Há que continuar com tudo o que se faz diariamente nas nossas comunidades de emigrantes e seus descendentes, na nossa Diáspora, em parceria com quem nos entende e aceita a nossa realidade, sem os preconceitos dum terreiro do paço perfeitamente transcendido.  Parafraseando um jovem que vive na Califórnia há meia dúzia de anos, presente num painel recente sobre as nossas vivências: “cabe a todos nós emigrantes, e luso-descendentes, trazermos as “elites políticas portuguesas” para a realidade do mundo contemporâneo da nossa emigração, da nossa diáspora e do relacionamento que queremos ter com Portugal e que Portugal precisa de ter com os seus emigrantes e sucessivas gerações.”    

Há que continuar a dar dignidade à palavra, e acima de tudo à condição de emigrante, quer pelo país que se deixou, quer pelo país para onde se imigrou, ou imigraram os nossos antepassados.