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OPINIÃO | Jimmy Carter: O presidente que nunca deixou o serviço público, por Diniz Borges

Diniz (Dennis) Borges Portuguese Beyond Borders Institute-Director
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“Todos cometemos erros na vida, mas cada 
erro é uma oportunidade para aprofundar 
a nossa compreensão de nós próprios 
e do mundo que nos rodeia.”
Jimmy Carter  no livro Faith: A Journey for All, 2018

“Hoje, a América e o mundo perderam um extraordinário líder, estadista e humanitário.”  Disse Joseph Biden, sobre a morte de Jimmy Carter a 29 de dezembro de 2024.  James (Jimmy) Earl Carter, o 39º Presidente dos Estados Unidos, deixa um legado que é simultaneamente complexo e extraordinário. A sua presidência, foi marcada por iniciativas ambiciosas e desafios profundos, e os seus anos pós-presidenciais, definidos por um trabalho humanitário sem paralelo, ilustram uma vida de serviço e integridade. A morte de Carter, aos 100 anos, marca o fim de uma era para um líder cujo impacto transcendeu as fronteiras políticas.  Estava eu na rebeldia dos meus 18 anos, quando foi eleito e nem sempre concordei com Jimmy Carter, achando-o muito centrista, para a minha juventude, e ainda hoje.  Na realidade teve um envolvimento muito brando no que concerne aos direitos dos trabalhadores, e algumas das suas políticas a namorar a direita, permitiram várias glabras de Ronald Reagan, que o sucedeu.  Foi, entretanto, um acérrimo defensor da democracia.  Em 1975, um ano antes de ser eleito, no livro Why Not the Best, escreveu: “Nunca devemos esquecer que a democracia é mais do que um sistema de governo; é um modo de vida que exige vigilância e participação constantes.” Palavras sábias, particularmente significantes, a partir de 20 de janeiro de 2025.  

Uma presidência de conquistas e desafios

Quando Jimmy Carter tomou posse em 1977, prometeu um governo tão honesto e benevolente como o “povo americano.” A administração de Carter deu prioridade aos direitos humanos, à proteção do ambiente e à independência energética. Os Acordos de Camp David entre o Egito e Israel são uma das suas realizações mais importantes, demonstrando a sua capacidade como negociador e pacificador. Este acordo histórico não só reduziu as tensões no Médio Oriente, como também demonstrou a capacidade da América para mediar a paz.  Infelizmente, houve paradoxos que foram árduos para a América e para o mundo, particularmente o envolvimento americano no Afeganistão, entre outros.

Carter, foi, entretanto, um dos presidentes do último quartel do século vinte que fez progressos na política energética, reconhecendo os perigos crescentes da dependência dos combustíveis fósseis. Introduziu medidas de conservação de energia (quem se lembra do discurso dele com um colete para se aquecer na Casa Branca?), incluindo créditos fiscais para as energias renováveis, e salientou a necessidade de soluções a longo prazo para a crise energética americana. No domínio da política ambiental, alargou as áreas protegidas, criou o Departamento de Energia e defendeu os esforços de conservação.  Foi também durante a sua administração que foi criado o Departamento da Educação, que trouxe apoio nacional ao ensino. 

 A presidência de Carter enfrentou desafios significativos. A crise dos reféns no Irão tornou-se um momento decisivo, com 52 americanos mantidos em cativeiro durante 444 dias. Apesar dos seus esforços para negociar a libertação dos reféns, a crise minou a confiança do público na sua liderança.  Os problemas económicos, incluindo a inflação elevada, o desemprego e a crise energética, criaram uma sensação de mal-estar que ensombrou os êxitos da sua administração.

O estilo de liderança de Carter, marcado por uma atenção meticulosa aos pormenores e uma profunda convicção moral, colidiu por vezes com a cultura política de Washington. A sua relutância em envolver-se nas habituais políticas transacionais e o seu estatuto de outsider provocaram tensões com o Congresso, limitando a sua capacidade de aprovar legislação importante. Apesar destes desafios, a presidência de Carter lançou as bases para futuros progressos nos domínios dos direitos humanos e da política ambiental.  Com vários contratempos, Carter sempre trabalhou, independentemente dos resultados alcançados, com o prisma de um profundo respeito pela humanidade, como explicou em 2005 no livro Our Endangered Values: America’s Moral Crisis:  “A consciência da nossa humanidade comum e a necessidade de tratar os outros com respeito e dignidade é um elemento crucial para manter o tecido moral da nossa sociedade.”

A pós-presidência: Um modelo de serviço

Se a presidência de Carter foi marcada por críticas mistas, os seus anos pós-presidenciais foram universalmente elogiados. Depois de deixar a Casa Branca em 1981, Carter fundou, na cidade de Atlanta, estado da Geórgia, o Centro Carter:  uma organização dedicada à promoção da paz, à luta pela saúde pública e à promoção da democracia em todo o mundo. O trabalho do Centro na erradicação de doenças como o verme da Guiné e os seus esforços de monitorização de eleições tiveram um profundo impacto global. Se bem que muitas vezes, uma verdadeira contradição, já que o seu próprio país tem enfrentado sucessivos assaltos ao voto pelas forças mais conservadoras, pese as críticas que sempre lançou dentro dos EUA.  

O empenhamento de Carter no serviço público estendeu-se para além do Centro Carter. Tornou-se um defensor da habitação a preços acessíveis através do seu trabalho com a Habitat for Humanity, construindo pessoalmente casas para os necessitados até aos 90 anos. A sua dedicação a causas humanitárias valeu-lhe o Prémio Nobel da Paz em 2002, em reconhecimento dos seus esforços para resolver conflitos, promover a democracia e os direitos humanos.  Bill Clinton, com quem nem sempre concordou, disse-o sucintamente no dia depois da morte de Carter: “Guiado pela sua fé, o Presidente Carter viveu para servir os outros – até ao fim.” 

A vida pós-presidencial de Carter também incluiu uma prolífica carreira de escritor. Foi autor de numerosos livros sobre temas que vão desde a sua presidência à sua fé cristã, partilhando as suas ideias e valores com o mundo. Quer se concorde ou não com a presidência de Jimmy Carter, não resta a mínima dúvida que a sua humildade, resiliência e empenho inabalável no serviço público estabeleceram um padrão para os antigos presidentes, redefinindo o papel da ex-presidência na América moderna.

Relações com os sucessores: Colaboração e conflito

As interações de Carter com os seus sucessores revelam uma complexa teia de colaboração e desacordo. Embora mantivesse relações cordiais com todos os presidentes, o seu carácter espontâneo provocou frequentemente tensões, especialmente com Bill Clinton, George W. Bush e Donald Trump.

A relação de Carter com Bill Clinton foi marcada tanto pela parceria como pela tensão. Embora ambos partilhassem o empenho em causas humanitárias, as críticas de Carter às decisões de política externa da administração Clinton, em especial no que se refere ao Haiti e à Coreia do Norte, criaram fricções. Apesar destas divergências, os dois colaboraram em iniciativas, no que concerne à cooperação em caso de catástrofes e campanhas de saúde global, demonstrando a sua dedicação comum ao serviço.

Com George W. Bush, a relação de Carter foi mais polémica. Carter criticou abertamente a decisão da administração Bush de invadir o Iraque, chamando-lhe uma “guerra de escolha” e questionando a sua justificação. Apesar destas críticas, os dois encontraram pontos em comum na religião e no seu empenho com o trabalho humanitário. A disponibilidade de Carter para desafiar as políticas de Bush, reconhecendo ao mesmo tempo a sua decência pessoal, reflete a complexidade da sua dinâmica.  Em 2005, no começo do segundo mandato de Bush Filho, escreveu: “A guerra pode ser um mal necessário, mas não deixa de ser um mal. É sempre uma admissão de fracasso e é sempre o resultado de um erro humano.”

A relação mais tumultuosa de Carter foi com Donald Trump. Carter, um crítico acérrimo da retórica e das políticas divisionistas de Trump, condenou frequentemente o seu desrespeito pelas normas democráticas e pelos direitos humanos. Trump, por sua vez, rejeitou as críticas de Carter e questionou o seu legado como presidente. O forte contraste entre os seus estilos de liderança e valores sublinhou a profunda divisão ideológica entre os dois. Embora as críticas de Carter a Trump fossem incisivas, estavam enraizadas no seu compromisso de uma vida em que prezava a democracia e a governação ética.

De todos os presidentes que o seguiram, já que foi o presidente americano com a maior longevidade, celebrando o seu centenário, o melhor relacionamento foi na realidade com Barack Obama e com Joseph Biden, o qual como Senador foi um dos seus primeiros apoiantes para a eleição de 1976.   Com Gerald Ford, com quem disputou a eleição de 1976, tornaram-se amigos íntimos.  Na realidade, como escreveu Barack Obama num texto emitido depois da morte do 39º Presidente dos EUA, Carter, “ensinou-nos o que significa viver uma vida de doçura, dignidade, justiça e serviço.”   

Legado e reflexão

O legado de Jimmy Carter é multifacetado, refletindo as complexidades da sua vida e carreira. Enquanto presidente, demonstrou um compromisso com princípios e ideais, mesmo perante os desafios políticos e económicos. A sua ênfase nos direitos humanos, na conservação do ambiente e na independência energética continua a ser relevante atualmente, servindo para recordar a importância duradoura de uma liderança visionária, mas consciente dos erros e dos desafios da sua época.  Em 2015, pouco depois de celebrar os seus 90 anos, no livro A Full Life: Reflections at 90, escreveu: “Muitas vezes quis apagar coisas que disse ou fiz, mas o melhor que posso fazer é admitir os meus erros, aprender com eles e tentar fazer melhor.”

Os anos pós-presidenciais de Carter são um testemunho do poder do serviço e da humildade. O seu trabalho com o Centro Carter, a Habitat for Humanity, como já se disse, e a sua defesa da paz e da justiça deixaram uma marca indelével no mundo. Ao redefinir o papel dos antigos presidentes, Carter mostrou que o serviço público não termina com a presidência. No livro Palestine: Peace Not Apartheid, publicado em 2006, escreveu: “Um antigo presidente tem uma plataforma única e a obrigação moral de a utilizar em prol da paz, dos direitos humanos e do alívio do sofrimento.”

As suas relações com outros presidentes, embora por vezes difíceis, revelam um líder sem receio de dizer o que pensa e de desafiar o poder quando necessário. A vontade de Carter de se envolver com os seus sucessores e de os criticar sublinha a sua dedicação aos princípios acima da política.

Ao refletir-se sobre a vida de Jimmy Carter, poder-se-á afirmar, sem qualquer receio, que o seu legado transcende o tempo em que esteve na Casa Branca. Será recordado não só pelas suas realizações e desafios como presidente, mas acima de tudo pelas suas contribuições para a humanidade. A vida de Carter exemplifica os mais elevados ideais de serviço público.  Quero acreditar, que num momento em que a arrogância e da ganância ficaram donas da política, quer nos Estados Unidos, quer em muitas outras partes do mundo, o legado de Jimmy Carter é extremamente importante.  Quero acreditar que inspirará as gerações vindouras.

Mauricio De Jesus
Maurício de Jesus é o Diretor de Programação da Rádio Ilhéu, sediada na Ilha de São Jorge. É também autor da rubrica 'Cronicas da Ilha e de Um Ilhéu' que é emitida em rádios locais, regionais e da diáspora desde 2015.