OPINIÃO | Evocações de Fé e Cultura; Como um americano viu a nossa Diáspora na Califórnia, por Diniz Borges
Acolhe a rainha do Teu dia da Tua minha gente.
Em humanal verdade Te digo ela é o povo
que cruzou mares e terras num pássaro de metal
até ao Pacífico em busca da felicidade legítima.
“Queen Nancy” Vasco Pereira da Costa in My Californian Friends
Em meados de 2021, meses ainda fortemente marcados pela pandemia, quando tive um contacto com Jackson Nichols, fotógrafo americano que há 30 anos se apaixonou pelas festas na comunidade portuguesa da Califórnia. Não me era totalmente desconhecido, tinha visto aqui e acolá uma ou outra fotografia da sua autoria. Falámos sobre alguns dos seus projetos, incluindo o de elaborar uma exposição para um centro cultural americano no meio da comunidade portuguesa do Centro da Califórnia, cidade de Turlock, onde reside uma das mais ativas comunidades da açorianidade em terras da Califórnia e a publicação de um livro de luxo com 60 das 12 mil imagens que tem das festas portuguesas, captadas ao longo das últimas três décadas. Como raramente temos interesse do mundo artístico americano sobre as nossas celebrações, abracei o projeto e ajudei, se bem que muito pouco, para que se desse corpo e alma à exposição e ao livro. Desse compromisso, nasceu um olhar diferente sobre as nossas festas em terras californianas, um olhar que está a ser repartido com a sociedade em geral e em várias cidades. Desse compromisso, alinhavei um breve texto, em inglês, que aqui partilho em português. Aliás, este texto e quatro magníficos poemas: Queen Nancy e Artesia’s Patron de Vasco Pereira da Costa, Festa do Espírito Santo de Lara Gularte e Fado in a Portuguese Hall in Petaluma, CA, de Diana Ramos Firestone são as únicas palavras deste livro, onde o destaque é a obra fotográfica de Jackson Nichols.
As vivências portuguesas, maioritariamente açorianas na Califórnia têm-se manifestado através de uma amalgama de experiências culturais, empresariais, artísticas, educacionais e sociais. De todas elas, a Festa é um dos eventos mais comuns e mais conhecidos, dentro e para além da diáspora portuguesa no Eldorado americano. Com quase uma centena destes eventos em várias cidades e vilas, espalhadas por todo o estado, desde Arcata no Norte a San Diego no Sul (cidades separadas por 1243 quilómetros), a Festa é o elo que une todas as gerações, e gradualmente estabelece ligações com a miríade de etnias que compõem a sociedade multicultural da Califórnia, uma sociedade em constante mudança e progresso.
A Festa, referida inicialmente como a palavra genérica para as celebrações do Espírito Santo cedo evoluiu para descrever outros eventos, maioritariamente religiosos, tais como a Festa de Nossa Senhora de Fátima, Santo António e São João, apenas para enumerar alguns. Começaram, como se sabe no século XIX, e na viragem e nas primeiras duas décadas do século XX, floresceram em várias comunidades da Califórnia. À medida que a comunidade imigrante portuguesa se envolvia muito mais na sua paróquia católica, começaram as festividades da Senhora de Fátima, com grande vivacidade ao longo do último êxodo de imigrantes dos Açores, que como sabe aconteceu com a lei Lei dos Refugiados Açorianos de 1958 (assim foi titulada a lei que deu entrada aos sinistrados do vulcão dos Capelinhos), e à Lei da Imigração e Naturalização de 1965, com o segmento específico conhecido como a Reunificação Familiar – as Cartas de Chamada como eram conhecidas e cobiçadas nos Açores, particularmente nas décadas de 1960 e 1970. Com as novas comunidades começou-se a comemorar os santos padroeiros de várias freguesias açorianas, bem como outros eventos sociais, todos eles adotando a palavra genérica de Festa, como por exemplo: a Festa da Bola (torneio de futebol), Festa de São Martinho, Festa de São João, Festa dos Reis, e Festa da Música, entre outras. É um calendário de eventos, que começa em cada Primavera e termina durante o Outono.
A Festa do Espírito Santo, originalmente um local de encontro, para preservar a identidade, as tradições religiosas e língua, no que concerne à comunidade imigrante, continua a ser um local privilegiado para se exibir o nosso legado cultural; para partilhar uma refeição, as nossas tradicionais sopas; para se dar um pé de dança, particularmente a chamarrita, para se expor o orgulho ancestral e para interligar as várias gerações. Como o escritor Manuel Ferreira Duarte eloquentemente escreveu no seu livro, Banda Nova e Outras Histórias: “Ao longo dos tempos, o ilhéu açoriano procurou para além do horizonte o espaço, o pão e a justiça. Na sua mente, ele carregava a esperança de se tornar rico. Nas suas costas, a ilha. Dentro do seu coração, a devoção ao Espírito Santo”. De facto, se há um fator determinante na idiossincrasia luso-americana, fortemente influenciada pela açorianidade que está patente por toda a Califórnia, com muito orgulho nas suas profundas raízes no arquipélago dos Açores, certamente que esse orgulho se concentra nestas celebrações e no papel unificador que elas desempenham no seio da comunidade e na sua ligação aos outros grupos étnicos com quem convivemos, quotidianamente.
A Festa tem, particularmente ao longo das últimas décadas, misturado elementos da paisagem californiana, sejam eles físicos ou culturais, como Jackson Nichols magistralmente retratou, através da sua lente artística. Consegui captar momentos, ocasiões e vivências que são verdadeiramente distintas e parte integrante da Festa. Jackson Nichols dá um olhar deslumbrante sobre a singularidade da experiência portuguesa na Califórnia, descortinando a exuberância da sociedade multicultural que continuamos a construir em todo o estado. Uma simbiose quase perfeita do divino com o profano, o entrelaçamento de rituais culturais e religiosos, com centenas de anos de história, com os lugares mais comuns do nosso ambiente atual. Ao longo deste impressionante livro testemunhamos práticas que interligam gerações e ultrapassam barreiras linguísticas, onde as raízes, apesar de terem sido transportadas e replantadas em novos terrenos, muitas há muitas décadas, estão vivas e prosperam. Esta é, indubitavelmente, mais uma indicação de que a natureza, e o carácter dos açorianos fazem parte da nossa sociedade multiétnica, multirracial e multicultural. Jackson Nichols, relembra-nos, através da sua arte, que os laços entre as famílias e as tradições ainda são uma parte integrante da experiência humana e que os açorianos e açor-descendentes prezam esses vínculos.
A Festa – uma celebração da fé, expressa a efervescência de uma notável visão do mundo que cruza o fervor religioso com a paixão cultural. É também uma fé na comunidade, no poder que se vive na partilha de uma simples refeição, na perpetuação de laços culturais genuínos, no compromisso de se prestar homenagem aos nossos antepassados, enquanto se forjam ligações com outras etnias. A Festa, tem por base a solidez da relação duradoura entre o Humano e o Divino.
A Festa, é acima de tudo, a contínua comemoração dos Açores na Califórnia.