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OPINIÃO | A jornada de uma açor-descendente no apoio aos sem-abrigo no centro da Califórnia, por Diniz Borges

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É habitual na diáspora açoriana nos Estados Unidos falarmos da integração da nossa comunidade no mundo americano e dos valores da açorianidade que são transmitidos de geração em geração.  É que através da diáspora encontramos imensas histórias de valor, que vão muito além do barulho e da hipocrisia em torno do culto Trump.  Felizmente que a diáspora açoriana é composta de muitos homens e mulheres, já com algum distanciamento geracional do arquipélago, mas que continuam a cultivar os nossos valores da solidariedade, do humanismo e da justiça social.  Para cada pessoa que se sente realizado vestindo uma camisola com a foto do Magnata de Nova Iorque, em visita ao arquipélago, para cada carro de bois com cartazes do movimento reacionário MAGA nos bodos de leite da comunidade, no centro da Califórnia, há açor-descendentes que totalmente integrados no mundo americano utilizam a açorianidade para fazerem a diferença e criarem estruturas com impacto na sociedade.   Uma dessas pessoas é Adrianne Faria Hillman, que há vários anos tem contribuído imenso para apoiar os mais necessitados no Vale de São Joaquim.  É que na terra da riqueza há muita gente a sofrer.    

Nascida nos Estados Unidos, com raízes pelo lado paterno na ilha Terceira, nos Açores, Adrianne Faria Hillman, neta de uma das fundadoras do movimento das cidades irmãs, Angra-Tulare, Dolly Faria, fundou uma organização pioneira que está a revolucionar os serviços para os sem-abrigo no Vale de São Joaquim e no estado da Califórnia. O compromisso com os mais necessitados profundamente enraizado em Adrianne Faria Hillman, a sua dedicação às necessidades que afetam os sem-abrigo, fez com que estabelecesse a organização Salt + Light em 2019, marcando o início de uma iniciativa notável para lidar com a crise crescente dos sem-abrigo nesta zona da Califórnia.   Tendo testemunhado os crescentes desafios enfrentados pelas pessoas sem-abrigo, Hillman abandonou a sua anterior carreira para liderar um projeto inovador inspirado na Community First Village na cidade de Austin, estado de Texas. Com base num modelo inovador que liga comunidade e trabalho significativo, Adrianne Faria Hillman fundou a Salt + Light para criar uma aldeia semelhante à de Texas na sua própria zona.

Segundo a comunicação social no Centro da Califórnia, a sua visão ganhou vida, com o projeto The Neighborhood Village quando a Self-Help Enterprises, uma empresa local sem fins lucrativos que tem por missão criar habitação para os mais necessitados, abordou a Salt + Light com a finalidade de estabelecerem uma parceria no desenvolvimento da aldeia transformadora como parte de uma comunidade de habitação a preços acessíveis planeada em Goshen, (adjacente à cidade de Visalia e perto de Tulare) no centro da Califórnia. Com conclusão prevista para 2024, The Neighborhood Village, que acaba de ser oficialmente inaugurada, na quinta-feira, 26 de setembro proporcionará não só habitação, mas também um sistema de apoio abrangente num ambiente comunitário vibrante.

A comunidade estende-se por 6,5 acres e engloba 53 casas que cumprem todos os requisitos dos governos federal e estadual.  Com unidades de um ou dois quartos, cada casa possui cozinha e casas de banho totalmente equipadas, oferecendo aos residentes – outrora sem-abrigo-, uma sensação de conforto e independência.  Segundo nota da própria organização, este espaço único, é “complementado por uma área residencial que apresenta uma série de comodidades, incluindo um Unity Hall (centro de atividades) polivalente para reuniões comunitárias, noites de cinema e outros eventos. Além disso, os residentes podem beneficiar de um parque para cães, espaços verdes, uma pequena biblioteca, um jardim memorial e uma cozinha comercial para a formação no âmbito da culinária, assegurando um espírito comunitário entre todos os residentes.” 

Segundo a açor-descendente: “A conspeção do The Neighborhood Village vai além da oferta de habitação a preços acessíveis; centra-se na promoção de um sentimento de pertença e de capacitação”, observou Adrianne Faria Hillman. “os nossos serviços são abrangentes e garantem que os residentes tenham acesso ao suporte humano que precisam para prosperar.”  Para a açor-descendente, cujos bisavós emigraram dos Açores no começo do século XX, a criação de espaços informados sobre traumas, projetados para assistir às pessoas onde elas estão, é fundamental. Para esse fim, os residentes não precisam de estar sóbrios para garantir a habitação. Adrianne Faria Hillman explica que: “a toxicodependência está diretamente relacionada com o trauma” acrescentando que é “contraproducente e quase impossível pedir às pessoas que estão a viver em modo de sobrevivência nas ruas – ensejando traumas diariamente – que fiquem limpas e sóbrias nesse ambiente.”  Embora reconheça que a recuperação é uma parte importante para ajudar as pessoas a instalarem-se e a curarem-se, acredita que: “para que a recuperação seja bem-sucedida, é importante trazer as pessoas para um ambiente comunitário com especialistas, com recursos robustos e um rácio elevado de pessoal/residente no próprio local.” Segundo declarações à comunicação social, a Salt + Light oferecerá uma série de programas de tratamento da toxicodependência: “Os residentes contribuem para a comunidade pagando uma renda proporcional ao seu rendimento, promovendo um sentido de responsabilidade e independência financeira.” 

Numa nota enviada à imprensa local, Adrianne Faria Hillamn diz que a  The Neighborhood Village “está adequada para transformar a vida dos seus residentes”, acrescentando: “acredito que estamos a assistir a uma transformação genuína na nossa área, onde as pessoas estão a redescobrir o seu valor e a receber os cuidados e o apoio que merecem”, sublinhou a açor-descendente.  Acrescentando que “à medida que a organização Salt + Light continua a iluminar caminhos para os sem-abrigo, está assegurada a definição de um novo padrão para iniciativas orientadas para as várias cidades através do estado da Califórnia, promovendo a esperança e a resiliência nos corações de homens e mulheres há muito abandonados pela sociedade.  O objetivo é retirar os residentes sem-abrigo das ruas e levá-los para um local seguro.” Os residentes pagarão a renda e trabalharão no empreendimento.

 A Associação de Municípios do Condado de Tulare (TCAG) numa nota divulgada nas redes sociais salienta que “desempenhou um papel fundamental ao estabelecer uma parceria com as várias organizações para garantir financiamento do estado da Califórnia no valor de 3 milhões de dólares, fundos que foram fundamentais para o êxito deste projeto.”  Segundo a Associação dos Municípios: “esta parceria entre os sectores da habitação e dos transportes realça o papel crítico do desenvolvimento comunitário integrado na abordagem dos desafios da habitação e da mobilidade. A colaboração enfatiza uma abordagem holística que beneficia esta zona.” Saliente-se que na celebração da conclusão da primeira fase deste projeto estavam numerosos representantes do governo estatal, regional e local, incluindo funcionários do Departamento de Habitação e Desenvolvimento Comunitário da Califórnia (HCD).  Todos com palavras elogiosas ao trabalho e à dedicação de Adrianne Faria Hillman. 

Não resta dúvida que a visão e o compromisso inabalável de uma americana com raízes nos Açores está a mudar mentalidades e comportamentos e a dar um salto importante num problema que por demasiados anos não foi visto com olhos humanistas, ou seja: devolver a esperança e a dignidade aos sem-abrigo, que num estado de 40 milhões de habitantes tem cerca de 180 pessoas a viverem nas ruas, nas bermas das estradas, em parque e em acampamentos sem qualquer segurança e futuro.  Abandonar uma carreira e dedicar-se de alma e coração a um projeto desta natureza é no mínimo salutar.  Adrianne Faria Hillman é um exemplo a seguir.  Nela estão alguns dos valores mais genuínos da açorianidade, a justiça, a solidariedade, o caminho da esperança, a responsabilidade, porque como dizia a minha avó Leonor: estamos neste mundo para nos ajudarmos uns aos outros.  

Adrianne Faria Hillman está plenamente consciente que as pessoas que foram marginalizadas e privadas de serviços básicos sentem-se muitas vezes invisíveis numa sociedade cada vez mais dividida. Os líderes locais, particularmente aqueles que têm experiência de vida, têm uma capacidade única de ver e compreender plenamente os indivíduos que servem. Reconhecem que cada um possui dons e recursos únicos e, através do seu conhecimento íntimo das suas comunidades, podem encontrar formas inovadoras de ligar as pessoas e responder às suas necessidades.  Foi o que fez esta bisneta de emigrantes açorianos da ilha Terceira.  

Num mundo cada vez mais egoísta.  Num ambiente político de polarização que delimita os Estados Unidos.  Num clima onde a hostilidade e o desprezo pela dignidade humana são semeados diariamente por Donald Trump, e infelizmente regados e colhidos por muitos emigrantes e açor-descendentes de memória muito curta, é marcante e até promissor ver-se uma açor-descendente que ainda acredita nos valores do humanismo, da solidariedade, da dignidade. O mundo precisa de muitas Adriannes.  

Hoje, os sem-abrigo no condado de Tulare têm uma renovada esperança graças ao trabalho, ao compromisso e à dedicação desta açor-descendente.  É um orgulho para a nossa diáspora, para a nossa Região, para o nosso país.  É que, acima de tudo, Adrianne é portadora de uma renovada esperança em valores das nossas ilhas que por vezes, cedo demais, são abandonadas na nossa diáspora dispersa pelo continente norte-americano.

Mauricio De Jesus
Maurício de Jesus é o Diretor de Programação da Rádio Ilhéu, sediada na Ilha de São Jorge. É também autor da rubrica 'Cronicas da Ilha e de Um Ilhéu' que é emitida em rádios locais, regionais e da diáspora desde 2015.