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OPINIÃO | O Preço da Abundância Americana: a Desigualdade e a Pobreza no Vale de São Joaquim, por Diniz Borges

FOTO | Kelley McCoy
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O maior peso no mundo são bolsos vazios.
Texto Judaico 

O Vale de São Joaquim tem sido a minha casa durante os últimos 55 anos, ou seja: há 55 anos, tinha eu dez anos, quando acompanhado pelos meus pais e irmão cheguei ao que o poeta açoriano Pedro da Silveira chamou no seu belo poema Ilha às: “califórnias perdidas de abundância.” 

A minha chegada em pleno outono do ano de 1968, ano em que muitos outros açorianos, escapando à falta de recursos económicos, à miséria para muitos, e à fuga ao Ultramar para outros, vieram para os Estados Unidos ou para o Canadá.  E foi um ano fértil para a emigração do nosso arquipélago.  Nesse ano, segundo os dados oficiais, tal como os meus pais, eu o meu irmão, saíram dos Açores 12.823 pessoas, das quais 316 foram para a Bermuda, 4,373 para o Canadá e 8,124 para os Estados Unidos.  Uma grande parte desses emigrantes para a Califórnia e muitas dessas pessoas para o Vale de San Joaquim.  Recordo-me que no meu primeiro ano de escola primária em terras americanas, no Palo Verde School, na ruralidade de Tulare, encontrei uma amalgama de outros “aliens” que como eu, que só falavam português. 

O Vale de San Joaquim faz parte da minha idiossincrasia, do meu imaginário e da minha vida.  Foi aqui que sonhei, passei a minha juventude, estudei, trabalhei, casei, criei família e estudei mais um pouco.  E quem sabe se tal como meu pai será também aqui a minha última morada? Mas as últimas notícias sobre este vale, de leite e mel, de prosperidade e de lágrimas, perturbam-me.  É que se por vezes apetece-me lançar um grito bem fundo de assanho, este é o vale da minha vida, ou pelo menos o da maioria da minha vida.  Foi aqui que os meus filhos nasceram.  Foi aqui que enterrei os meus pais. É aqui que vivo, trabalho, leio, amo, descanso, e tento contribuir, muito modestamente, entenda-se, para a construção de um mundo em progresso, com liberdade e igualdade de oportunidades. 

É que o Vale de São Joaquim, composto por oito condados é responsável por 90% dos 51.7 biliões de dólares que representam a globalidade do mercado agrícola da Califórnia.  O condado de Fresno é um dos mais produtivos com vendas que oscilam os 7 biliões e paradoxalmente 27% dos seus residentes vivem com vencimentos abaixo do nível nacional da pobreza e 34% das crianças nas escolas publicas estão identificadas como pobres ou extremamente pobres.  No inverno o índice de desemprego, na maioria dos oitos condados do Vale de San Joaquim oscila entre os 16 e os 19%.   

Segundo um estudo da Universidade Estadual da Califórnia em Fresno, 457 mil (quase meio milhão) de crianças do vale vivem no seio de famílias extremamente pobres.  Quatro em cada cinco crianças de pais imigrantes vivendo no vale de São Joaquim têm necessidades económicos graves.  A percentagem dos lares com falta de comida vai desde 32,6% no condado de São Joaquim a 41,4% no condado onde vivo, o de Tulare.  Uma autêntica vergonha!

Os estudos indicam que neste vale onde se produz, e com abundância, quase todos os produtos agrícolas e onde a agropecuária é de extrema importância, onde vivem algumas das pessoas mais ricas deste estado, onde se fazem fortunas em menos de uma década, o nível de pobreza ultrapassa a região Appalachian (tradicionalmente a mais pobre dos EUA), assim como os fundos que são gastos com serviços essenciais como os fundos do desemprego, a educação, as estradas e a saúde pública.  De facto, segundo dados preliminares do relatório anual do Congresso dos Estados Unidos, o Vale de São Joaquim no ano 2022 teve um índice de pobreza na ordem dos 24,5% em comparação com a região do Appalachian que foi na ordem dos 15,6%.  

Estes são apenas alguns dos números devastadores e deprimentes que os estudos, relatórios e reportagens jornalísticas nos indicam.  São dados que preocupam quem deseja ver um Vale de São Joaquim em progresso, mas com avanços para toda a gente, com mais equidade.  Ao estabelecermos uma subclasse, venha ela de que grupo étnico vier, para além do aspeto desumano, é uma má política para um país, um estado e uma região.  É que com esta pobreza virão os custos de uma sociedade injusta e todos os dilemas sociais que advém de poucos com muito e muitos com pouco, ou nada.  E mais dia, menos dia, as subclasses fartam-se de serem isso mesmo, subclasses, subservientes aos abusos a que têm estado sujeitas.  

É chocante que neste estado da Califórnia, o primeiro estado da união americana em produtos alimentares, a vasta maioria produzida nos campos do vale de São Joaquim, tenha, simultaneamente, o maior índice de pobreza deste país.  Qualquer cidadão consciente, qualquer residente deste vale que se preze do lugar onde vive e onde cria as suas raízes deveria ficar revoltado, escandalizado, e envergonhado com estes números.  Sempre achei perverso e repugnante que as pessoas que trabalham na produção dos géneros alimentícios fossem os mais mal pagos.  Porém o menos que falta é indiferença, mesmo no seio das nossas comunidades, vive-se ou indiferença ou demonização dos mais pobres, dos mais marginalizados. 

Comentando estes números com algumas pessoas, houve quem me recordasse a frase bíblica de Jesus Cristo: “Pobres, sempre os tereis.” Claro que isso poderá ser consolação para muita gente, particularmente aqueles que enriqueceram ou enriquecem com o suor dos mais marginalizados e que tentam justificar os seus abusos retirando, fora de contexto, como convém, uma ou outra frase bíblica.  Mas acredito, e qualquer padre que se preocupe com a mensagem do seu mestre concordará, que mais do que um conforto, a frase foi acima de tudo um alerta, um desafio, diria mesmo, uma provocação para que se acabassem as injustiças.  Porque só as injustiças e as políticas que as preservam, justificam, que num dos vales mais prósperos do mundo haja tanta pobreza. 

A 4 de Abril de 1997 o então Papa João Paulo II disse: “Se vivemos em condições de prosperidade ou de bem-estar, mais uma razão para termos consciência de toda a geografia da fome no globo terrestre; mais uma razão para dirigirmos a nossa atenção para a miséria humana, como fenómeno de massa; devemos despertar a nossa responsabilidade e estimular a prontidão para um auxílio ativo e eficaz.”  E essa responsabilidade, e esse auxílio ativo e eficaz, passam por assumirmos a obrigação de que estes números são desastrosos e que como sociedade temos que caminhar, cada vez mais, para uma trajetória de responsabilidade social que atenue estas disparidades.  

Ainda mais recentemente o Papa Francisco escreveu:  “alguns defendem que todo o crescimento económico, favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos fatos, exprime uma confiança vaga e ingénua na bondade daqueles que detêm o poder económico e nos mecanismos sacralizados do sistema económico reinante. Entretanto, os excluídos continuam a esperar.”

É que estes homens, mulheres e crianças deste meu/nosso Vale de São Joaquim, presente no imaginário de muitos escritores açorianos, muitos trabalhando na produção dos nossos alimentos, não precisam de esmola, nem de caridadezinha dada a pensar numa poltrona celestial.  Estes seres humanos precisam de justiça.  Parafraseando o Papa Francisco, é tempo destes excluídos pararem de esperar. 

Mauricio De Jesus
Maurício de Jesus é o Diretor de Programação da Rádio Ilhéu, sediada na Ilha de São Jorge. É também autor da rubrica 'Cronicas da Ilha e de Um Ilhéu' que é emitida em rádios locais, regionais e da diáspora desde 2015.