SÃO JORGE

OPINIÃO | Sanguinhal: Uma Fajã a ser engolida pela Natureza, por Cecília Brasil

FOTO | Cecília Brasil;
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É hora da partida!

Aquele dia, que sem se saber como, fecham-se as malas que ainda agora se abriram. Este ano, as férias foram mais longas, souberam bem, souberam a ressalga vinda do ilhéu e ao cheiro e gosto das lapas do Porto Velho.

Depois do adeus, do queijo e da espécie cuidadosamente embalados na mala com umas latinhas de atum, dou por mim sentada no avião a olhar as minhas pernas esfoladas que ainda latejam da última caminhada como se fossem um chamamento – ‘Não te esqueças da Fajã… da Fajã do Sanguinhal!’



Por breves momentos, revolto-me comigo própria e, num rebolar de algumas lágrimas, pergunto-me: Porque me importo com esta ilha agreste e nevoeirada? Porque quero saber das suas histórias das suas gentes, já que foi num outro lugar que escolhi viver? Seria bem mais fácil ir embora sem sentir este apego!
Mas esta revolta não é apenas interna, revolto-me por observar uma certa decadência cultural, a inércia ao qual os Calhetenses se tem se vindo a habituar.

Mas, falando da Fajã, há anos que o meu grande amigo Zé Ricardo me intriga ao falar-me das belezas do lado Norte. Zé não é só um grande conhecedor de trilhos, mas também sabe parte das suas histórias. Ele, possuidor de uma infinita paciência, investiga e, ao contrário de muitos, gosta de partilhar e conversar sobre as suas descobertas. Este ano, optámos por fazer o Sanguinhal, já o tinha feito antes, por este ano iríamos fazer diferente: descer pelo trilho do Sanguinhal e subir pela escadaria da Fajã Redonda. Poucas foram as pessoas que nos quiseram acompanhar, mas muitas foram aqueles que me alertaram para a dificuldade.

Não estavam erradas! Tal como a Fajã, os trilhos estão ao abandono. Valeu-nos as foices e a catana em punho e, com muita persistência, lá conseguimos abrir caminho.

A nossa primeira paragem foi no alto do cume no brejo para explorar as ‘Cafuas’. Um grupo de abrigos cavados no barro húmido da serra. Não sabemos quando foram escavados mas se Francisco de Borba esta certo, pela etimologia do nome árabe ‘quafiz’ ou talvez kimbundo ‘kufundu’, estas foram possivelmente escavadas pelos primeiros escravos ou colonos que se fixaram no lado norte e, posteriormente, utilizadas pelos pastores como pontos de abrigo aos temporais ou aquando do desbravamento dos pasto onde grupos de homens pernoitavam.

Na serra, também existia ‘Tendas’ como a ‘Tenda Velha’. Estas tendas eram como oficinas, onde se amolava ou concertavam os artefactos utilizados na apanha de lenha ou então os carros de bois que por ali se danificavam com as grandes ‘carradas’ que tinham para puxar.

As cafuas da serra encontram-se a um pequeno desvio do trilho do Sanguinhal, num ponto que oferece um bom abrigo dos ventos e ao lado de uma grota com água limpa. Esta corre para um pequeno tanque parcialmente escavado no barro do cume. De seguida, observa-se três entradas relativamente semelhantes, com umbreiras em pedra e lajes para se poderem fechar. A primeira entrada, junto à Grota, parece ser uma cozinha devidamente equipada com um fogão para se cozinhar e várias prateleiras para se arrumar os ingredientes e utensílios. Na seguinte abertura, encontra-se uma sala, já de dimensões maiores, que se interliga a uma outra Cafua de dimensões semelhantes, mas com uma pequena lareira. Assumimos que, devido às suas dimensões, este grupo de cafuas albergava várias pessoas ao mesmo tempo e talvez por vários dias. Existe também uma quarta abertura, de tamanho bem mais reduzido como se tratasse de um forno. Todas estas entradas encontram-se sob um denso mantão que dificilmente se notaria aos olhos leigos de alguém como eu. É sabido que existe mais Cafuas na zona norte da Ilha, mas caíram no esquecimento das pessoas.

Seguindo o trilho, lá caminhamos pelo mantão, que, apesar de estarmos em pleno Verão, se encontrava alto e bem molhado. Do Cume ao miradouro do Sanguinhal, demorámos cerca de uma hora. Aqui o caminho começou a ser mais difícil e a requerer um maior esforço. Em certas partes, nem se conseguia perceber se estávamos no trilho certo, no entanto, as faias são tao altas que não favorecem a vegetação rasteira, o que tornava relativamente fácil continuar a descida.

Chegando ao Miradouro, fizemos uma pequena pausa para as fotos e também reforçar as energias. Lá de cima, admirámos as fajãs, algumas das ruínas que teimam em não desaparecer e o eco dos milhafres que nos iam seguindo pela encosta abaixo.

O grande desafio surgiu após a ribeira. Aí o trilho está consideravelmente perigoso e requerer uma intervenção. Nota-se que, nos últimos anos, a ribeira tem escavado a rocha e, como consequência, têm ocorrido várias derrocadas. Mesmo assim, foi-nos possível admirar, nalgumas partes do caminho, pedras que ainda se encontram seguramente calcadas no caudal da ribeira muito parecidos com os antigos caminhos romanos que se entram preservados um pouco por toda a Europa – De certeza que muitos carros de bois por ali passaram e muitos animais por ali se saciaram.

Com foices e catanas em punho, lá conseguimos furar por entre a densa jarroca velha que nos aprazeava com as suas majestosas e cheirosas flores. Ao ultrapassar a derrocada, demos connosco sobre a ponte da Fajã Redonda. Uma ribeira estreita, mas funda, com uma rocha verde musgosa, resultado de tanta sombra que lhe sobrepõe. Sobre as rochas, ergueu-se a magnífica ponte – a ponte da Fajã Redonda. Como esta, existiam outras duas pontes nas fajãs vizinhas: a Ponte do Sanguinhal e a Ponte da Eirinha; Pontes feitas em pedra, provavelmente construídas sob rígidas instruções do mesmo ‘engenheiro’. Não sei se foi o caso, apenas posso deduzir pelo irreprovável arco de pedra no qual a sua estrutura assenta. Estruturas estas que sobreviveram ao sismo de 80, mas, quem sabe, não ao abandono da fajã. Parece ser uma questão de tempo para que a Ponte da fajã Redonda seja a única sobrevivente da costa norte. Infelizmente, a Ponte da Eirinha já se desmoronou e a Ponte do Sanguinhal está prestes a tal.

Depois deste magnifico exemplo de arquitetura popular, entrámos na Fajã Redonda exibindo, um pouco por toda a parte, uma vegetação densa. No entanto, é possível contemplar as paredes que suportam as combradas que se vê nas fotos das décadas de 40. Cada pedra aproveitada e encaixada no seu devido lugar como se tratasse de um puzzle 3D.

Assim, ao som da água pela ribeira abaixo, chego a mais um ponto de importância para estas fajãs – O posto de desnatação do leite e, dentro, a sua última maquineta em exibição como se lá tivesse ficado de propósito para contar a história daquele posto. Era aqui que o leite produzido pelo gado das fajãs, era levado para ser desnatado e posteriormente levado até à fábrica da Serra pelo trilho da escadaria – Quantos homens subiram apressadamente esse trilho, carregados com latas de nata para lá chegar a tempo de bater a manteiga e, mais tarde, o queijo?! O mesmo acontecia nas outras fajãs do Norte no Topo – o Leite que depois de desnatado era levado há pequena fabrica que existia nos Lameiros. Ainda há quem se lembre do João da Nata que todos os dias subia a rocha descalço com as latas de nata penduradas no pão que carregava ao ombro; ninguém era indiferente a espessura de pele dos seus pés ao qual se comparavam ao ‘casco de cavalo’.

De longe, vê-se a fajã do Sanguinhal coberta por um manto de vegetação. Já sem trilho claro, seguimos o rastos das cabras e, depois de montar as tendas, fomos à procura das casas, quase todas elas engolidas pelas faias e jarroca de velha. Valeu-nos a perícia do Zé Ricardo, que insistiu em fazer caminho para nos mostrar os mais magníficos casarões que alguma vez se construíram numa Fajã de S. Jorge. Casas viradas ao sol nascente, não fosse a alta e sombria a rocha do Norte. A grande maioria das casas da época foram construídas com pequenas fortunas vinda das Américas, de Jorgenses que quiseram partir, mas não resistiram ao chamamento da Fajã.

É difícil de explicar a misticidade e a imperturbável calma desta fajã! Algo que não se experiencia em qualquer outro lugar da ilha. Ao fundo, mira-se a Fajã da Caldeira de Santo Cristo. Do outro lado, observamos a imponente Costa norte do Topo, vestida por um intenso verde escuro. A chuva vai-nos salpicando a cara, mas insistimos em explorar. Admiramos as ombreiras; as grandes pias de lavar; os fornos; os pedaços de telhas ‘Marcela’ que ali jazem entre as árvores; as figueiras e a vinha competindo com as faias, que das frestas das paredes se erguem imponentes; as bóias (de ferro), do qual se faziam panelas, que ainda por lá existem como se estivessem à espera do seu artesão; os curraletes de vinhas que outrora fizeram o apreciado vinho e aguardente do Sanguinhal e dos quais já só resta um manto de monda; a água das fontes que continuam a correr para o rio de inhames que crescem a proporções nunca antes vistas nesta terra inhameira.

Entre nós, impera um silêncio de maravilhamento e de pesar. À medida que vamos passeando por entre as ruínas e apreciando cada detalhe nas suas ombreiras e fachadas, vem-me à memoria as ruínas do Angkor no Cambójia e as dos Maias em Tullum. Obviamente que estas estruturas, bem mais singelas na sua aparência, não se podem comparar aos impérios, no entanto, não deixam de ter um valor imensurável para a ilha de São Jorge. Ouso até dizer, o mais importante património cultural da ilha S. Jorge a implorar para que seja protegido e salvaguardado!

Mas, se já estava maravilhada pelas fajãs, mais fiquei na volta quando o Zé Ricardo nos deu a conhecer o trilho da Escadaria da Fajã Redonda, uma escadaria toda ela em pedra, como se estivéssemos num cenário de um filme épico. Não sei quantos degraus tem este trilho ou a sua distância, apenas sei que vai da Fajã até aos pastos. A grande maioria dos degraus está em bom estado, mas coberto pelo musgo e folhas mortas, alguns já nem se veem. Este trilho era conhecido como o ‘Caminho velho’, o que me leva a deduzir que tenha sido o primeiro trilho construído da fajãs há serra; possivelmente com umas boa centenas de anos?

À medida que ia subindo cada degrau perguntava-me: Como é possível este abandono… este esquecimento pelo legado que os nossos antepassados nos deixaram? Em qualquer outro lugar do mundo, esta escadaria faria parte de grandes eventos de aventura ou vídeos e cartazes promocionais.

O grande problema da ‘acessibilidade’ impede que os próprios Jorgenses possam conhecer o seu património a sua própria terra. Para a grande maioria de nos ir ao Sanguinhal fica apenas pela curta passagem que os barcos das Marítima turísticas fazem ao largo da Fajã aquando da volta a ilha.

Por fim, terminamos no trilho do Paraíso – trilho este, que como o nome sugere, tem as mais dramáticas e épicas vistas de S. Jorge. Tal como os outros trilhos, este também foi difícil de se fazer devido à sua densa vegetação. Por esta altura, já tínhamos desistido de cortar o que nos aparecia à frente e seguimos caminho a furar por entre os cedros e mantão. Um trilho quase todo a direito, virado para a Caldeira de Santo Cristo, contornando os cumes da serra.

Cada detalhe, ruína ou característica da fajã, por si só, pode não ter grande valor. É a soma de todo isto que faz com que estas Fajãs tenham imenso significado, um património humano, uma riqueza cultural para o povo de S. Jorge. Toda a área circundante da Fajã do Sanguinhal e da Fajã Redonda é uma oportunidade única de se implementar um espaço de caracter museológico, de proteção patrimonial que honra não só os seus antigos habitantes, mas acima de tudo nos pode distinguir das outras ilhas – Um projecto de integração beleza ambiental no património cultural; um modelo holístico, autêntico, focado no Turismo sustentável.

Obviamente que compreendo a complexidade burocrática que tal projeto possa englobar. Como alguém me disse – ‘É preciso dinheiro; é necessário ter engenho para arranjar dinheiro; são necessários regulamentos; dinheiro para: acessos, abastecimento de água, energia e recolha de lixo; dinheiro para corrigir erros …etc.’
Mas a meu ver, o grande obstáculo é a falta de interesse, a inércia, o contentamento a que já nos acostumámos. Sem interesse nada acontece e a fajã continuará ao Deus dará. É bem mais fácil ‘vender’ ou ignorar e, aos poucos, a simples inacessibilidade ser suficiente para destituir a fajã dos Jorgenses.

O abandono da Fajã e em especial dos seus trilhos por parte das entidades responsáveis governamentais é negligente aos interesses da nossa gente. Uma estratégia de desvalorização de espaço territorial que só beneficia aqueles com poder económico que anéticamente exploram e destituem as comunidades locais da sua identidade.

É urgente fazer da fajã do Sanguinhal um assunto prioritário nas agendas políticas e não continuar a ignorar a sua existência. Não podemos continuar a olhar a fajã de fora como se nada lá estivesse. Frederico Maciel disse, precisamos de líderes partidários que conheçam e saibam compreender a ilha e suas gentes, que tenham interesse, sensibilidade e vontade de defender o que nos define como Jorgenses.

Há medida que o tempo avança, a fajã vai sendo engolida pela Natureza, da mesma forma como a memória dos nossos antepassados vai-se diluindo, apagando no esquecimento coletivo Jorgense. ‘O nosso património contruído mais do que valor arquitetónico encerra a história da nossa comunidade e obriga-nos ao respeito pela luta e sacrifício dos nossos antepassados.’ É nosso dever individual e colectivo salvaguardar o pouco que o sismo de 80 nos deixou, seja este uma calçada, um forno ou uma ponte.

Sem memória, não há integração social, e sem integração social, não existe nem qualidade de vida nem desenvolvimento. Por isso, é de enorme importância ir ao encontro de projetos com foco na identidade local, isto, claro, se queremos vincular os jovens à terra; aliciar os emigrantes a voltar; distinguir-nos pela nossa singularidade ilhéu; valorizar e empoderar os nossos cidadãos, precisamos de diversificar e valorizar as nossas vivências.

Há muito mais para falar e descobrir sobre estas Fajãs, assim como todas as outras Fajãs do Norte do Topo. Louvo as iniciativas que o Concelho das Velas fez em relação às suas Fajãs, ao invés do que se tem passado no Concelho da Calheta, onde se promove o ‘desvinculamento’ à terra. Como se tem observado nos últimos anos, as Fajãs das Velas passaram a ser parte do roteiro turístico da ilha (e pertencem aos Jorgenses, não aos grupos hoteleiros). Dito isto, não defendo acessos a carros a estas Fajãs, mas sim, a classificação, manutenção e proteção de trilhos e ruínas; defendo a construção de um parque de campismo com condições mínimas para que os visitantes possam pernoitar; defendo um programa de proteção com um Centro de Interpretação que não fique apenas pelo vídeo do sismo de 80, mas que explore a história humana das Fajãs do Norte.

Não nos esquecemos da Fajã do Sanguinhal!

A mãe natureza dá, mas também tira! Talvez para algumas estruturas, como a Ponte do Sanguinhal, já seja tarde demais? Talvez seja este o começo de um plano de colaboração entre as entidades responsáveis e os próprios Calhetenses que, tal qual os seus antepassados, foram capazes de colaborar e autodeterminar o futuro da sua ilha.

/ Um especial agradecimento ao Zé Ricardo, José Brasil, Michael Cardoso, Gonçalo Tocha, Maurício e a todos aqueles que nos quiseram acompanhar mas não puderam nesta aventura.

Mauricio De Jesus
Maurício de Jesus é o Diretor de Programação da Rádio Ilhéu, sediada na Ilha de São Jorge. É também autor da rubrica 'Cronicas da Ilha e de Um Ilhéu' que é emitida em rádios locais, regionais e da diáspora desde 2015.