“Retalhos Soltos” para a História do Concelho da Calheta | Nasceu Lyra Jorgense há 135 anos, por Paulo Teixeira
Fajã de São João, 24 de julho de 2022,
Paulo Teixeira
É percursora das Bandas Filarmónicas na sociedade civil a organização militar, onde os instrumentos eram utilizados para emitir ordens. É a partir do século XIX que a organização dos agrupamentos musicais alcança um novo patamar marcante para a música e que leva ao surgimento das bandas filarmónicas civis.
Como refere Sousa “No espírito do liberalismo, vencedor após a guerra civil (1834) surgem no seio da sociedade civil, as Bandas de música das Sociedades Filarmónicas e de outras associações recreativas, que desempenharam um importante papel cultural e social nas aldeias, nas vilas e nas cidades, onde estas instituições funcionavam também como escolas de música numa relação muito próxima com os músicos militares. A maior parte dos maestros das bandas civis eram músicos militares e quase todos iniciavam a sua vida musical nas bandas civis de onde saíram grandes nomes da música, principalmente os executantes de instrumentos de sopro que constituíam a área artística dominada pelos músicos militares. Além deste contacto com as bandas de música civis, os músicos militares participavam na música religiosa, na música clássica e nas orquestras dos teatros.”
Nos Açores surgem as primeiras Bandas Filarmónicas na ilha de São Miguel e Terceira, mas rapidamente aparece em 1854 na ilha de São Jorge a Sociedade Filarmónica União Popular da Ribeira Seca, hoje a mais antiga em atividade no arquipélago; nas Velas surge em 1868 a “Filarmónica Velense” e ainda sob a égide de Concelho, surge no ano de 1869, em Vila Nova do Topo a Recreio Topense, hoje Clube União; na Vila da Calheta é feito um esforço e em 1877 nasce a Filarmónica Calhetense que duraria cerca de quatro anos com a sucessiva partida dos seus dois primeiros e únicos regentes.
Na zona do Topo vivem-se tempos de forte agitação política com a definitiva extinção do Concelho em 1 de abril de 1870 e com o surgimento do movimento de separação das freguesias na década de 1880 que acaba por dividir a população.
É no seio da luta para criação da freguesia/ paróquia de Santo Antão que se organiza a Confraria de Nossa Senhora de Lourdes, legalizada com os seus Estatutos em 1886. É esta organização que vai liderar o processo e concretizar todas as exigências necessárias como as obras na então Ermida, como a construção do cemitério e claro a constituição da filarmónica para abrilhantar as suas Festas do Espírito Santo e as diversas procissões religiosas.
A Confraria é presidida por Manuel Maria da Silveira Bettencourt e a Irmandade do Espírito Santo por João Silveira Leonardo. Ali para o fim do ano de 1888 João Silveira Leonardo regressa da Terceira com o papel que cria a Paróquia de Santo Antão e deita mãos à obra, faltando cumprir os passos na República e a respetiva publicação oficial, o que viria a acontecer em junho de 1889.
Mãos à obra! Manuel Maria da Silveira Bettencourt, natural da Prainha do Pico, casa e fixa-se em Santo Antão cerca de 1882. É um homem instruído e sabe música, tornando-se no mestre da Capela onde toca órgão, condição em que muitas vezes aparece a tocar a imagem de Lourdes no apadrinhamento das crianças de Santo Antão.
É este homem que ensina música aos rapazes de Santo Antão e que vai ser o mestre da filarmónica, entretanto denominada Lyra Jorgense, e um dos seus fundadores. Já nos anos de 1930 este mesmo homem regressa à sua terra natal para ajudar a formar a Banda da Prainha, onde hoje tem a sua foto como sócio honorário.
Em 1899 Manuel Maria muda-se para a Vila da Calheta, terá morado na casa que faz canto com a Rua Mariano Goulart e ex Travessa da Esperança. Pensamos que a Filarmónica terá ficado a cargo de Mestre Brasil, durante 30 anos seguidos! Manuel Alves Brasil era o secretário da Confraria de Nossa Senhora de Lourdes, presidida como já vimos por Manuel Maria, pelo que a sucessão parece muito lógica.
Em 1930 a filarmónica separa-se da Confraria, sob a presidência de José Inácio da Silveira. Terá sido nesta data que passa a chamar-se Recreio dos Lavradores, conforme referido na introdução dos Estatutos da década de 1950, ou mais concretamente em 1934.
Neste período Mestre Bento e José Silveira e Sousa terão desempenhado, também, as funções de regente. José Inácio era um homem e empresário dinâmico e que a seu tempo merece um retalho em sua memória. Quando faleceu tinha sido começada a sede da Recreio dos Lavradores, mas que não teve continuidade porque o doador do terreno faleceu, a viúva mudou de ideia, mas sobretudo porque José Inácio faleceu e faltou determinação para concretizar o que tinha sido combinado e começado.
A Sede própria viria a ser inaugurada em finais de 1970. Sem alongar, há que deixar uma nota aqueles músicos que antes e depois dos ensaios faziam blocos para se poder erigir o atual edifício.
Antes de concluir este texto temos o dever de elogiar as jovens e os jovens que nos últimos anos tem assumido os corpos gerentes da Recreio dos Lavradores – quantas vezes se ouve dizer que as coisas vão acabar porque os jovens não querem nada- bem, na Recreio dos Lavradores tem sido sobretudo os jovens a assumir com muita competência a liderança da instituição, apesar do forte despovoamento e envelhecimento da freguesia.
Na figura da atual Presidente, Ana Azevedo, homenageamos todos aqueles, sobretudo os jovens que tem contribuído para perpetuar a memória dos fundadores, dirigentes, músicos e simpatizantes que ao longo destes 135 anos continuam a fazer da Recreio dos Lavradores, uma instituição ao serviço da freguesia de Santo Antão, da ilha de São Jorge e dos Açores.
Os 135 anos ficam assinalados com a participação da Banda Filarmónica de Santo Espírito da Ilha de Santa Maria, que desfilou na sexta feira, juntamente com as duas filarmónicas do Topo, Clube União (1869) e Recreio Topense; a Recreio de São Lázaro, a mais jovem banda de São Jorge e a Recreio dos Lavradores. Seguiu-se concerto e que muito agradou aos presentes que encheram o salão de festas para ver a filarmónica que nos visitou de Santa Maria.
No sábado destaque para o desfile com a marcha oficial do festival de julho, a que se seguiu o concerto da Recreio dos Lavradores, encenado com momentos da história da instituição, num trabalho composto pelo mestre da filarmónica Aires Reis, que ensaiou e orientou, e que agradou à plateia que enchia o salão de festas e a cada oportunidade brindava os executantes com entusiasmadas ovações.
Sob a denominação de “Marcha do Tempo” aproveitou para se lembrar nomes e momentos como o mestre fundador, Manuel Maria Silveira Bettencourt; o compositor do Hino da Filarmónica, Leandro Silva; o incontornável Francisco de Lacerda; o escritor Norberto Ávila, neto do fundador da Recreio dos Lavradores José Guilhermino Soares, e em cujo sótão da sua casa terão sido feitos os primeiros ensaios no longínquo ano de 1888. O momento pioneiro em que pela primeira vez por cá se integraram mulheres na filarmónica. Foi em 1973 e contra a vontade do Padre Leonardo, foi a minha querida prima Mariana Teixeira Bettencourt que na sua irreverente juventude e coragem, tomou a iniciativa de ir falar com o Senhor Padre. Condição que foi colocada às meninas: – não podem vestir calças, tem de ir de saias! Assim Mariana, Luísa e Teresa quebravam uma barreira histórica.
Para terminar, em memória de todos quantos ao longo destes 135 anos construíram a história desta instituição felicitamos os seus corpos gerentes, os filarmónicos, os sócios e simpatizantes, parabéns pela comemoração que fez jus a tantos anos de existência.