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OPINIÃO | Um Jardim de Rosas Verdes: A marca de emigração na poesia açoriana, por Diniz Borges

Diniz (Dennis) Borges Portuguese Beyond Borders Institute-Director
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Saudade é uma roseira
Plantada no coração
Sempre verde, nunca seca,
Nem de Inverno, nem de Verão 
(Cancioneiro Popular Açoriano—ilha das Flores) 

Se é certo, como foi dito algures, que as antologias são praticamente tão antigas quanto a poesia, nos Açores contamos com algumas das mais completas antologias que marcaram as nossas vivências poéticas no meio do Atlântico Norte.  Pedro da Silveira trouxe-nos a Antologia de Poesia Açoriana do Século XVII a 1975, um trabalho importantíssimo com um prefácio que é, nas suas 42 páginas, um documento preciosíssimo de história e teoria literária.  E pelas mãos de Ruy Galvão de Carvalho tivemos A Antologia Poética dos Açores (I e II volumes).  Mais tarde, Eduardo Bettencourt Pinto trouxe-nos a antologia contemporânea Os Nove Rumores do Mar, entre outras e há 20 anos, precisamente em 2003, saiu a primeira edição de Nem Sempre a Saudade Chora, que teve segunda edição na Letras Lavadas em 2020.    É que todos sabemos, que praticamente todos os escritores açorianos, direta ou indiretamente, têm focado o fenómeno da emigração para as Américas.

Ao longo dos séculos, o nosso arquipélago foi porto de partidas e a emigração, principalmente—para o Brasil, os Estados Unidos, o Canadá e a Bermuda.  Estas partidas marcaram não só os que das ilhas saíram para terras do Novo Mundo, e lá plantaram raízes, semearam os nossos costumes e as nossas tradições, comungaram de outras culturas, dissemelhares e estranhas, transformando-os em outros seres humanos, em açorianos diferentes, em açorianos com hífens (açor-americanos, açor-canadianos, etc.), mas também marcou os que nas ilhas ficaram.

O momento da partida, que está solenizado no famoso e enigmático quadro de Domingos Rebelo, também tem sido cadenciado e suspirado pelas vozes poéticas mais conhecidas dos Açores, como podemos verificar em Almas Cativas de Roberto de Mesquita:

Vós outros que avistais, partindo, emocionados,
o pranto de quem tem olhos marejados,
aqueles que vos vão o seu adeus dizer

Com a partida ficaram alteradas para sempre muitas vidas.  Não foram apenas os que um dia deixaram a terra à procura de outras oportunidades, mas também aqueles que nas ilhas ficaram sentindo e chorando uma ausência, que quase sempre era definitiva. Aqueles para quem os seus mundos, mesmo na sua ambiência rotineira, tinham sido adulterados. Entre outras vozes, essa ausência é marcante no poema Carta para Longe de Armando Cortês Rodrigues:

Saudade é como o luar,
Que só de noite é que brilha
O muito que por ti choro
Nem tu sabes, minha filha.

A dor em que teu pai vive!
Basta olhar-lhe para o rosto…
Envelheceu… nunca mais
Para nada teve gosto.

Sobre as partidas e a modificação significativa nas vidas de quem ficou, e ainda dos tempos primordiais da nossa emigração, principalmente para os Estados Unidos e mais tarde para o Canadá, debruçaram-se alguns dos nomes mais conhecidos da poesia açoriana do século vinte.  As cartas, em que o emigrante contava as suas glórias e os seus dilemas, assim como o espanto de quem as recebia, e as lamentações e as ambições de quem as respondia, são pedaços preciosos da nossa criação poética.  Entre outras recorde-se algumas das mais expressivas em que os dilemas da emigração, nos seus múltiplos níveis e inquietações, são explorados — desde a estranheza das novas terras, seus usos e costumes, às encomendas que enchiam a casa dos que na ilha ficavam, até à inquietude de um êxodo imigratório poder modificar, significativamente, as vivências no nosso arquipélago:  Genuína Baganha de Vitorino Nemésio, a Carta de João Valente de Álamo Oliveira e  a Carta de Joe Simas de Marcolino Candeias. É que estas cartas, para além de serem obras de arte poética, são ainda documentos essenciais para se compreender a história social de uma época e de um tempo nas vidas dos açorianos dentro e fora dos Açores. 

Conta-me de brigas notícias de Norioque
que veio na talaveija e os papeles troiveram
de fitas faladas que viu em amaricano
áccidentes no faruei charefas leitarias
e diz que na América o passadio é outro.

E fala-me ainda de muitas porquidades por aquela
[América
sem pontos sem vírgulas e jamais assento em sua 
[aventura

(Marcolino Candeias)

A saca d’ncomendas,
Coas roipas que não usas,
Já chegou.  Não há imendas
Nem nas calças nem nas blusas.

E dizias que a mandavas
Não por ser de coisas raras;
Que eram roipas muito usadas.
Afinal, buas e caras.

Fica tudo como um prego
E cá dão-nos muito jeito;
Precisa apenas um reprego
Nos alvaroses de peito.

A roipa poliestra
Fica mesmo um assento.
Domingo da nossa festa
Farei grande luzimento.

E as suéras prós pequenos
Tamém ‘stão à desbancar…
‘Stão gordinhos e morenos
Cabritinhos a saltar.

Mas quem vai ficar caipora
É Maria, a minha dona,
Cum vestido de sinhora
Nem burrinha de atafona.

Seija pela vossa saúde!
(Tanta abundança nos dais!)
Que Deus sempre vos ajude
E depare cada vez mais

(Álamo Oliveira)

Ó terra de Calefórnia,
Não nos leves tantas filhas!
Daqui a nada, só temos
Pombos de rocha nas Ilhas…

(Vitorino Nemésio)

Neste corpus literário dos Açores também são notáveis os poemas que deram expressão às visitas do emigrante, ora visto com algum folclorismo, ora visto como um membro da família que se ausentara por muito tempo e daí a sua diferença.  Três excertos que nos falam dessas viagens de retorno, com perspetivas diferentes:  Alfred Lewis, na sua Carta; Pde. Mateus das Neves no Amaricano e João Teixeira de Medeiros em Regresso Tardio

Caro Amigo João,

Eu quando um dia,
For às Flores, à terra onde nasci,
Todo cheio de “prosa” e alegria
— Um rei em pequenez de colibri…

C’o meu “casaco grande” e guarda-sol
C’um bigode de palmo e fina calça,
A rir e a cantar qual rouxinol,
O brando “Three o’Clock” ou outra valsa…

(Alfred Lewis)

Voltou de terras estranhas
À sua terra natal,
Com saudades tamanhas
Da sua infância rural.

Entrou risonho e contente
No pobre lar que deixou;
Tudo estava tão diferente,
Que ele, dif’rente, chorou.

(João Teixeira de Medeiros)

Eis mais um “amaricano”
Acabado de chegar
Dessa América distante,
Onde esteve a trabalhar.

Vem obeso, corpulento,
Rechonchudo, bela cor,
Bem vestido e bem calçado
Dizem elas:  um amor.

Na cabeça chapéu mole
Com peninha de pavão,
Um relógio todo de oiro,
Já tem ares de patrão.

(Pde. Mateus das Neves)

A viagem da poesia açoriana pela experiência da emigração também inclui alguns poetas que, vivendo no estrangeiro, contaram as suas experiências, quer no aspeto nostálgico de viver a ilha à distância, quer na assimilação às novas terras.  Essa mistura, que enriqueceu a nossa literatura, é sentida nos cânticos de poetas residentes no território nacional, mas que, ao participarem em congressos e colóquios, sentiram e enalteceram nossa vivência entre dois mundos, como Vasco Pereira da Costa, cuja obra inclui o livro My Californian Friends, o qual poderia ter sido reproduzido na íntegra nesta antologia, por ser um livro único na poesia dos Açores, e emigrantes como: Avelina da Silveira, Eduardo Bettencourt Pinto, Maria das Dores Beirão e José Francisco Costa, entre outros.

Mas faz com que as filhas em Coroação
cantem sempre o Paráclito e o júbilo da vida.  Entende
na Tua sabedoria infinda procura perceba a língua delas
Holy Ghost my brother my Californian friend

(Vasco Pereira da Costa)

Foi há tanto tempo que parti…
As palavras custam a vir,
como se eu as quisesse articular mas houvesse uma pedra
na garganta.

A voz lusitana escorre sem que dela eu beba,
Quase alien, porque já não sonho em português.

Palavras, words, mots perdus…
Labirintos de imagens onde me perco
Na ânsia de chegar à outra margem de mim.

(Avelina da Silveira)

Como já foi dito muitas vezes e por muitas pessoas, os Açores não seriam os mesmos Açores sem as experiências e as vivências da nossa emigração para as Américas, também a literatura açoriana não seria, definitivamente, a mesma literatura sem a marca pungente do nosso mundo de partidas e chegadas, ou como escreveu Vasco Cordeiro na nota introdutória à segunda edição: “Nem sempre a Saudade Chora é, também um sinónimo de força e perseverança, de empenho e de luta, Saudade nem sempre chora; muitas vezes ela é, por si, só, a alavanca para a conquista e a expressão de sucesso.”  

Fechado, como parece que está, o ciclo da emigração açoriana para as terras do Novo Mundo, porque os países de acolhimento estão praticamente fechados e os jovens açorianos estão mais vidrados para a Europa, agora que, como escreveu Pedro da Silveira,  já o mar não é caminho de emigrantes, é importante refletir-se nessa trajetória que fizemos e nas suas repercussões para a história e para as letras da nossa, hoje, Região Autónoma dos Açores.  Autonomia que tem tido os seus vales e montes, tal como ainda vimos, recentemente no debate do Parlamento Regional.  Ao atingirmos duas décadas depois da primeira edição de Nem Sempre a Saudade Chora, continuo a achar que é importante celebrarmos a totalidade da nossa identidade, e enaltecermos as vozes dos Açores que souberam cantar um período na nossa história em que, como escreveu Almeida Firmino, lá estava: sempre vazio o teu lugar à mesa e a tua voz cada vez mais distante.

*título de uma quadra do cancioneiro popular sobre a saudade da Ilha Terceira 

Mauricio De Jesus
Maurício de Jesus é o Diretor de Programação da Rádio Ilhéu, sediada na Ilha de São Jorge. É também autor da rubrica 'Cronicas da Ilha e de Um Ilhéu' que é emitida em rádios locais, regionais e da diáspora desde 2015.