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OPINIÃO | “Retalhos Soltos” para a História do Concelho da Calheta: Uma História de Emancipação Feminina, por Paulo Teixeira

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Fajã de São João, 2 de maio de 2025
Paulo Teixeira

Em 1932, chega à sua freguesia natal Padre José da Costa Leonardo, para ser o novo pároco de Santo Antão. Um cargo que ocuparia até ao sismo de 1980, sendo que, na Califórnia, se chegou a rezar missa por sua alma, achando-se que era uma das mais de duas dezenas de vítimas mortais desse fatídico dia 1º de janeiro, em que às 16h40 a terra tremeu, mudando para sempre as freguesias do Topo e Santo Antão, na ponta leste da ilha de São Jorge.

Padre José da Costa Leonardo (1905-1993) era, necessariamente, um conservador zeloso, que ascendeu às funções de Pároco de Santo Antão sensivelmente na mesma altura em que, na República, António Oliveira Salazar assumia a Presidência do Conselho, mas que haveria de lhe sobreviver doze anos nas funções, com as vicissitudes que se acumulam com a longevidade do exercício de quarenta e oito anos à frente da paróquia e numa época diferente, conforme recordava Padre Dinis Silveira há quatro anos, no dia do “Bom Pastor” sobre a obra de Padre Leonardo.

Naquele tempo, a primeira autoridade local era o Padre – nem junta de freguesia nem regedor – e José da Costa Leonardo, sendo o homem enérgico que era, não deixava o seu crédito por mãos alheias e as suas regras eram para cumprir.

Participar na eucaristia implicava que os homens ficassem separados das mulheres, ocupando a parte de trás do templo, um espaço, inclusive, limitado por portão, enquanto as mulheres ocupavam a parte da frente, sujeitas a rigoroso código de apresentação:

Obrigatório usar saia, mas proibida a mini saia.
Obrigatório cobrir a cabeça com o véu.
Proibido usar decotes.
Proibido expor os ombros.

De alguma forma, olhamos para a mulher muçulmana e quase podemos imaginar a cristã há alguns anos atrás. Ora, o incumprimento de uma destas regras levava à expulsão do templo ou à recusa da comunhão. Até mesmo um excesso de pintura facial ou simplesmente de batom poderia gerar o mesmo efeito, como testemunhava minha mãe, Jacinta Teixeira, que lembra como a irmã Gloriana e mãe da Mariana, a tinha alertado, quando em visita a Santo Antão, servia então na ilha Terceira, se apresentou na missa com os lábios ligeiramente retocados com um: – “não te vai dar Nosso Senhor e vai-te expulsar!”. Nesse dia não houve expulsão.   

Levava o Padre José da Costa Leonardo o pastoreio do seu rebanho tão seriamente que casal que não tivesse filhos a seguir ao casamento era logo chamado à atenção pelo seu diligente pároco com uma reprimenda: “vocês estão a pecar”.  Em 1972, já os ventos de abril contaminavam o ar que se respirava, também, num longínquo e isolado território na ponta leste da ilha de São Jorge, onde uma jovem admirava cada nascer de sol com a esperança de ter mais liberdade de participação em atividades que estavam vedadas ao sexo feminino.

            Esta jovem, nas suas frescas dezoito primaveras, queria fazer parte da filarmónica de que o seu bisavô tinha sido fundador, músico e mestre. Na qual o pai tocava bombo (tinha começado no clarinete) e o irmão Cristiano, trompete. Manifestou a sua vontade ao padrinho, também ele músico, que concordou com a estimada afilhada.

Já a mãe foi pronta a dizer que não, mas valeu o pai, António Inácio Bettencourt (António Bento), que, refletindo, achou que “o saber não ocupa lugar” e quanto mais soubesse melhor podia escolher.

            Mariana de Lourdes Bettencourt estava feliz e determinada. E com essa motivação convenceu a prima Luísa Bettencourt e a amiga Teresa Brasil para a acompanharem nesta odisseia. Depois, foi falar com o Presidente da Sociedade Filarmónica Recreio e Progresso dos Lavradores, o Senhor Artur Nascimento Armelim, que acabou por concordar, mas faltava conseguir a anuência do Exmo. Reverendíssimo Padre José da Costa Leonardo. A questão que se colocava era a de quem é que ia falar com o Padre Leonardo, pois Artur Nascimento foi logo dizendo que por si, nem pensar.

            Aquela jovem estava determinada e, munindo-se da coragem que conseguiu reunir, procurou sua Excelência, colocando a intenção de tal forma que o Padre Leonardo só levantou duas questões:

            – Como vão fardadas?

            – Na missa como é? 

Resposta pronta na ponta da língua de que usariam saia e que na missa levavam um véu para resguardar a cabeça, foi quanto chegou para receber a decisão de Padre Leonardo: – Então está bem.

A instrução da Mariana ficou a cargo do padrinho José Lourenço de Oliveira, ou simplesmente Laureano, meu pai, do mestre Flávio Leonardes e em casa ainda recebeu instrução do próprio pai, António Bento, que tinha começado por tocar clarinete, tal como as meninas agora tocariam. A instrução da Teresa e da Luísa teve, além do Laureano e do Flávio, o apoio do Horácio Manuel Sousa, ex presidente da Recreio, da Junta de Freguesia e da Casa do Espírito Santo.

Como raparigas decididas que eram, a aprendizagem foi feita com muito empenho e afinco, de modo que, pelos jantares do Espírito Santo de 1973, a Recreio dos Lavradores apresentava-se a desfilar com os três primeiros elementos femininos a incorporarem uma filarmónica, naquele que foi o território de Guilherme da Silveira, o extinto Concelho de Vila Nova do Topo.

A Mariana emigrou, tal como a prima Luísa e a amiga Teresa, mas esteve recentemente na ilha de São Jorge, e, ainda que por muito breve período de tempo, foi-nos possível desfrutar de momentos de grande qualidade, ao longo de um singelo jantar de lapas e sopa de peixe.

A Recreio dos Lavradores tocava no dia seguinte e, sem dizer nada, tive a esperança de que aquela jovem pudesse estar presente para ser cumprimentada com o bonito Hino da Filarmónica, composto na década de 1930 por Leandro Silva. Prestando, assim, merecida homenagem à jovem que há mais de 50 anos teve a ousadia de dar corpo ao sonho e rasgar caminho, emancipando a participação feminina em território reservado aos homens.

No meu pensamento, recordava as palavras da Mariana de que tinha tocado pouco tempo, mas que se tivesse continuado na ilha, que tinha a certeza de ainda estar a tocar na filarmónica e imaginava a contar a história aos nossos jovens, inspirando-os a lutarem por aquilo em que acreditam e a ultrapassarem os obstáculos que a sociedade instituída cria.

Desta vez não aconteceu, mas em jeito de memória futura, resolvi fazer este pequeno retalho que há-de ter lugar num qualquer cantinho da colcha da nossa história.

Um bem-haja a estas três jovens, que há 52 anos corajosamente engrossavam as fileiras da Recreio dos Lavradores e mostravam à sociedade que os usos e costumes podem mudar, como mostrou o Papa Francisco ao longo do seu pontificado, que termina com o seu falecimento e a que junto os meus votos de pesar pela partida de uma voz de raciocínio equilibrado e inclusivo, esperançado que o seu sucessor possa ter a mesma coragem de conduzir a igreja nos tempos conturbados que o mundo enfrenta.   

Mauricio De Jesus
Maurício de Jesus é o Diretor de Programação da Rádio Ilhéu, sediada na Ilha de São Jorge. É também autor da rubrica 'Cronicas da Ilha e de Um Ilhéu' que é emitida em rádios locais, regionais e da diáspora desde 2015.