DIÁSPORA

OPINIÃO | Dos Ramos à Raiz, por Diniz Borges

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Há que contar as estórias da nossa história
Em toda a parte a marca dos teus passos, pioneiro.

Pedro da Silveira, do poema Êxodo

Partiam com pouco, muitos sem nada a não ser um saco cheio de sonhos.  Foram aventureiros, em todo o sentido da palavra, os primeiros emigrantes destas ilhas para terras americanas, particularmente para a Califórnia que ficava, e em muitos aspetos ainda fica, nos confins da nossa Diáspora açoriana. Chegaram em barcos baleeiros e mais tarde atravessaram como tantos outros imigrantes, o continente americano nos “carros de fogo”, como então chamavam o comboio. Fizeram das tripas o coração e em terra de ninguém constituíram família, plantaram raízes e contribuíram imenso para a construção do estado da Califórnia, mantendo as suas raízes açorianas, particularmente com os festejos e as tradições mais populares vindas de outros espaços e outros tempos.  Parafraseando Álamo Oliveira no romance Já não Gosto de Chocolates: a América dava-nos o que a ilha não nos dava. Desde então que se foi construindo a nossa Diáspora.  Se é verdade que muitas histórias se perderam no tempo, também não é menos verdade que ainda há muitos registos e que esses têm de ser cuidados, arquivados e partilhados com a sociedade em geral.  É tempo do multiculturalismo californiano conhecer as nossas vivências, os nossos triunfos e os nossos desafios. 

Há décadas que ando a propor ( e outros também) um maior envolvimento das nossas comunidades no mundo americano.  Na realidade estamos nesse mundo, particularmente no que concerne às segundas, terceiras e sucessivas gerações.  E até mesmo o imigrante.  Estamos nesse mundo no que concerne às nossas carreiras profissionais, aos nossos negócios, ao nosso quotidiano.  Qualquer empresário de sucesso só o é porque vende ou negoceia com o mundo americano.  Qualquer advogado, dentista, contabilista, professor, administrador, só tem sucesso porque penetrou o mundo americano.  Esse mesmo espírito tem de ter presença no mundo cultural, no nosso movimento associativo, nas nossas tradições, desde as mais populares até às mais eruditas.  Temos de contar a nossa história, que não é só a história de Portugal, é a história de Portugal na América, um Portugal que só é conhecido no mundo californiano pelo terreno que andamos a lavrar há mais de 150 anos.  E desse lavramento existem muitas histórias por contar.

Termos o nosso lugar no mundo americano é termos presença no mesmo.  Daí ser imperativo assegurarmos cada vez mais a nossa presença nos espaços que contam a história dos estados e das regiões onde vivemos na Diáspora açoriana em terras americanas.  Um desses espaços, que só em algumas comunidades temos sabido utilizar, são os museus, que nas pequenas e grandes cidades americanas dedicam-se a contar as histórias étnicas de um país que finalmente começa a aceitar e a promover o seu multiculturalismo. Há um trabalho a fazer-se nesse sentido.  Há que o fazermos com a nossa criatividade e a nosso espírito empreendedor. 

É o que está a acontecer com uma exposição lançada a 27 de janeiro de 2023 no museu Carnegie, na cidade de Hanford, condado de Kings, um dos condados do Vale de São Joaquim com uma forte presença portuguesa.   O Condado de Kings tem cerca de 155 mil habitantes. A maior cidade é Hanford que é o centro governamental do condado. A população de origem portuguesa, segundo os dados do censo americano é na ordem dos 9 mil, portanto cerca de 7% da população tem raízes no arquipélago dos Açores.  Entretanto dois dos cinco supervisores do condado são de origem portuguesa (já chegamos a ter três de origem portuguesa); o congressista que representa este condado em Washington, é filho de emigrantes, ambos da ilha Terceira, David Valadão; o Diretor das escolas publicas do condado é neto de emigrantes, Tod Silveira Barlow e o diretor das escolas secundários do maior distrito neste condado é filho de emigrantes da ilha do Faial, Victor Rosa.  É ainda aqui que existe uma variedade de negócios de famílias de origem açoriana, não só na agropecuária, mas no comércio e nos serviços. 

             Essa história que começou no último quartel do século XX, está a ser contada através de uma série de exposições que traçarão o perfil da presença portuguesa neste pequeno condado da Califórnia, pequeno em termos populacionais, porque em território ocupa cerca de 3600 km2.   Desde 27 de janeiro aos fins de abril são as histórias dos pioneiros.  Uma magnifica exposição, onde estão inseridos os painéis da Associação dos Emigrantes dos Açores, contando as nossas ligações ao mundo americano, e dando enfase a meia-dúzia de famílias das ilhas Terceira, São Miguel, São Jorge e Pico.  Famílias que vieram nos fins do século XIX ou nos primeiros anos do século XX.  A segunda exibição, que estará patente entre maio e agosto, dará enfase às tradições e celebrações culturais que os emigrantes plantaram e os seus descendentes têm cuidado ao longos de mais de um século.  A terceira exibição terá como tema os contributos dos emigrantes dos Açores e os seus descendentes para o condado de kings na agricultura, nas mais variadas indústrias, nas artes, na política e no ensino.

            Esta exposição é um exemplo do trabalho que cada comunidade, no museu da sua cidade ou da sua vizinhança terá de fazer para destacar os nossos contributos.  Há que levar as nossas vivências para o âmago do mundo americano.  Não podemos ficar estigmatizados num gueto social e cultural.  Se é importante que contemos a nossa história coletiva aos nossos filhos, netos e bisnetos, também é essencial que a mesma seja contada aos filhos, netos e bisnetos dos nossos vizinhos e amigos de outras etnias e outras culturas.  A nossa missão terá de ser dupla: abrirmos o nosso movimento associativo (para além do aluguer do espaço) a todo o multiculturalismo americano e estarmos de pleno direito nos espaços que são partilhados por todos quantos compõem essa multiculturalidade.   Se já alugamos os nossos salões a outros grupos étnicos (aliás sem esses alugueres muitos salões fechariam), então teremos de criar espaços para esses utentes também estarem presentes nas nossas festividades, nas nossas manifestações culturais. Nesses espaços onde não só vivemos a nossa identidade, mas contamos a nossa história.  Numa sociedade multicultural as nossas narrativas só podem sobreviver se fizerem parte das narrativas dessa mesma sociedade.

            Apesar da presença que os açorianos e seus descendentes têm tido no condado de Kings, no centro/sul do Vale de São Joaquim, acredito que este momento só aconteceu, por motivos de uma nova aurora que desperta nos açor-descendentes e pela insistência dos curadores Kathi Mendes Gulley e Michael Semas, ambos netos de emigrantes açorianos.  É que uma exposição é sempre um grande compromisso de um museu, porém um ano com três exposições dedicadas às nossas vivências, e onde se falará do passado, mas também do presente e do futuro, é um marco histórico. 

            Batizada com o nome português Retalhos, a exposição, ou série de exposições, no museu Carnegie do condado de Kings, é um acontecimento relevante na vida da nossa Diáspora na Califórnia, e particularmente significativa quando as nossas comunidades se transformam.  A grande percentagem da maior comunidade de origem açoriana num estado americano, e numa província canadiana, é, na sua vasta maioria composta por açor-descendentes, e não por emigrantes dos Açores.  Se é verdade que na Califórnia, praticamente todos os dias morre um emigrante açoriano, e não temos nova emigração, não é menos verdade que ficam filhos e netos que precisam de ser cuidados e precisam de, no seu mundo americano, terem espaços onde possam levar os seus rebentos, contar-lhes a sua/nossa história e perpetuarem o legado dos que todos os dias fecham os olhos ao mundo.

            Exposições das nossas vivências e dos nossos contributos para o mundo americano em museus das nossas cidades, um movimento associativo que se abre ao multiculturalismo com as suas festas e tradições, a presença dos nossos artistas em palcos do mundo americano, as nossas artes e letras em publicações universitárias e do espaço cultural do chamado “mainstream”, o ensino da língua portuguesa nas escolas do ensino público americano, uma comunicação social mais aberta às realidades de uma diáspora e não de uma comunidade dispersa, um movimento cultural que invista na investigação e na publicação das nossas vivências em termos históricos, sociológicos e antropológicos são absolutamente fundamentais para a transfiguração que se vive na Diáspora açoriana no estado da Califórnia, e diria em todo o continente norte-americano.  Como diria José Saramago: não tenhamos pressa, mas não percamos tempo.

*excerto de um poema de Natália Correia

Fotografia de Gary Feinstein

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