OPINIÃO | De palavras e de amores: As biografias como história da nossa Diáspora, por Diniz Borges
O amor e a compaixão são necessidades, não luxos.
Sem eles, a humanidade não pode sobreviver.
Dalai Lama
A arte da biografia faz parte da história da humanidade há mais tempo do que a própria escrita. As antigas histórias e sagas orais, como escreveu Nigel Hamilton no livro seminal Biography, a brief history: “respondiam a uma variedade de necessidades sociais, desde a ligação de parentesco ao entretenimento de grupo”. A biografia, uma forma de literatura, como nos dizem os dicionários, é normalmente considerada não-ficcional, cujo tema é a vida de um indivíduo. Sendo uma das mais antigas formas literárias, muitas vezes esquecida ou desprezada devido às muitas biografias ditas não autorizadas, cujo único objetivo é contar inverdades e vender livros a qualquer custo, o género biografia procura recriar em palavras a vida de um ser humano, não isoladamente, mas no contexto da história e da cultura que nos liga ao nosso mundo. Como escreveu Edmund White: “enquanto a ficção é uma descoberta contínua do que se quer dizer, do que se sente. É pois, nesse sentido, uma arte performativa. A biografia exige outras competências – pesquisa e organização.” Menina e Moça do Coração é uma biografia. Uma biografia que traz à tona a pesquisa e a organização em uma diagramação exemplar e bem escrita, que instiga o leitor a saborear cada parágrafo e cada frase com atenção. O tema desta biografia, é uma emigrante, uma amiga da Diáspora e dos Açores, Lúcia Noia, viveu uma vida, magistralmente descrita pelas palavras da poeta brasileira Cora Carolina: Eu sou aquela mulher que subiu a montanha da vida, tirando pedras e plantando flores.
Desde o seu início na literatura ocidental, com os escritos do poeta Íon de Quios, que escreveu breves biografias de contemporâneos famosos, como Péricles e Sófocles, as biografias continuaram a ter um papel significativo até à dissolução do Império Romano. Como sabemos, os dois mais notáveis mestres do mundo mediterrânico clássico, Sócrates e Jesus Cristo, motivaram a criação de magníficas biografias escritas pelos seus seguidores. Depois de grandes biógrafos como Plutarco, Suetónio e o historiador Tácito, a arte da biografia, com o crescimento do cristianismo, foi forçada a servir outros fins que não os seus próprios. Seguiu-se a chamada “obscuridade biográfica” da Idade Média. Tal como outras artes, a biografia ganha uma vida nova e uma nova frescura com o Renascimento. Na Inglaterra, escritores como Thomas More, com a sua biografia, History of Richard III, deram início à biografia moderna. Nos séculos XVII e XVIII aparecem esporadicamente, sendo a mais seminal e uma das mais lidas a obra de James Boswell, intitulada: Life of Samuel Johnson. O século XIX continuou esta tendência. Nos Estados Unidos, a escrita de biografias por escritores proeminentes, como Washington Irving e Henry James, foi fundamental para o crescimento e aceitação do género. O século XX inaugurou uma nova era na biografia moderna, especialmente após a Primeira Guerra Mundial. Ao longo deste período e até à era pós-moderna atual, o principal objetivo das biografias, como escreveu Nigel Hamilton, é dar ao leitor: “uma visão do caráter humano, da experiência da vida e da emoção humana, como guias para a nossa complexa autocompreensão”.
Menina e Moça do Coração, uma biografia bilíngue com o título em inglês de Free-Spirited and Young at Heart, traz-nos certamente as perceções e experiências vividas por uma açoriana notável, Lúcia Noia. Álamo Oliveira, escritor com uma vasta experiência e talento, é, como se sabe, um poeta prolífico e profundo nos Açores e no mundo lusófono. Autor com inúmeras obras de ficção publicadas em português e traduzidas para inglês e japonês, escreveu mais uma grande obra. Uma que podemos saborear em português e inglês graças à talentosa tradução dos meus amigos e colegas José Luis da Silva e Katharine Baker. Esta biografia, com um esboço gráfico aliciante, feito pelo editor Tony Goulart, com uma capa desenhada por um dos melhores artistas dos Açores, Rui Melo, é um verdadeiro testemunho das sábias palavras de Ralph Waldo Emerson: “sermos nós próprios num mundo que está constantemente a tentar fazer de nós outra coisa é a maior realização.”
A biografia de Lúcia Noia começa com a celebração realizada no Dante Club, na cidade Fresno, no centro da Califórnia, onde a autora descreve o ambiente e os vários pratos de comida, nomeia os artistas musicais e define vividamente as decorações, as cores e a beleza que transparecem naquela noite quente de junho de 2016. Um calor que não foi apenas provocado pela temperatura abrasadora dos verões no Vale de São Joaquim, mas também pelas palavras que muitas pessoas pronunciaram sobre Lúcia Noia. Naquela noite mágica em que a homenageada, graciosamente me convidou para dizer algumas palavras, tentei, humildemente, num delineamento relativamente breve (bem, talvez não tão breve), fazer o impossível: falar sobre a Lúcia e a sua vida ao serviço dos outros, incluindo as suas influências e a forma como o mundo à sua volta influenciou quem ela se tornou. Sim, a mulher de espírito livre e coração jovem, e a mulher fenomenal, o título de um poema eloquentemente escrito sobre a feminilidade por Maya Angelou. Um poema que foi lido durante essa noite encantada. Essa ligação entre os acontecimentos mundiais, as artes e o apelo à justiça social, à liberdade e à dignidade que tentei fazer nessa noite é, sem dúvida, bem pormenorizada e perfeitamente delineada por Álamo Oliveira nesta biografia. Parafraseando o escritor e filósofo Thomas Carlyle: “nenhuma grande pessoa vive em vão. A história do mundo não é senão a biografia das grandes pessoas.”
Menina e Moça do Coração, Free-Spirited and Young at Heart traça a vida e as experiências extraordinárias de Lúcia Noia, do Faial à Terceira, da Terceira ao Ontário – no Canadá, do Ontário à Califórnia e de várias cidades da Califórnia a Fresno. Álamo Oliveira termina o seu texto com uma síntese intitulada “As razões da razão – uma explicação literária comovente”. Um livro que, como escreveu Walt Whitman num dos seus poemas mais famosos, não é apenas sobre Lúcia Noias, mas sobre como a Lúcia tocou muitas outras vidas: “Eu celebro-me e canto-me,/E o que eu assumo, vós assumireis,/Porque cada átomo que me pertence é tão bom como o que vos pertence a vós.” As restantes páginas são uma compilação da cobertura da imprensa, onde lemos entrevistas e artigos muito esclarecedores, reconhecimentos, homenagens, um exemplo dos seus escritos e uma coleção de fotografias que nos trazem o lado privado e o lado público de Lúcia Noia. De facto, este livro é expositivo do que V. S. Naipaul disse algures: “A grande escrita pode ser feita na biografia.”
Há alguns anos, Robert Vare, editor da revista Atlantic, escreveu um artigo muito esclarecedor sobre a escrita criativa e a arte da biografia. Afirmou que se trata essencialmente de: “uma forma híbrida, um casamento entre a arte de contar histórias e a arte do jornalismo – uma tentativa de fazer drama a partir do mundo observável.” Álamo Oliveira contou uma história que vai para além dos factos e das datas e, nesta fusão, deu-nos uma estória que se pode ler como um romance. Como já foi dito e documentado, as fronteiras da escrita criativa serão sempre tão fluidas como a água. Uma leitura atenta de todas as componentes deste livro, incluindo os vários testemunhos de entidades públicas, líderes comunitários e cidadãos particulares que conhecem Lúcia Noia, levar-nos-á à conclusão que Sócrates terá pronunciado há milhares de anos: “Não sou ateniense nem grego, mas um cidadão do mundo.”
De facto, a Lúcia não é apenas uma faialense, uma açoriana, uma luso-canadiana ou uma luso-americana. É uma cidadã do mundo. E é, como o livro atesta, uma cidadã realizada, porque como escreveu Ralph Waldo Emerson: “rir muitas vezes é muito; ganhar o respeito das pessoas inteligentes e o afeto das crianças; ganhar o apreço dos críticos honestos e suportar a traição dos falsos amigos. Apreciar a beleza; encontrar o melhor nos outros; deixar o mundo um pouco melhor, seja através de uma criança saudável, de um jardim ou de uma condição social redimida; saber que até mesmo uma vida teve um fôlego mais fácil porque você viveu. Isto é ter sido bem sucedido”.
A Lúcia floresceu. Para mim, que a conheço e admiro há cinco décadas, ela será para sempre uma jovem de espírito livre. Estará, sem dúvida, para sempre nos nossos corações. Este livro fará com que ela faça parte das nossas famílias durante muitas gerações!
*De um poema da Biografia da Lúcia