Tudo como quem embarca
para o último porto da memória.
Pedro da Silveira in Regresso
A emigração açoriana (sim, açoriana porque é de todas as ilhas) para a Califórnia, data, como se sabe o século XIX. Já então marcávamos presença em muitas cidades, pequenas e grandes, deste estado. Basta olharmos à literatura açoriana, e de uma forma particular à poesia de Pedro da Silveira, cujo centenário estamos a celebrar para ver, que as Califórnias perdidas de abundância, foram – quem sabe se ainda são – uma parte importante do nosso imaginário. Num tempo em que se pensava em termos de ilha, e não de arquipélago, em que se distinguiam diferenças, algo sempre nos uniu: os primos da América. O mundo vivido em todas as ilhas, de muitas partidas e poucos regressos. E o trajeto de muitos acabava de ser o Eldorado americano. Ainda hoje a presença açoriana na Califórnia é salutar. Ainda é o estado com maior número de açorianos e açor-descendentes. São cerca de 350 mil os californianos que se identificaram como sendo de origem portuguesa, nos números que ainda são os oficiais – daqui a poucos meses teremos os do censo de 2020. Desses, cerca de 90% vieram ou têm raízes neste arquipélago. Como tenho dito, repetidamente: só se entende a comunidade de origem portuguesa na Califórnia, entendendo-se os Açores.
Segundo os dados da companhia de dados demográficos ZipAltas, também baseados no censo americano, existem 934 cidades que têm população de origem portuguesa, ou seja, de origem açoriana. Hilmar, com cerca de 7 mil habitantes, tem uma população de origem portuguesa, quase toda com origens nos Açores, que ronda os 30,2% e é décima‑primeira cidade americana mais portuguesa em termos de percentagem da sua população. E com a maior percentagem de portugueses na Califórnia. As cidades seguintes, percentualmente falando, a nível de residentes de origem portuguesa são: Crows Landing com 29,8%; Gustine com 27,6%; Stevinson com 20,2%; Tipton com 14,6% e Newman com 13,8%. Das médias cidades californianas, ou seja, as que têm entre 50 a 90 mil habitantes, Tulare é a primeira, em termos percentuais, com 9,8%; Hanford em segundo lugar com 9,6%; Turlock com 8,11%; e Manteca com 5,9%, todas no Vale, onde como escreveu Pedro da Silveira: “o suor da nossa gente fertilizando a terra / do San Joaquin Valley! / Os nossos irmãos…/ ergueram vilas e cidades na pátria estrangeira.” ‘
Outras cidades, também extremamente conhecidas pelas suas dinâmicas comunidades, algumas pelas sus festas, têm percentagens variadas. Eis alguns exemplos: Artesia com 9,6%; Los Banos 7,6%; San Leandro 5,5% Livingston com 4,6%. Existem outras zonas onde a população de origem portuguesa tem decrescido devido às mudanças para outras zonas, como no Chino, onde a população de origem português é de 1,8% 76 mil habitantes e Santa Clara na ordem dos 3,5%.
Nas grandes cidades californianas, as seis maiores cidades deste estado, apesar de em algumas termos comunidades vitais e extremamente ativas (outras nem tanto) as percentagens são, obviamente, muito mais pequenas. Na maior cidade Los Angeles, com cerca de 4 milhões de habitantes a população de origem portuguesa é de 0,08% (e aqui até há uma maior percentagem de portugueses com origem em Portugal continental, alguns como funcionários das industrias conhecidas dessa cidade, na segunda maior cidade da Califórnia San Diego, a percentagem é de 0,63%, uma zona que tem uma das maiores comunidades com origem no arquipélago da Madeira; na terceira maior cidade da Califórnia, San José a percentagem é de 1,6%; San Diego, na quarta maior cidade, São Francisco, 0,44%; na quinta maior cidade da Califórnia (recentemente descrita como uma zona muito rural – tem 550 mil habitantes- afirmação muito infeliz) a percentagem é de 1,09%; na sexta maior cidade, Sacramento, a percentagem é de 1, 08%.
Como curiosidade o vale de Yosemite que tem 1740 habitantes possui uma percentagem de portugueses na ordem dos 0,82%, Palm Springs 0.03% e a cidade com o menos índice de portugueses, porque há cidades que registaram zero, foi a cidade de Bell, no sul da Califórnia, com uma percentagem de 0.01% dos seus cerca de 107 mil habitantes.
Se os números governam o mundo como o disse Platão, é importante que saibamos estes números, que tomemos consciência dos mesmos, que os utilizemos a nosso favor. É que são estes os números que as entidades americanas usam para determinar serviços, apoiar grupos étnicos, entre muitas ouras realidades. E o que estes números nos dizem é que há zonas que estão subaproveitadas e há outras que por mais que nos esforcemos pouco se poderá fazer, a não ser que haja uma nova onda emigratória dos Açores, e todos sabemos que é pouco provável, porque como escreveu Pedro da Silveira: “nas nossas ilhas ergueremos / o sonho que te negaram. O nosso mundo.” E estes números serão ainda mais importantes com as mudanças demográficas que a Califórnia vive. Aliás, esse é um dos nossos problemas principais: a diáspora açoriana, madeirense e portuguesa na califórnia não é a mesma de há 10 anos, muito menos de há 25 anos e teimamos em fazer o que fazíamos, nessas décadas. Os números dizem‑nos que temos de olhar para a nossa presença numérica no mundo californiano, e capitalizarmos em algumas zonas, particularmente no que concerne ao ensino da língua portuguesa e de a termos nos currículos do ensino oficial americano. É a nossa tábua de salvação! Não porque todos ficarão fluentes, não sejamos ingénuos, mas porque é o instrumento certo para que façamos parente integrante do multiculturalismo deste estado.
É impensável, por exemplo, que na cidade de Gustine, onde somos quase 28% da população não tenhamos cursos de língua e cultura portuguesas. Ou mesmo em Newman, onde somos quase 14%, em Artesia e Hanford onde somos quase 10%. Artesia que no começo da década de 1990, há 30 anos tinha um dos programas exemplares, a nível primário e secundário e com a CSU Fullerton ao lado com cursos cheios de alunos. E isso só pode acontecer com a força que essas comunidades têm nas suas respetivas cidades. E em cidades onde representamos entre 9% até quase 30% da população temos influência e podemos movimentar montanhas. Diria mesmo que em pequenas e médias cidades deste estado, com populações entre os 10 e os 80 mil, onde temos presença que oscila entre os 4 e os 10% da população, considerando a autonomia escolar, podíamos, se quiséssemos, movimentarmo‑nos e criar as condições necessárias para instituir‑se mais cursos de língua e cultura portuguesas nos currículos do ensino oficial americano. Isso só se faz com a comunidade. Mais, temos de enfrentar a realidade que com a americanização das nossas famílias, com os pais e os avós a falarem cada vez menos português com os seus filhos e netos, ter a língua e cultura portuguesas nos currículos americanos é a forma mais prática, mais realista, mais segura de passarmos o nosso legado cultural às novas gerações e de a partilharmos com a miríade de etnicidades e raças que compõem o multiculturalismo californiano.
A realidade é que podemos fazer todas as festas e romarias, mas se não tivermos o nosso mundo, incluindo a língua portuguesa e as culturas do mundo português, onde certamente estará a açoriana, nos currículos do ensino público americano, caminhamos para uma fossilização da nossa diáspora na Califórnia. Uma comunidade pode ter uma grande festa, um grande banquete com visitantes do outro lado do atlântico, podemos alimentar os nossos egos pessoais e coletivos, com todas as ficções, as bem contadas e mas mal contadas, mas se essa comunidade não tiver uma escola a ensinar a língua portuguesa (entenda-se desde escolas públicas a universidades, incluindo os subentendidos – em Portugal- community colleges), se essa comunidade não tiver presença no poder politico californiano, presença responsável, se os nossos produtos, desde a gastronomia à música e à cultura não fizerem parte do mundo que nos rodeia, nessa cidade, grande ou pequena, estaremos a viver o mundo dos ditos “factos alternativos.” Daí que não entendo, nunca entenderei, porque é que quando qualquer membro do governo, nacional ou regional, independentemente do cargo, visite a Califórnia, não haja um momento para se promover a língua portuguesa, e por osmose as culturas do mundo português, no ensino público.
Duas situações, pontuais, mas que merecem uma breve reflexão. Primeiro, em 2018, quando aqui esteve o Primeiro-Ministro António Costa, conheci uma autarca de origem portuguesa, na conversa de mesa de banquete, falou de que estava a trabalhar para que se instituísse o ensino da língua portuguesa (que já tinha tido presença em tempos idos) na cidade onde tinha responsabilidades camarárias. Quatro anos mais tarde ainda não há curso. Não questiono a boa vontade, questiono sim, a falta de pressão que tem de vir da comunidade, porque palavras em momentos de banquete, que só servem para assoprar, o que um amigo meu diz ser; “gamas de balão” e voltam sempre em cada visita, em cada momento, dito oficial, não nos trazem a comunidade que precisamos.
Segundo, há dúzia e meia de anos falava eu sobre a realidade dos números (do recenseamento do ano 2000) com várias pessoas num acontecimento social e houve alguém que me dissesse: “esses números do governo estão errados e não contam para nada. É que só na minha rua conheço pelo menos 20 portugueses. Alguns nem sabem que são portugueses.” Pois, mas o problema é que são esses números que contam nas edilidades americanas, nos condados e nos estados e não os que são falsamente apregoados. Mais, o Senhor, sem o saber, tocou com o dedo na ferida: há portugueses que nem sabem que o são até porque o seu mundo é o mundo norte‑americano e não tiveram acesso à língua e à cultura portuguesas porque há demasiado tempo que não temos escolas públicas com o ensino da língua e culta portuguesas. Mas a verdade é que só com a integração da comunidade no meio norte‑americano é que conseguiremos preservar e disseminar o nosso legado linguístico e cultural.