OPINIÃO | A Marca dos Nossos Passos -Narrativas da nossa Diáspora na Califórnia, por Diniz Borges
E foste tripulante de ferry-boats,
carregador dos cais,
abriste estradas
e caminhos-de-ferro,
ovelheiro,
trabalhaste nos ranchos…
Tornaste a terra brava num paraíso.
Pedro da Silveira in Fui ao Mar Buscar Laranjas (poesia reunida)
Há alguns anos que o estado da Califórnia, onde segundo o recenseamento americano vivem cerce de 350 mil pessoas que se identificam como sendo de origem portuguesa, mais de 90% com ligações aos Açores, promove nos seus hemiciclos uma resolução, que tem por objetivo distinguir os contributos que os emigrantes (e seus descendentes) dos Açores, da Madeira e de Portugal continental têm dado a este estado, a todo este estado, que se fosse um país independente seria, como se sabe, a quinta economia mundial. A Califórnia, que já é a nossa casa há cerca de 150 anos, continua a ser o estado com a maior comunidade de origem açoriana, fora dos Açores, e uma das referências da nossa Diáspora em termos económicos, sociais, educacionais, culturais e políticos. A resolução que a Assembleia do estado da Califórnia aprovou, por unanimidade pelos deputados presentes, e que teve o apoio do Senado, é, sobretudo, um hino à nossa Diáspora na Califórnia. É um cântico ao passado, com uma forte dose do presente e uma vigorosa esperança no futuro. Foi ainda mais uma oportunidade que não deveria ser desperdiçada, nem nos Açores, nem na Diáspora. Mais um sinal do que como escreveu Pedro da Silveira: Por essa terra que não era tua / deste generoso o teu sangue. / E deste-lhe, ó semente de mundos, / os teus filhos.
Da resolução, que tem sido um dos projetos anuais da Coligação Luso-Americana da Califórnia-CPAC (California Portuguese-American Coalition), liderados os contactos em Sacramento por um jovem açor-descendente que pertence a esta organização, Cliff Costa, com raízes nas ilhas Terceira e no Pico, destaque-se o enfase dado à comunidade na sua totalidade. Graças aos esforços de várias pessoas este não é, e ainda bem, um documento cheio de dados fictícios ou balões de oxigénio para quem, à beira do Pacífico, ou no meio ou no outro lado do Atlântico, vive à custa de palavras ocas, de festejos onde se emprega as cores da bandeira como se fossem sinónimo da verdadeira alma portuguesa ou açoriana e perpetuam falácias sobre a Diáspora, sobre Portugal e as suas Regiões Autónomas, que em nada nos beneficiam. Ao contrário de tudo isso, que infelizmente ainda existe, em demasiada abundância, esta resolução enaltece os feitos que a nossa Diáspora, com alguns (para não dizer muitos) sacríficos tem realizado, na vasta maioria das vezes à margem de um centralismo e um regionalismo que ainda não entende a nossa forma de estar no mundo e o nosso potencial.
Em termos históricos, a resolução destaca as duas grandes ondas emigratórias para terras do Eldorado, quase todas de gentes das ilhas, predominantemente dos Açores, mas também da Madeira. Se é verdade que aqui estamos ainda quando a Califórnia pertencia ao México, não é menos verdade que eram casos muito pontuais e uma emigração em termos numéricos e em termos de criação de pequenas comunidades, começou na década de 1870 indo até ao começo da década de 1920. Nesse espaço de 50 anos, foram muitos ilhéus (incluindo os meus avós maternos) que deixaram as suas ilhas, atravessaram um mar imenso, e um continente gigante, para fazerem vida no mundo que o poeta Pedro da Silveira, magistralmente, soube sintetizar como: Califórnias perdidas de abundância. É talvez a frase mais usada e abusada do poema, mas ainda hoje é significativa pela carga metafórica que carrega. A segunda grande onda, do pós-Capelinhos, com as famosas “cartas de chamada” da lei emigratória da década de 1960, continuou até ao fim da década de 1970. É que a partir da década de 1980, particularmente a partir dos meados da mesma, a emigração para a Califórnia estancou. Mesmo as sucessivas crises económicas deste, ainda jovem século XXI, não nos trouxeram, para a Califórnia, nenhuma onda emigratória numericamente significativa.
A resolução destaca a presença da nossa Diáspora neste robusto estado norte-americano com enfase nos contributos que a mesma tem dado para a agricultura, a pecuária, a pesca, as várias indústrias, o comércio, a cultura e a vida social deste estado, à nossa escala, entenda-se. É que não convém esquecermo-nos que mesmo que sejamos 500 mil (oficialmente como se disse cerca de 350 mil) como até o possamos ser (mas nunca um milhão, como se apregoou), representamos cerca de 1% da população deste estado. Daí que para uma população numericamente pequena, a nossa presença em vários aspetos do mundo californiano tem sido titanesca. A resolução destaca esses feitos, não meramente como acontecimentos únicos, mas como forma de, através dessa história, a de, há século e meio, e a de ontem à tarde, conjugarmos esforços em ambos os lados do atlântico.
Desde menções honrosas ao nosso movimento associativo, às sociedades fraternais, até ao trabalho de arquivo e publicação do Museu Histórico Português e os Centros Históricos da nossa Comunidade, até à editora Portuguese Heritage Publications; desde o destaque dado à comunicação social da nossa comunidade, mencionando, por nome o jornal Tribuna Portuguesa (algo inédito em resoluções desta natureza, mas como dizia a minha santa avó: quem mais faz, menos merece), aos nomes mais conhecidos do mundo das artes, da música, da arquitetura e do cinema que são de origem portuguesa, aí também quase todos com raízes nos Açores e na Madeira, a resolução é extramente abrangente. E isso até incomoda gente que se habituou, erradamente, a um certo exclusivismo.
Há ainda destaque para os festejos do Divino Espírito Santo, que como se sabe definem a alma açoriana e são eventos congregadores da nossa Diáspora. Quando muito nos desune, estes festejos (até mesmos os mais opulentos e exagerados) unem a comunidade dispersa pela imensa geografia californiana. Os festejos do Divino são eventos importantes da nossa identidade neste estado, e cada vez mais têm o mérito de congregarem outras etnias e outras culturas. É bom ver-se a perenidade destes festejos de um povo, que como escreveu o poeta Vasco Pereira da Costa no célebre poema Queen Nancy: “cruzou mares e terras num pássaro de metal / até ao Pacífico em busca da felicidade legítima.”
A resolução destaca algo inédito que a nossa Diáspora produziu graças ao trabalho de meia dúzia de pessoas e o envolvimento de duas centenas desde San Diego até à Baía de São Francisco: o primeiro e único plano estratégico para o ensino da língua portuguesa. É, por enquanto, um exclusivo da nossa Diáspora na Califórnia. Nenhuma outra comunidade em nenhum outro estado americano ou província canadiana tem algo semelhante. Esperemos que um dia o tenham! Lá estão os nossos dilemas e as nossas “possíveis” soluções. Foi elaborado com muito trabalho e muita preocupação, autónomo, ou melhor, independente de qualquer interferência governativa, cá ou lá. E sem qualquer balofo tão presente no mundo dos “factos alternativos” como ainda recentemente vimos numa notícia sobre o número de alunos de língua portuguesa a tirarem o exame NEWL aqui nos EUA, onde se dizia que uma única escola (um das três de Tulare—distrito escolar que estará sempre no meu coração e onde se faz um trabalho magnifico no ensino da nossa língua e culturas) tinha 134 alunos inscritos, sabendo-se que isso foi completamente inflacionado, nunca se retificou.
Este reconhecimento do estado da Califórnia, tem inúmeras referências aos Açores, desde os tempos primórdios da nossa imigração à resolução que o Senado deste mesmo estado aprovou em 2002, numa proposta do então Senador estadual, agora Congressista, Jim Costa, para geminar a Califórnia com a Região Autónoma dos Açores. Uma geminação que precisa de ser trabalhada e convivida não só entre a classe política, mas entre a sociedade civil. Acredito que a criação do Friends of the Azores venha a ajudar essa trajetória, que se quer inclusiva. As geminações, a todos os níveis, só fazem sentido se na realidade aproximam os povos e não só as elites em redomas quiméricas ou pior, as pseudoelites alimentadas por agentes do poder. A resolução fala especificamente sobre o Dia dos Açores. Disseram-me que há quem não goste. Não me surpreende! Como se diz na gíria popular: não nos deve nem aquecer nem arrefecer. O importante é que menciona e destaca quem verdadeiramente somos em terras californianas. Há anos, num belo texto sobre os Açores, o crítico literário Vamberto Freitas, no seu livro A Ilha em Frente, escrevia: “De quem são os Açores? Da sua gente, de toda a sua gente e de mais ninguém.” Na realidade de quem é a nossa Diáspora na Califórnia? Quem a tutela? A sua gente e mais ninguém.
Uma palavra sobre o momento da resolução em Sacramento que foi presenciada por Artur Lima, em representação do Presidente do Governo da Região Autónoma dos Açores, José Manuel Bolieiro que havia sido convidado, em janeiro deste ano, pela CPAC-Coligação Luso-Americana da Califórnia para estar presente no Capitólio, assim como o Diretor Regional das Comunidades, José Andrade; o Secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Tiago Antunes, de visita à Califórnia por ocasião do 10 de junho e Cônsul-Geral de Portugal em São Francisco, Pedro Pinto. A palavra sobre esse momento relaciona-se com o apoio que a resolução, apresentada pela Deputada açor-descendente, Cecília Aguiar-Curry, com raízes na ilha Terceira, obteve de todos os grupos parlamentares com palavras não só elogiosas, mas sobretudo pertinentes do Grupo de Legisladores Hispânicos, cuja diretora fez uma alocução extremamente emotiva e laudatória à nossa comunidade e às ligações entre os portugueses e os hispânicos, quer em amizades quer em famílias. O momento foi também seguido por uma amalgama de deputados dos dois quadrantes da política californiana, que cumprimentaram os visitantes com palavras apológicas para a comunidade e para os Açores. Foi interessante ouvir a FLAD mencionada pela referida Deputada pelas parcerias que tem feito com a comunidade deste estado. E isso foi feito por opção de quem trabalhou a resolução e não por exigência.
Se é certo que uma resolução não faz nem desfaz uma Diáspora. Se é certo que não nos devemos bajular pela mesma, ficando parados a colher louros que os nossos antepassados semearam. Se é certo que uma resolução só terá efeito se quem estiver no terreno, lá e cá, quiser ir além da fotografia e do momento efémero. Se é certo que uma resolução desta natureza não deve ser vista como apenas um ponto de chegada, mas sobretudo como um ponto de partida, não é menos certo que esta resolução é uma marca importante da narrativa que a nossa Diáspora criou nesta mega Califórnia. Pode não ser perfeita, mas é a nossa narrativa e é o resultado concreto de onde viemos, quem somos e quem queremos ser. E quem sabe, se o ponto de partida para nesta nossa Diáspora californiana acreditarmos que os nossos destinos estão nas nossas mãos, no que criámos com o nosso trabalho e a nossa criatividade. Que a nossa narrativa é a de um povo que sabe ser parte de uma sociedade multicultural, que rejeita todos os pressupostos de um eurocentrismo arrogante e consciente de que se é bom que conheçamos o novo Portugal, os novos Açores e a nova Madeira, não é menos importante que, também no outro lado do atlântico, se entenda a nova Diáspora.
Há muito tempo que a Califórnia já é a nossa terra!
*inspirado do poem Êxodo de Pedro da Silveira