DIÁSPORA

DIÁSPORA | Na ânsia das Américas perdidas, por Diniz Borges (PBBI-Fresno State)

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Uma leitura da emigração num poema de Pedro da Silveira
Os nossos irmãos…
ergueram vilas e cidades na pátria estrangeira.
Pedro da Silveira in História

A emigração açoriana para as Américas é parte integrante do imaginário açoriano.  São inúmeras as referências aos calafonas, através das mais variadas obras literárias, e com lugar especial na poesia. A emigração, de todas as ilhas, mudou, para sempre a nossa relação com o mundo e o nosso namoro constante com as “califórnias perdidas de abundância” moldou os Açores que somos.  As nossas vivências a quase meio-atlântico, geograficamente mais perto da Europa, mas emocionalmente muito mais aconchegados às Américas, tem tido eco constante na criatividade literária açoriana.  São inúmeras as estórias contadas pelos que um dia pisaram solo americano e voltaram às ilhas, de visita ou para ficar.  São milhares as cartas que narravam as vivências açorianas em terras americanas, quase sempre abençoadas com o dólar americano e canadiano.  De todos os poetas açorianos, dentro e fora do arquipélago, que têm cantado a emigração, com inúmeras nuances e singularidades, Pedro da Silveira, foi, indubitavelmente, uma das nossas mais significativas vozes, que soube penetrar a essência das vivências e das marcas, deixadas em ambos os lados do atlântico pelos que um dia apanharam o “barco na distância.” Dos vários poemas e versos com referência aos vários ciclos da nossa emigração para a América, um dos mais emblemáticos, pelo estilo e pela profundidade, pelo rigor, diria mesmo a crueldade realista com que narra as vivências da nossa emigração para as terras do Novo Mundo é o extraordinário poema: Êxodo.  Um hino à emigração de um tempo e um lugar, metáfora perfeita para um povo que viveu, anos sem fim, com: um céu fechado.   

Dividido em três partes distintas, o Êxodo, começa por narrar a partida/viagem, com os dilemas de quem parte e de quem fica.  A segunda parte, descreve com a mestria que o poeta florentino cedo nos habituou, a chegada, as vivências, a adaptação, a penetração no mundo americano de então.  A terceira e última parte expõe a integração e um grito para os que ficaram construírem os Açores que tinham sido negados aos que partiram.    Uma narrativa poética que nos enche a alma.  É que tal como escreveu algures o poeta americana Robert Frost:  a poesia é quando uma emoção encontra o seu pensamento e o pensamento encontra as palavras.   Êxodo, é ainda um poema que constrói a história da emigração açoriana, das aventuras heroicas de homens e mulheres, que na última metade do século XIX, largavam a fome da ruralidade açoriana e além do mar, construíam as suas vidas, quase sempre pinceladas com tonalidades açorianas.  Êxodo, como toda a poesia e as estórias da nossa emigração mereciam um lugar de destaque nos currículos das nossas escolas, porque fazem parte da nossa idiossincrasia e tal como escreveu, William Saroyan, escritor americano de origem arménia, cuja obra Pedro da Silveira conhecia e cuja família tinha um relacionamento de amizade com o pai de Pedro da Silveira: “ao fim e ao cabo, hoje é para sempre, ontem é ainda hoje, e amanhã já é hoje.”  

  Não há outro poema na literatura açoriana que cante, com a sublimidade de êxodo as partidas dos Açores no século XIX em viagens, verdadeiramente tenebrosas, repletas de ansiedades e pavor “depois de trinta dias de viagem à vela,/de trinta noites de incerteza e espera,/chegámos à América.” Muito pouco se em escrito sobre estas viagens destes pioneiros motivados pelos “olhos de fome”, como nos fala Pedro da Silveira no poema ilha, seguramente o mais citado poema sobre a nossa emigração.  Eram viagens inimagináveis para os nossos dias, em que a América está a menos de cinco horas de voo.  Uma luta que que Pedro descreve como sendo nossa, no sentido de nossa de povo condenado à pobreza ou à fuga.  Daí que o sonho não só comandava a vida, como escreveu António Gedeão, mas era a única alternativa.  Havia, uma determinação invulgar estimulada pelo pão nosso de cada dia que nem sempre se conseguia nas ilhas, mesmo depois de dias e dias a trabalhar do nascer ao por do sol.  Assim escreve o poeta, nesta estrofe que é paradigmática de nossa ida para as terras de ninguém, a viagem de tantos e tantos açorianos, incluindo o meu próprio avô que com 20 anos de idade, já no começo do século XX, em 1910, faria o mesmo percurso que tantos outros o tinha feito, particularmente ao longo das últimas 5 décadas:

Homens e mulheres desembarcavam nos portos estrangeiros
– sonho somente no fundo dos seus olhos –
e a nossa fome de pão e de distâncias
varou a terra firme até ao outro Oceano.

            Neste cântico que combina todas as emoções das partidas, a vasta maioria sem regressos, porque não são poucas as famílias açorianas que tiverem, ou ainda têm, primos na América, que nunca conheceram, primos que jamais ouviram falar, a não ser pela memória dos mais idosos, muitos dos quais já embarcaram para a eternidade.  As perturbações das partidas e a esperança das chegadas a esses lugares onde como nos diz o poeta “só havia rios, florestas/e a terra brava.”  É que, como somos de memória curta, e infelizmente os currículos escolares açorianos (nem os portugueses a nível nacional) nunca tiveram espaço para a história da nossa emigração, por vezes esquecemo-nos das idas de açorianos, de particamente todas as ilhas, para as terras do Eldorado americano, ainda antes do mesmo ser americano.  O poeta, narra-nos, com perfeição uma Califórnia, antes de o ser, a presença da “bandeira tricolor do México”, os nossos contributos ao lado de heróis como Sutter e Marshall, a nossa inovação nas estações baleeiras, onde por exemplo a Old Company of Portuguese Whalers, foi criada na cidade de Monterey, em 1855 por 15 açorianos, que como o poema nos diz, os afoitos açorianos, correrem o mar até ao Bering.  E entrando, como tantos outros na corrida ao ouro, época em que se virava costas a tudo e a vida acabava por ser reduzida ao perigo das armas de fogo que já então proliferavam numa América do far-west.   

Como os outros,
viraste costas ao mar,
compraste peneiro, picareta e pá
e subiste o Sacramento até Sierras.
(A tua vida valeu
o mínimo preço de uma bala…)

            Numa Califórnia que já então simbolizava o multiculturismo que ainda hoje se vive, e que ainda hoje se nega, os açorianos integravam-se e misturavam-se com as raças e as culturas que coabitavam numa Califórnia ainda virgem.  E com essas culturas, com gentes de todos os quadrantes do globo, construíamos a Califórnia de hoje e ficávamos americanos, ou melhor, açorianos com outras experiências, com outra convivência com o mundo.  Tornávamos parte do “melting pot” americano.   Fizemos, desde que chegámos a esta terra plantada à beira do pacifico,  parte integrante do mundo que nos rodeia, e convivemos lado a lado com outras raças, credos e culturas.  Apesar da pequenez e do fechamento das ilhas, cedo nos tornamos cidadãos do mundo e ajudámos a criar o multiculturalismo que hoje, infelizmente, as novas comunidades, têm, por incrível que pareça, alguma dificuldade em compreender:     

Como tu,
iam chegando ianques
e mexicanos, índios, italianos,
gregos, chineses, alemães, arménios, judeus,
brancos, pretos, amarelos…
Cidades nasciam
com seus negócios, saloonse dance-halls,
bancos…
Vasculhos de todas as raças sifilizaram-te o sangue.

            Habituado a ouvir as histórias dos “nossos irmãos que foram/pra mundos estranhos de línguas estranhas” como escreveu noutro poema ligado à nossa emigração, História, o poeta fala-nos, com uma noção perfeita das nossas vivências californianas, de vidas que e interlaçaram e estiveram sempre abertas às mais variadas profissões e trabalhos que edificaram o estado que hoje, se fosse país independente, seria a quinta economia mundial.  É bom que no arquipélago e na diáspora se fale do que Pedro da Silveira escreveu em meados do século vinte:

E foste tripulante de ferry-boats,
carregador dos cais,
abriste estradas
e caminhos-de-ferro,
foste madeireiro,
ovelheiro,
trabalhaste nos ranchos…
Tornaste a terra brava um paraíso.
Em toda a parte a marca dos teus passos:
de San Diego a Eureka,
de Red Bluff a Sierras,
de Monterey a Fresno…

            Esta descrição de lugares e das variadíssimas profissões, mostra-nos o espírito do emigrante açoriano, muito similar a outros emigrantes, mas com a particularidade de que apesar de termos vindo de um lugar de pouca terra, cedo nos habituamos a expandirmo-nos pelas mais variadas zonas do litoral, das montanhas, dos vales e das planícies da Califórnia.  É que de San Diego a Eureka são 1226 quilómetros, ou seja, 13 horas de carro, luxo que os nossos açorianos não tinham no final do século XIX e princípio do século XX, a época do primeiro grande saída de açorianos para terras do Tio Sam.  Aliás a especificidade geográfica que Pedro da Silveira utiliza neste poema é singular na nossa poesia sobre a emigração açoriana.  O pormenor das várias localidades e dos vários ramos em que os açorianos estiveram envolvidos, mesmo nos seus primeiros anos de emigração é espantoso e mostra-nos o conhecimento e a preocupação que poeta teve em dar-nos, através da poesia o que a história açoriana não tem feito.  Talvez tenha razão a célebre frase que é atribuída a Aristóteles: a poesia é mais fina e mais filosófica do que a história; porque a poesia expressa o universo, e a história somente o detalhe.  Na realidade, o poema de Pedro da Silveira dá-nos o que a história nos tem recusado, na Califórnia, como em muitos outros cantos do mundo da nossa emigração, está: a marca dos teus passos, pioneiro.  É que só se entende a presença portuguesa em terras da Califórnia passando pelos Açores.

            Êxodo, poema ex-libris de um tempo e um lugar, comum a todos os açorianos e açor-descendentes, atravessando ilhas, continentes e gerações, termina com um dois pontos fulcrais da nossa história dentro e fora do arquipélago: a integração do emigrante nas novas terras e a necessidade dos que pelas ilhas ficaram de construírem a sociedade que nos foi negada por tantos e tantos anos.  Pedro da Silveira, através das histórias que ouvia do avô José Laureano, que como nos diz na dedicatória de Sete Romances Imperfeitos, foi emigrante na época do Gold Rush, dos tios-avôs e outros que como escreve no poema Memória “…me contavam/histórias de barcas de baleia e terras grandes.”, narra-nos com a perfeição que a sua poesia cedo nos habituou, a dedicação do emigrante açoriano perante a terra que o recebeu, uma caraterística que nos permitiu, desde sempre, fazer parte da sociedade onde vivemos, particularmente na Califórnia, onde a nossa emigração sempre teve a tonalidade de partidas para ficar.  Os assuntos de aculturação, adaptação, integração sem diluição, que têm ocupado as ciências sociais, são magistralmente definidos nestas duas estrofes:

A essa terra que não era tua
deste a força dos teus braços,
deste o teu suor,
o teu engenho.
Por essa terra que não era tua
deste generoso o teu sangue.
E deste-lhe, ó semente de mundos,
os teus filhos.

            Já em 1952, precisamente há 70 anos, antes da última onda de emigração, a do Azorean Refugee Act e as sucessivas reformas nas leis da emigração, que começaram em 1956 e terminaram com a história lei de 1965, as conhecidas “cartas de chamada”, responsáveis pela última grande onda emigratória dos Açores, o poeta nos dizia que a terra americana era a terra das nossas gentes emigradas e que os filhos e netos falariam mais alto do que qualquer desejo de retorno. Daí que termina o poema com um apelo, o qual está presente em outros dos seus profundíssimos poemas: criar nas ilhas as condições necessárias para que os açorianos não tivessem de olhar para o mar como “caminho de emigrantes.”  É que Pedro da Silveira, sabia que não podíamos ficar para sempre “à espera do barco que nos há-de levar…”como escreveu no poema História da mesma coleção A Ilha e o Mundo, mas também sabia que a nossa emigração moldou os Açores para sempre.

            Êxodo é um hino à odisseia açoriana.  Um eco do espírito de um povo, que como foi dito algures, soube estar nos mais recônditos cantos do mundo como se estivesse no seu quintal.  Um canto à açorianidade que respira mais fundo e tem mais sentido arquipelágico fora da Região.  Um poema que entrega a cada açoriano, dentro e fora das nove ilhas, o que a história raramente conta: que a construção dos Açores também foi feita por gente simples, que ao sair das suas ilhas continuaram, à distância, no tempo e na geografia, a construir uma identidade que sendo multicultural e multiétnica, tem raízes bem sólidas nas ilhas de bruma e dá mais universalidade aos Açores.

            *de quatro poemas da anteamanhã  

Diniz Borges