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OPINIÃO | Uma ponte de palavras: A poesia de João Carlos Abreu reimaginada para novas audiências, por Diniz Borges

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A tradução, sobretudo no domínio da poesia, é um equilíbrio delicado entre a fidelidade ao texto original e uma transformação que permita aos novos públicos sentir o seu poder e ressonância. Sabe-se que tradutores descrevem frequentemente o seu trabalho como um ato de recriação, em que tentam evocar as intenções do poeta original, fazendo escolhas adequadas à nova língua.  Já Natália Correia dizia que a poesia não se traduzia, mas interpretava-se.  O poeta e tradutor alemão Paul Celan descreve a tradução como um encontro, afirmando que “um poema, enquanto manifestação da linguagem e, portanto, essencialmente diálogo, pode ser uma mensagem numa garrafa, enviada na crença – nem sempre muito esperançosa – de que algures e em algum momento poderá dar à costa, talvez no coração.”

Octávio Paz, poeta mexicano, via a tradução como um ato de transformação e fidelidade, um paradoxo que exige que o tradutor se envolva intimamente com o poema original. Paz afirma que “traduzir é produzir um texto que é análogo ao original: uma obra que se assemelha ao original, mas que, ao mesmo tempo, é diferente”. Ao enfatizar a analogia em vez da duplicação, Paz destaca o papel do tradutor, o qual deve ecoar fielmente a cadência emocional e o imaginário do poema, permitindo que este resplandeça naturalmente na nova língua. Assim, a tradução torna-se uma forma de alquimia poética, transformando as palavras de uma língua em algo semelhante, mas distinto, do original.

Os contextos linguísticos e culturais da poesia também desempenham um papel crucial na tradução. Cada língua tem as suas próprias expressões idiomáticas, referências culturais e conotações, que podem estar profundamente enraizadas num poema. Os tradutores têm muitas vezes de decidir se mantêm estes elementos culturalmente específicos ou se os adaptam para os tornar mais claros para o público-alvo. Esta escolha é especialmente complexa na poesia, onde a linguagem pode ser deliberadamente opaca ou simbólica. Um poema que faça referência à mitologia local ou a eventos culturais pode exigir que o tradutor inclua notas de rodapé ou reformule a referência para a tornar acessível ao novo público, o que corre o risco de alterar a ressonância do original.  Tal como escreveu Ezra Pound “O trabalho de tradução é a tarefa mais ingrata. Somos sempre culpados se alguma coisa corre mal, e nunca somos elogiados se corre bem.” O comentário de Pound reflete o desafio da tradução como uma arte frequentemente negligenciada, em que os esforços do tradutor para alcançar a autenticidade podem passar despercebidos, a menos que surjam imperfeições. Certissimamente certo, como quem traduziu bem sabe.  

A tradução da poesia de João Carlos Abreu para inglês, no livro Whispering Tides, apresentada na Câmara Municipal de Ponta Delgada durante o Encontro de Poetas da Macaronésia, numa parceria entre duas editoras, Fraternitas da madeira e Bruma Publications da Universidade do Estado da Califórnia em Fresno,  constitui uma oportunidade inestimável para o mundo se relacionar com uma voz madeirense distinta, enquanto permite à diáspora madeirense nos países anglófonos, ligar-se profundamente às suas raízes culturais. João Carlos Abreu, escreve com uma perspetiva única, moldada pelas paisagens da sua ilha, pela história e pela relação com a diáspora madeirense. A sua poesia, marcada por temas universais como o amor, a saudade, a natureza e a identidade, terá um profundo apelo para os leitores internacionais.  Espera-se que Whispering Tides, ofereça, tanto a um público mais vasto como à diáspora madeirense, o acesso à beleza e à perspicácia deste poeta singular.

Um dos principais desafios na tradução da obra de João Carlos Abreu residiu na preservação da sua linguagem profundamente sensorial e emocional. A sua poesia utiliza frequentemente metáforas inspiradas no mundo natural da Madeira para expressar uma série de experiências humanas.  Tentou-se um equilíbrio delicado, uma vez que o inglês carece demasiadas vezes das palavras exatas ou do ritmo que correspondem às nuances da riquíssima língua portuguesa.  Tentou-se a manutenção destes elementos sensoriais, preservando ao mesmo tempo a atmosfera e os sentimentos poderosos da sua poesia.  Tal como dizia o meu primo distante (obviamente que estou a ser irónico) Jorge Luís Borges, dizia que: “O original é infiel à tradução”. Borges sugeria que a tradução oferecia uma lente única através da qual um texto assume novos significados, muitas vezes diferentes do seu original. A sua afirmação paradoxal implica que mesmo o texto original está, cada vez que é traduzido, aberto a novas interpretações.  Espero que em inglês haja múltiplas interpretações da poesia de João Carlos Abreu.  

Estou convicto, que tal como para os Açores, Cabo Verde e as Canárias, na diáspora madeirense, nos países anglófonos, a leitura da poesia de João Carlos Abreu em inglês é um meio de ligação com a sua herança cultural e de a partilhar com o multiculturalismo dos seus países, particularmente nos Estados Unidos e no Canadá. Cada vez mais, a diáspora dos nossos arquipélagos pode ter sido criada a ouvir falar da beleza e das tradições das suas terras, mas, infelizmente já não é fluente na língua das suas ilhas. A tradução da poesia de João Carlos Abreu torna estas experiências culturais acessíveis, proporcionando aos leitores da diáspora a oportunidade de verem a sua herança refletida na literatura. A sua obra torna-se um espelho para a diáspora madeirense, evocando sentimentos partilhados de nostalgia, regozijo, liberdade e pertença, preservando, simultaneamente, as histórias e paisagens da Madeira numa forma que todas as gerações podem compreender, aprender e acarinhar.

Mais, a poesia de João Carlos Abreu possui uma qualidade universal que entoa além da Madeira. Os seus temas de exílio, ligação e saudade humana refletem experiências que são mundialmente familiares.  Em inglês, a poesia de João Carlos Abreu pode chegar a um público global, convidando os leitores a ligarem-se aos aspetos universais da sua escrita e a descobrirem uma perspetiva única das ilhas da Macaronésia.  Acredito, como o disse Walter Benjamin que: “a tarefa do tradutor é libertar na sua própria língua aquela língua pura que está exilada entre línguas estrangeiras.” O ponto de vista filosófico de Benjamin sugere que a tradução revela uma essência “pura” da língua ao interpretar a alma do texto original num novo enquadramento linguístico.  Levar a alma da poesia de João Carlos Abreu a outras latitudes onde a língua inglesa é a língua de comunicação, foi o intuito desta tradução.  Esperemos que as entidades da Madeira, não pelo valor do tradutor, mas pela sua essência no original, possam levar esta tradução aos seus filhos e netos que vivem em outras latitudes.  É tempo de na Macaronésia, se utilizar as vozes dos poetas nos roteiros turísticos.  Para mim, a tradução da poesia de João Carlos Abreu para inglês oferece não só um meio de preservação cultural para a diáspora madeirense, mas também uma oportunidade para os leitores internacionais se envolverem com um poeta verdadeiramente universal.  Para mim, a tradução da sua obra foi um ato de ligação entre mundos, levando a literatura madeirense a um público mais vasto e assegurando que a voz de João Carlos Abreu seja ouvida em muitas latitudes e interpretada por muitas culturas.  A sua poesia ultrapassa as fronteiras da ilha e, espero que em inglês inspire empatia, ligação e apreço por sentimentos e princípios universais expressos através da sua experiência, distintamente madeirense. Como o escreveu o poeta norte-americano W.S. Merwin: “a tradução não é apenas uma questão de palavras: é uma questão de tornar inteligível toda uma cultura.” Acredito que pela beleza e a pujança da linguagem poética do poeta, e nunca do tradutor, Whispering Tides, descerrará novos caminhos para a diáspora madeirense, abrindo ainda mais uma porta para um diálogo profundo entre culturas e línguas. Porque parafraseando Pablo Neruda, a poesia é, acima de tudo, um ato de paz.

Mauricio De Jesus
Maurício de Jesus é o Diretor de Programação da Rádio Ilhéu, sediada na Ilha de São Jorge. É também autor da rubrica 'Cronicas da Ilha e de Um Ilhéu' que é emitida em rádios locais, regionais e da diáspora desde 2015.