OPINIÃO | Trilhos da Nossa Escrita: Vozes da Diáspora Açoriana em Terras Americanas, por Diniz Borges
Estes açorianos do Novo Mundo não exprimem
a sua dor na exultação ou na embriaguez,
nem num choro selvagem ou profissional,
fazem-no ficando mais abatidos do que a própria morte,
esperando num silêncio tão sombrio e recôndito
que a morte se arrasta com medo da sua severidade.
Carlo Matos in As Malcriadas or Names we Inherit
(tradução livre)
A açorianidade, ou o espírito açoriano, está bem vivo no seio dos autores americanos que se identificam com as ilhas dos seus antepassados, ou pelo menos com as vivências açorianas além arquipélago. Existe, um pouco por todo o mundo norte-americano, homens e mulheres que mergulham a pena da sua criatividade nas suas raízes ancestrais levando a literatura americana a outros patamares, porque na realidade as vozes étnicas nos Estados Unidos e no Canadá, redefinem, como foi dito algures, a própria noção do que é ser americano e canadiano, apresentando-nos uma perspetiva multicultural e multiétnica. E ainda bem que entre essa multitude de vozes, que elucidam a verdadeira conceção de países multiculturais, contamos com açor-descendentes como Carlo Matos. Um escritor americano que afirma, descomplexadamente, as suas raízes açorianas.
No espaço de um ano, ao sairmos da pandemia, Carlo Matos, professor universitário em Chicago, publica dois livros distintos, que se unem em vários aspetos, incluindo as marcas do espírito açoriano em terras americanas. We Prefer the Damned é um magnífico livro de poesia que solidifica de várias formas o autor como uma das nossas vozes mais significativas, misturando mundos, “minando o que é rijo e o que é meigo” como escreveu o autor Michael Torres. Carlo Matos, faz neste livro um percurso através do seu mundo de bissexual com uma honestidade quase brutal, mas necessária para dela arrancar alguns dos nossos melhores poemas de autores americanos que se identificam com as vivências açorianas no mundo americano, baseadas nas experiências das nossas famílias emigrantes, ora em Fall River, no estado de Massachusetts, ora em outros lugares da nossa Diáspora.
Através deste livro, numa edição também lindíssima como objeto, o poeta mais do que limpar a alma, coloca-nos frente a frente com alguns dos nossos tabus, com a nossa insistência em permanecermos dentro de cubículos, aqueles que a sociedade impinge e aceita-se, sem questionarmos, ou nos questionarmos. Através da memória de tempos idos, que são simultaneamente tempos presentes, o poeta lança-se e lança-nos numa odisseia de descoberta interior, a qual contém as tonalidades de uma forte presença da família. Tal como ainda é presente em muitas das nossas famílias de origem açoriana nos Estados Unidos, mas as segundas, terceiras e sucessivas gerações, nota-se a cumplicidade entre o neto e avó, num magnífico hino a essa amizade especial que guardamos até à eternidade. O poema The Black Sail, numa simbiose perfeita entre o mundo americano e a o mundo açor-americano, revela-nos o que ficou e ainda fica por dizer em muitas das nossas famílias, quer pelas linguagens, quer pelos comportamentos: “a minha avó sabia que eu era bi / apesar de não ter a palavra para tal. / Não reconheceria a palavra em português (em qualquer caso). / Talvez nem em inglês. Tantas palavras que não podia traduzir entre as línguas (tantas que ainda não posso).” As marcas de uma família, das nossas famílias, as nuances que como o poeta alude configuram quem somos e por vezes são elos que nos permitiram, e ainda permitem, estarmos vinculados num país que nos convida ao desvinculo.
Paula Neves, poeta luso-americana que compreende a nossa diáspora e que nos tem dado alguns dos mais belos poemas das nossas vivências entre e com dois mundos, sintetiza, magistralmente We Prefer the Damned, como poemas de regozijo. Regozijemo-nos com a arte e a coragem de Carlo Matos, com uma coletânea onde o espírito açoriano respira com mais profundidade e mais liberdade. Um livro que como escreveu o Harvard Review Online, é “cortante e carinhoso” no qual o autor revela as “voltagens entre o passado e o presente.” Um livro que é açoriano porque é americano, rompendo com barreiras e conceitos. Para Scott Edward Anderson, também poeta americano com raízes nos Açores: Matos, “partilha como se vive – entre o velho mundo e o novo a meio caminho entre lugares a que não pertencemos. Esta é uma coleção poderosa, desimpedida e comovente.” Um livro que precisava ser traduzido para português.
O segundo livro que Carlo matos publicou em menos de um ano tem o título parcialmente em português: As Malcriadas Or Names We Inherit (ou nomes que herdamos). É um conjunto de textos que o autor data entre 1996 e 2017, mas que no teu todo se lê como um romance. As tribulações e os júbilos da vida, mais das primeiras do que das segundas. Relatos de vidas de emigrantes e vistos pela geração já nascida nos Estados Unidos, mas criada ainda, como meu pai gostava de dizer, “à moda das ilhas.” São pedaços da nossa Diáspora na Nova Inglaterra, onde o conceito de freguesia rodeado de América por todos os lados, como escreveu Onésimo Almeida, ainda é faz parte das nossas vivências. Tal como escreveu Giano Cromley, neste romance Carlo Matos: “explora o rescaldo da fragmentação do sonho. No entanto, ele consegue encontrar beleza nas peças fracionadas. Com uma linguagem soberbamente polida e afiada como a lâmina fina de uma espada, vemos – com clareza – a tristeza, a alegria, a dor, e o amor que perdura entre as ruínas.”
Logo no começo, o autor traça o destino dos seus personagens aclamando as diferenças entre os emigrantes e as gerações nascidas nos Estados Unidos, mesmo com ancestralidade europeia, e em alguns casos mesmo com ascendência portuguesa. Com desassombro fala de como os emigrantes, mesmo em terra estranha são mais adultos: “Os imigrantes não eram Boomers. Não se deixaram levar pelo privilégio preguiçoso da geração gigante. Os imigrantes eram adultos. Os nossos pais não sabiam como se divertir, ou melhor, temiam que alguém lhes enviasse uma conta. Tudo tinha uma etiqueta, tudo tinha um preço. Tinham problemas, claro que tinham, mas pelo menos eram adultos.” O sentido de responsabilidade que sempre marcou a nossa Diáspora e que nos deu alguns rótulos na sociedade americana, mas que trazia em terra estranha alguma estabilidade.
Em 205 páginas vive-se a vida de quem é americano, cheio de referências açorianas, que ora servem de estabilidade, ora são percalços. As descobertas e redescobertas que vivemos neste livro, servem para olharmos para o mundo de uma forma diferente. Assim é toda a boa literatura. Vivências que nos levam a várias Américas. A da Costa Leste dos Estados Unidos, a do Vale de São Joaquim na Califórnia, acabando na emblemática cidade de Chicago. Em cada passo há momentos de exultação, de sofrimento, de desespero de quem não se sente bem na sua própria pele, e de quem sendo um americano de todas as latitudes, ainda é um ilhéu. Como escreveu Vamberto Freitas sobre um dos primeiros livros de Carlo Matos: americanos e americanos – estes são os nossos, dando conta de si, lembrando o que não pode ser esquecido.”
Carlo Matos pertence a uma geração de escritores étnicos nos Estados Unidos que muito têm contribuído imenso para a literatura americana, dando-nos uma nova apreciação pela diversidade que é a verdadeira beleza da América. Para as novas gerações de açor-descendentes, de luso-americanos, a escrita de autores como Carlo Matos é importantíssima. Não podemos ter uma geração a crescer sem nunca se verem a si próprios na literatura. É mais do que sabido que existe uma forte ligação entre as imagens e a identidade. A capacidade dos jovens leitores de ascendência portuguesa, e identidade açoriana, de se relacionarem com uma comunidade identificada dentro de estórias e poemas como os de Carlo Matos, lidos no mainstream da sociedade americana, permite-nos uma participação direta neste país que também é nosso. A escrita de Carlo Matos relembra-me uma frase de Pedro da Silveira, no terceiro dos quatro poemas da anteamanhã: “Há sempre um caminho livre / ao querer dos nossos passos.”
FRESNOSTATE/DB/RÁDIOILHÉU