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OPINIÃO | Todas as Luas Que Ficaram Escritas: Em memória de Álamo Oliveira, poeta e meu amigo

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“o meu nome escreve-se
na sola dos sapatos de cada um”
— Álamo Oliveira, Versos de Todas as Luas

Há perdas que não se medem pelo silêncio, mas pelo eco. Quando parte um poeta, não desaparece apenas uma pessoa — esvazia-se um farol, apaga-se uma lua cheia que iluminava a geografia interior do nosso arquipélago, do nosso mundo. Morreu José Henrique Álamo Oliveira, o poeta do Raminho, o homem que soube fazer da palavra uma enxada, um espelho, uma bússola e uma flor de combate. A sua voz era a do povo e das pedras, do corpo e do espírito, da ilha e do exílio. Hoje, a ilha Terceira chora-o como quem perde um dos seus mais lúcidos e indomáveis filhos. E os Açores inteiros inclinam-se perante a grandeza de um dos maiores poetas da nossa literatura de língua portuguesa.

A obra de Álamo Oliveira é um arquipélago por si só. Publicou mais de 40 títulos entre poesia, romance, dramaturgia, ensaio e conto — uma produção literária densa, coerente e profundamente humanista. Na poesia, destaco livros como Pão VerdePoemas de(s)amorFábulasItinerário das GaivotasNem mais amor que fogoTextos InocentesMissa Terra Lavrada e, mais recentemente, a magnífica coletânea, que tanto lhe tinha pedido que a fizesse:  Versos de Todas as Luas, onde ressoam versos de despedida, de pertença e de transcendência. Em cada um dos seus livros, a linguagem é crua e delicada, simultaneamente provocadora e lírica, refletindo o poeta, o verdadeiro, que escrevia com o coração na terra e os olhos na humanidade.

A sua obra ficcional é igualmente significativa, com romances como Burra Preta com uma LágrimaTriste Vida Leva a GarçaAté Hoje (Memórias de Cão)Pátio d’Alfândega Meia-NoiteMurmúrios com Vinho de MissaMarta de Jesus (a verdadeira) e Já Não Gosto de Chocolates (a narrativa mais emblemática sobre a emigração açoriana nos EUA) traduzido nos Estados Unidos (por mim e pela Katharine F. Baker) e no Japão, entre tantos outros títulos. Em toda a sua ficção narrativa existe uma densidade humana e literária invulgar. Os romances de Álamo Oliveira não se contentam em contar histórias — são experiências sensoriais e existenciais que nos obrigam a olhar para dentro de nós e para as cicatrizes coletivas do nosso povo. A emigração, o desenraizamento, os silêncios familiares, a tensão entre tradição e modernidade, a sexualidade reprimida, o exílio interior — tudo isso está presente, não como pano de fundo, mas como matéria viva, pulsante. Em Já Não Gosto de Chocolates, por exemplo, o quotidiano da diáspora nos Estados Unidos é retratado com crueza, compaixão e uma escrita onde cada frase parece carregada de sal e poeira. A sua escrita tem camadas — é, simultaneamente, prosa poética, crítica social, memória insular e psicanálise cultural. Não há paternalismo nem idealização; há lucidez e amor pela contradição humanaa. Ler Álamo Oliveira é entrar numa geografia onde o arquipélago se abre para o mundo — e o mundo se devolve à ilha com todas as suas dores e promessas.

        No teatro, foi pioneiro. Fundador do grupo Alpendre, encenou e escreveu diversas peças marcantes: Manuel, Seis Vezes Pensei em TiA Solidão da Casa do RegaloEnquanto a Roupa SecaJudite – Nome de Guerra, entre tantas outras. A sua dramaturgia vive do confronto entre o poético e o político, entre o quotidiano e o simbólico, e tem sido representada em várias ilhas, no continente e no estrangeiro. A peça A Solidão da Casa do Regalo recebeu, em 1999 o Prémio Almeida Garrett.

Foi também ensaísta, organizador de suplementos literários, para além de uma longa colaboração com escolas, bibliotecas e instituições culturais nos Acores e na Diáspora.  É uma referência incontornável no pensamento artístico e literário dos Açores.

Para mim, um dos traços mais comoventes da sua vida pública e literária foi o seu trabalho dedicado à diáspora. O meu amigo Álamo viajou inúmeras vezes aos Estados Unidos e ao Canadá, participou em congressos e conferências, publicou e promoveu livros sobre a emigração e, mais importante, tratou os emigrantes açorianos, e os seus descendentes, como parte indissociável da comunidade cultural açoriana. No já citado Já Não Gosto de Chocolates, assim como nos Contos D’América, entre outros livros, retrata com rara mestria o choque cultural, o drama da perda de identidade, a dureza do quotidiano emigrante e a beleza inesperada de quem, longe, resiste. Em 2002, foi convidado pela Universidade da Califórnia, Berkeley, a ensinar a sua própria obra — o primeiro autor português a receber tal honra. Nesse gesto, a sua literatura atravessou o Atlântico com a mesma naturalidade com que cruzava ruas de Angra ou caminhos e as canadas do Raminho. Foi um dos principais impulsionadores do simpósio Filamentos da Herança Atlântica.

A mestria da sua escrita reside na sua singular capacidade de unir o sensorial ao ético, a ilha ao mundo, a luta à ternura. Nos seus versos mais recentes, há um tom de despedida que ecoa como murmúrio atlântico. Em final, escreve:

“vou-me
com o que tenho:
um nome entre as sílabas
dos meus filhos
um verso que nunca me saiu bem
e a esperança
no que for depois.”

Em última lua:

“é esta a última lua
não a vi nascer
mas dei-lhe o nome
e por isso me pertence.”

E em gratidão:

“obrigado, palavras.
fostes melhores do que eu.”

Essa humildade entrelaçada num linguagem verdadeiramente poética é marca de um autêntico mestre da palavra.

Conheci o Álamo há quatro décadas. Desde então, partilhámos mesas, livros, viagens, copos, conversas e sonhos. Foi meu irmão, meu companheiro de lutas, meu guia nos labirintos da palavra, meu mestre e meu amigo total. Nunca precisámos de máscaras. Ensinou-me o valor da autenticidade, da coragem de estar num mundo que frequentemente despreza quem não entende. Viajámos juntos ao coração da diáspora, ao interior dos Açores, à essência da literatura. Com ele aprendi que estar nas letras (se bem que eu nunca fui, nem nunca serei, verdadeiro artífice da palavra) é uma forma de responsabilidade ética e estética perante o mundo.

A amizade do Álamo era maior do que os livros. Era feita de presença, de tomar copos com longas conversas onde aprendi imenso sobre a vida.  Sem querer lecionar, ele ensinou-me muito. Tinha um carinho genuíno pela minha família, uma ternura visível pela Nivéria, a minha mulher, por quem nutria enorme respeito e afeto. Viu os nossos filhos Steven e Michael crescerem desde crianças, acompanhou-lhes os passos com orgulho silencioso, e não escondia a admiração pelos homens íntegros e generosos em que se tornaram. Sempre perguntava por eles, sempre os guardava na lembrança. Tinha esse dom raro de estar verdadeiramente com os amigos: de saber deles, de se importar, de ter sempre uma palavra, um sorriso, um abraço. Era assim: humano até ao osso. Poeta até ao fim. Irmão para a eternidade.

         Hoje, não há como não sentir um vazio profundo.  E talvez por isso hoje a dor seja tão funda, tão densa como o nevoeiro que cobre o interior da ilha ao amanhecer. A ausência do meu amigo Álamo Oliveira não é apenas a partida de um homem — é o silêncio abrupto de uma voz que nos nomeava por dentro, que dava corpo às nossas memórias, que dizia a ilha como ninguém. Estamos todos num profundo luto: família, amigos, leitores, ilhéus de perto e de longe, a diáspora inteira. Há uma tristeza que atravessa oceanos e se instala no peito como lava fria. Sente-se o vácuo, sente-se o corte — como se uma parte da alma açoriana tivesse sido arrancada do tempo. Resta-nos a realidade que que o nosso Álamo permanece. Permanece em cada página onde a ilha se faz mundo. Em cada verso onde a pedra pensa. Em cada leitor que o descobrirá amanhã e se deixará tocar por uma escrita genuína, onde o amor, a justiça e a beleza se entrelaçam. Porque um poeta como o Álamo não morre — transforma-se em eco, em chão, em farol. E porque, como ele próprio escreveu:

“tenho uma enorme esperança na redenção da ilha.”

          Essa redenção começa em nós — no amor com que continuaremos a lê-lo, a celebrá-lo,  a traduzi-lo e a partilhar a luz de todas as suas luas.

         Adeus, Álamo. Ou talvez não. Porque tu, poeta, estás “na sola dos sapatos de cada um.” E em todas as luas que ainda hão de nascer.

Diniz Borges

Mauricio De Jesus
Maurício de Jesus é o Diretor de Programação da Rádio Ilhéu, sediada na Ilha de São Jorge. É também autor da rubrica 'Cronicas da Ilha e de Um Ilhéu' que é emitida em rádios locais, regionais e da diáspora desde 2015.