OPINIÃO | Semear e Lavrar a Açorianidade – Para uma Diáspora com Chamarritas sem Sapateias, por Diniz Borges
Ali, nascíamos, ali vivíamos – ali estávamos.
E ‘estar” é muito mais verbo para ilhéu do que viver.
Vitorino Nemésio
Não têm sido poucas as vezes que se tem dissertado sobre a nossa Diáspora, o que ela significa para Portugal, e de uma forma muito especial para a Região Autónoma dos Açores. O potencial que existe no continente norte-americano, nomeadamente nos Estados Unidos e no Canadá onde estão as nossas maiores comunidades, atinge, com as novas gerações, outras proporções, certamente com novos desafios, mas sobretudo com novas oportunidades, que, infelizmente não têm sido usufruídas nem cá, nem lá. A açorianidade, expressa de múltiplas formas e contextos, mesmo quando se pensa que ela não existe, é um potencial para os Açores e para a Diáspora. Não tenhamos medo de nos identificarmos como açorianos, de portugueses ou descendentes de portugueses dos Açores, de nos dois grandes países da nossa emigração afirmarmos bem alto quem somos, de onde viemos (ou vieram os nossos antepassados), como somos e o que queremos ser, um povo, que como descreveu Vitorino Nemésio tem coração de lava.
É essencial que pensemos a açorianidade além da tradição, do popular e do corriqueiro, e como tem acontecido quase sempre, particularmente relacionando-se com as comunidades, num plano de segundo violino, numa orquestra nacional muitas vezes desafinada e que situa em terceira ou quarta posição tudo o que vem ou tem raízes nas ilhas. Há que, com alguma urgência, mudar-se de paradigmas. Há que dar ênfase à Diáspora que somos. Há que pensar-se na criação de um Fórum da Diáspora Açoriana: um fórum independente, apartidário, destemido, comprometido, dedicado a desmistificar tabus e preconceitos, determinado em dar à açorianidade, na América do Norte, o oxigénio que precisa para ser elo entre todas as gerações e as múltiplas geografias que constituem a nossa identidade.
Durante os meus 47 anos de envolvimento na nossa Diáspora, de uma forma mais particular na Califórnia, tenho visto, vivido, refletido e estudado uma amalgama de fenómenos, metamorfoses, usurpações, mitificações, congelações e evoluções ligadas à nossa identidade açoriana em terras americanas e canadianas. Tenho tido a felicidade de fazer parte de uma amalgama de movimentos, associações, congressos, debates e projetos sobre a Diáspora, sobre as vivências, a preservação e a disseminação do que nos define como povo além-arquipélago. Em quase meio século tenho tido a satisfação de ser testemunha de uma amalgama de histórias e estórias onde a açorianidade tem sido destacada e ofuscada, onde sentir-se os Açores em terras americanas é equivocado com ser-se “menos português”, onde o arquipélago e os seus contributos, quer pela sua geografia, quer pela ousadia do seu povo, é relegado para segundo plano, em detrimento de uma portugalidade que sejamos honestos, na Califórnia em particular, e um pouco por quase toda a Diáspora no continente americano, só tem exuberância graças à emigração açoriana e aos açor-descendentes. Portugal, é mais Portugal nos estados Unidos da América graças às suas Regiões Autónomas. Na Califórnia só se entende Portugal, entendendo-se os Açores, – já o disse e di-lo-ei até ao fim dos meus dias.
Sem querer ferir suscetibilidades ou penetrar o mundo de quem acha que tudo começa e acaba na “capital do império”, proponho que que os açorianos, vivendo no arquipélago e fora dele, particularmente no continente norte-americano, olhem à sua realidade e cuidem da sua identidade. Que na Diáspora não haja medo de se ser açoriano. E que se tenha coragem de enfrentar quem nos queria abafar. Que essa açorianidade seja cultivada e seja abrangente. Que a nossa literatura, música, artes plásticas, entre outras formas de talento e identidade sejam conhecidas na Diáspora, e que, como já o referi, repetidamente, que as artes da Diáspora sejam conhecidas nos Açores. Que haja cada vez mais intercâmbio sério e progressista entre o comércio, a indústria e a tecnologia na Diáspora e na Região. Que haja um plano que cultive a açorianidade, e as suas múltiplas vertentes, nas escolas onde se ensina a língua portuguesa, quer sejam escolas do nosso movimento associativo, quer do ensino oficial americano e canadiano.
É que se é muito importante ensinar-se a lusofonia, e é como parte da comunidade mundial a que pertencemos, não é menos importante ensinar-se a açorianidade. Ninguém abraça um conceito mundial sem se conhecer a si próprio. Ninguém se sente bem no mundo sem estar bem no seu próprio quintal. Para sermos membros ativos da lusofonia, temos de saber quem somos. Ensinar a lusofonia aos filhos, netos e bisnetos de emigrantes açorianos conhecerem elementos fulcrais da açorianidade é tão frívolo como criarem-se cursos universitários de língua portuguesa sem termos escolas secundárias do ensino oficial sem cursos de língua portuguesa. Bem sabemos o resultado dessa política. Para que os açor-decendentes tenham conhecimento da sua identidade há que se conjugarem esforços na Região, dos governos e da sociedade civil, com todas as forças vivas da nossa Diáspora.
Alguns mais céticos, e incluo-me nesse círculo porque há que questionar e ter espírito critico, perguntarão: um Fórum da Diáspora Açoriana (Azorean Diaspora Forum-ADF) resolverá esse dilema de balbúrdia identitária? Penso que será um passo importante e até mesmo necessária. Penso que dever ser o próximo passo, desde que o mesmo, seja inclusivo, havendo lugar para o mundo académico, as nossas coletividades, os nossos escritores, os nossos músicos, a nossa arte, o nosso movimento associativo, a nossa comunicação social, as nossas festividades, a nossa realidade no multiculturalismo americano e canadiano. Um Fórum da Diáspora Açoriana aberto a todas as ideias, a todos os conceitos e todas as fórmulas de se expressar a identidade açoriana fora do arquipélago.
Um fórum independente e que receba apoios de quem o quiser apoiar sem politiquices ou desejos de controlo. Um fórum que não tenha medo de enfrentar críticas e assobios internos do poder centralista. Um fórum de homens e mulheres mais interessados na açorianidade em terras americanas, do que em concorrerem a uma medalha, ou a um momento efémero de glória. Um fórum que traga à Diáspora a nossa história no atlântico norte, quase sempre à mercê da nossa criatividade e ao culto do Espírito Santo. Um fórum que tenha por objetivo fazer a pedagogia que deveríamos ter começado há 40 anos: o que é a autonomia e o que foi que ela trouxe e ainda trará aos açorianos. Um fórum que interligue todas as gerações nos Açores e na Diáspora, com a cultura popular, e porque não, mas acima de tudo com as novas tecnologias, com o conhecimento, com a pesquisa em áreas de interesse comum. Um fórum que responsabilize as nossas entidades: as regionais para um olhar mais cuidado e mais representativo e as nacionais para o facto de que se não quiserem em comunidades açorianas falar dos Açores não as precisamos cá.
Um fórum para chamar a atenção a quem trabalha com as relações transatlânticas que os Açores não são uma mera estação de gasolina para os aviões americanos, ou um espaço para que Portugal recolha louvores americanos e canadianos sem investimento nas nossas comunidades e nas nossas ilhas. Um fórum para dizer aos eleitos para cargos legislativos ou executivos nos mundos americano e canadiano, que tenham origem nos Açores, como os cinco congressistas em Washington, que se não defenderem os verdadeiros interesses da nossa Diáspora, se não defenderem os Açores, então procuraremos outras etnias que o façam. Um fórum para dizermos a nós próprios que não somos nem mais pequenos, nem menos portugueses, se afirmarmos, em terras americanas e canadianas, sem receios e sem complexos, a nossa açorianidade. É o que fazemos nas centenas de festejos em louvor ao Divino através deste continente, que nada, mesmo nada, têm a ver com a metrópole. Um fórum para afirmarmos que a ilha em que nascemos ou em que nasceram os nossos antepassados é, como escreveu o Professor António M.B. Machado Pires: “um eixo do Cosmos, uma pequena pátria, um mundo de referências matriciais. A ilha a que comos obrigados a abandonar é um pouco de referência permanente, um porto de regresso ideal, uma Ítaca em que cada um é o Ulisses da sua própria e secreta mitologia.”
Há quem diga que a açorianidade em terras americanas e canadianas está viva. Não discordo, já o afirmei, está viva particularmente na vertente popular, mas precisa de ser reforçada, particularmente no que concerne a traços identitários, o que o Professor Machado Pires dissertou como: um conceito de experiência pessoal, lírica e poética. Há que robustecer-se esse conceito nas festividades e há que criar-se outras oportunidades para que a açorianidade seja cada vez mais conhecida e celebrada nas sociedades multiculturais onde criamos as nossas famílias. Um mês de Cultura Açoriana nas Américas, como o propus há quase duas décadas, seria um bom começo. A integração da palavra Açores e açorianidade nas distinções que as entidades americanas fazem nas nossas comunidades, é outro passo importante. A criação de espaços para livros, artes plásticas e outras artes nos nossos festejos, também deveria ser elemento a construir. E a repudiação de tudo o que vem de um centralismo exacerbado, pintado com elogios paternalistas.
Não tenhamos medo da açorianidade e criemos o Fórum da Diáspora Açoriana. Valorizemos quem somos, independentemente onde estejamos. Criemos espaços para este conceito que como também escreveu Machado Pires ao referir-se a Vitorino Nemésio baseia-se em: ser-se ilhéu com uma carga histórica de meio milénio de lusitanidade quatrocentista desenvolvida sobre ‘tufos vulcânicos’– carga que agora é também salpicada pelo multiculturalismo das sociedades (EUA e Canadá) onde vivem mais de um milhão de açorianos e açor-descendentes que têm direito a saberem quem são.
Nada como o presente para se construir o futuro.