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OPINIÃO | Sala de Espera com Vista para a Utopia: Liberdade, Cidadania e Compromisso na Escrita de Aníbal C. Pires, por Diniz Borges

Diniz (Dennis) Borges Portuguese Beyond Borders Institute-Director
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“(…) a felicidade é mais o que colhemos 
durante o caminho do que algo que 
encontramos no fim da caminhada.”
— Aníbal C. Pires, Entre Pausas

Há livros que não se leem, escutam-se. Como um murmúrio que atravessa o tempo e a paisagem, Entre Pausas de Aníbal C. Pires é um desses livros. É uma obra que sopra como o vento das ilhas — firme, persistente, e por vezes, político. Cada crónica é uma pedra lançada na água tranquila da indiferença, e cada ondulação, um convite à reflexão. São textos que se instalam como vozes em “salas de espera”, lugares simbólicos onde o tempo é pausado, mas nunca passivo — onde se lê, se pensa, e sobretudo, se resiste.

A crónica, enquanto género literário, situa-se, como se sabe, entre o jornalismo e a literatura, entre a factualidade e a subjetividade, entre a efemeridade do tempo e a densidade da ideia. Nas mãos do meu amigo Aníbal C. Pires, este género transforma-se em ferramenta de consciência social. Ele próprio anuncia a intenção na “declaração de intenções” que abre o livro: criar um espaço de “opinião aberta sobre temas sem fronteiras, nem verdades absolutas” onde o leitor possa “refutar argumentos, apresentar outros pontos de vista”.  Ao longo das suas crónicas publicadas entre 2022 e 2024 no Diário Insular, o poeta Aníbal C. Pires reafirma o valor da palavra escrita como gesto político, não panfletário, mas humanamente comprometido. A sua escrita, mesmo quando irónica ou lírica, mantém sempre um eixo: o combate às injustiças estruturais que assolam a sociedade contemporânea, nos Açores e no mundo.

O fio que entrelaça todas estas crónicas é o olhar coerente de um homem de esquerda, radicalmente comprometido com os valores da liberdade, da igualdade, da justiça social, e do respeito pela dignidade humana. O próprio autor assume: “sou comunista, é incompatível com qualquer simpatia política pelo atual presidente da Rússia” — frase que desmistifica leituras apressadas e defende uma esquerda pensante, crítica, ética e informada.  O autor jamais se esconde: “Não sou imparcial, não sou neutro, nem independente,” escreve na crónica Tempo para refletir e ponderar. E prossegue: “a assunção de que não sou neutro coloca-me de um lado, certo ou errado, não importa. Esta é, também, uma atitude de honestidade intelectual e, sobretudo, de respeito por quem lê”.

Esse compromisso ideológico e ético percorre crónicas que abordam temas como o envelhecimento, a guerra na Ucrânia, o crescimento do movimento ultranacionalista, Chega, a desinformação, a precariedade democrática e a ameaça do neoliberalismo. O autor combate a cultura do esquecimento, o revisionismo histórico, a xenofobia institucionalizada e a apatia dos cidadãos com uma lucidez rara na escrita de opinião.

Eis, pois, alguns exemplos dos temas e da profundidade da escrita do poeta Aníbal C. Pires que gostaria de destacar.  

  1. Ameaças à Democracia: Em Tempo para refletir e ponderar, o autor escreve sobre os perigos da ascensão da extrema-direita, criticando diretamente o crescimento do Chega: “os eleitores do Chega comungam entre si […] de algumas caraterísticas que me leva a dizer que estes cidadãos são: misóginos, racistas, homofóbicos e negacionistas”. Aqui, a escrita é indignação organizada — sem insulto gratuito, mas com denúncia clara.
  2. Contra a Russofobia e o Revisionismo: Em Strogonoff e salada russa e Cognitive warfare, o autor discute o impacto da guerra na Ucrânia, criticando a narrativa simplista promovida pela comunicação social ocidental. Defende uma visão pacifista, mas lúcida: “Tenho um lado — o lado da paz e da cooperação entre os povos. Nenhuma guerra tem justificação. Sem dúvida. Mas existem causas que as provocam”.
  3. Autonomia e Regionalismo: Em Afronta à Autonomia, o escritor e pensador reflete sobre os perigos da privatização da SATA, sublinhando que os Açores “não podem ser tratados como uma nota de rodapé nas políticas europeias ou nacionais”. A crónica é simultaneamente técnica e passional, revelando o profundo conhecimento do autor sobre políticas públicas e o seu amor à sua terra.
  4. Efemérides e Memória: A crónica Da importância das datas resgata o sentido revolucionário do 25 de Abril, recordando que falar da Revolução sem o PCP “é como beber cerveja sem álcool ou beber um descafeinado”. Trata-se de uma defesa vigorosa da memória como resistência, num tempo em que o esquecimento é promovido como neutralidade.
  5. Contra o Silenciamento e a Estupidificação: No texto Guerra Cognitiva, Aníbal Pires denuncia a manipulação da opinião pública e o uso das novas tecnologias como armas contra a liberdade de pensamento. “Na guerra cognitiva seremos alvos, mas também soldados armados com os nossos telemóveis inteligentes ampliando realidades paralelas”. É uma chamada de atenção urgente para o modo como a desinformação ameaça a própria estrutura democrática.

O estilo do meu amigo Aníbal C. Pires é direto, por vezes coloquial, mas nunca banal. Em muitos momentos, vemos o cronista cruzar a análise política com a sensibilidade do poeta, como quando escreve sobre o tempo: “o tempo só é importante porque a vida é finita e, por isso, tão excitante. A eternidade seria entediante”. É uma escrita enraizada na ética e na clareza. 

Há também lugar para a ternura e a contemplação, como no texto Envelhecer, onde defende que o envelhecimento deve ser encarado não como um peso, mas como um “privilégio” que permite sonhar. Noutras passagens, vemos um autor irónico e sagaz, como ao comentar os absurdos de retirar Tchaikovsky das orquestras ocidentais em tempos de russofobia: “Qual a ligação de Dostoievski com a invasão russa da Ucrânia? Nenhuma”.  

O autor não escreve para agradar, mas para agitar. A crónica, neste livro, é um exercício de cidadania. Aníbal C. Pires usa a crónica não apenas como crónica, mas como ensaio breve, como manifesto sereno, como diário de inquietações. É uma escrita que nos obriga a parar — entre pausas — para repensar a normalidade, para desconstruir o consenso, para denunciar o silêncio imposto pelas lógicas dominantes. Transforma a “sala de espera” do jornal num espaço ativo de pensamento.

A força das suas palavras não está apenas no que dizem, mas na integridade de quem as escreve. Em tempos de discursos esvaziados de sentido, a sua voz é uma das poucas que ainda ecoa com substância e coerência. A sua esquerda não é pose — é raiz, é prática, é fidelidade ao povo e à verdade, mesmo quando incómoda. São textos como espelho ético e como ato de resistência. 

A inclusão de Entre Pausas na Seleção Editorial Vamberto Freitas da Letras Lavadas é, por si só, um gesto simbólico e profundamente significativo. Este projeto editorial — inovador no seu propósito e exigente na sua curadoria — visa não apenas dar visibilidade a obras de grande relevância literária e social, mas também homenagear aquele que é, indiscutivelmente, o mais profícuo, atento e profundo crítico literário dos Açores. Vamberto Freitas tem sido uma voz insubstituível na valorização da literatura açoriana contemporânea e da criatividade das comunidades da diáspora, rompendo as fronteiras entre ilhas e continentes com ensaios que são, eles mesmos, mapas afetivos e intelectuais de pertença. Que este livro de crónicas, politicamente atento e literariamente robusto, faça parte dessa coleção é um marco não só para a editora, mas para a história crítica da literatura insular — e um tributo merecido a quem tem passado décadas a escutar e a amplificar as vozes que emergem entre silêncios, pausas e margens.

“(…) O choro das cagarras regressou, o mar continuava naquele seu sereno vai e vem no calhau rolado […] era a noite a fazer-se ouvir.”

Ao terminar Entre Pausas, o leitor não sente que leu um livro, mas que travou um diálogo com alguém comprometido com o mundo que nos rodeia. Um cidadão que pensa, que não se rende à facilidade dos slogans, que exige — com firmeza e gentileza — que a democracia seja mais do que um ritual eleitoral.  As crónicas de Aníbal C. Pires são faróis acesos em noites de nevoeiro, iluminando caminhos onde outros apenas veem ruína. São pausas no ruído do mundo, onde se escuta a consciência. E se, como ele próprio diz, a felicidade é colhida pelo caminho, então este livro é uma colheita abundante — de lucidez, de coragem e de esperança.

Mauricio De Jesus
Maurício de Jesus é o Diretor de Programação da Rádio Ilhéu, sediada na Ilha de São Jorge. É também autor da rubrica 'Cronicas da Ilha e de Um Ilhéu' que é emitida em rádios locais, regionais e da diáspora desde 2015.