OPINIÃO | Por entre franjas de nuvem: O Carnaval da Terceira na Diáspora Açoriana, por Diniz Borges
Em cada ano que passa
Sempre procurando a graça
Com uma simples brincadeira
Estamos sempre no ativo
Que é para manter vivo
O Carnaval da Terceira
De uma dança de Alcindo Ornelas
No livro Alcino – O Profeta do Carnaval de Liduíno Borba
Todos os anos, centenas de açorianos e seus descendentes, trazem aos salões de festas erguidos pelos portugueses na Califórnia, as tradicionais danças e bailinhos do Carnaval da ilha Terceira. Mais uma nobre tradição que os emigrantes souberam transportar das suas terras, e no Eldorado americano, não só a reproduziram, como tiveram a sua evolução. As danças e bailinhos, um produto de várias décadas, tiveram algum renascimento, particularmente nas últimas duas décadas do século XX. O Carnaval de 2023 no estado da Califórnia, após dois anos de pandemia, é bastante diferente, tal como o será também daqui a um quarto de século. Esta tradição, tal como todas as outras que envolvem a presença da língua portuguesa no estado da califórnia, e em outros estados da união americana, enfrenta um futuro incerto, que só será modificado que tivermos a coragem de a analisarmos, como nos diz Natália Correia num dos seus belos versos: dos ramos à raiz.
Uma tradição da ilha Terceira, com origens no teatro vicentino, como aliás, os peritos já o disseram, as danças e os bailinhos de Carnaval na diáspora açoriana da Califórnia, têm sido um dos fenómenos mais interessantes da nossa emigração. Praticamente inexistentes na década de 1960, quando se deu o grande fluxo emigratório dos Açores para este estado do pacífico americano, as danças e bailinhos começaram a aparecer com alguma frequência na década de 1970, embora apenas em casos esporádicos, sem a continuidade desejável. Foi essencialmente na década de 1980, por sinal a que a nossa emigração dos Açores estancou, que esta expressão teatral se popularizou. Hoje, os salões, outrora renitentes a receberem danças e bailinhos, a não ser que os responsáveis pagassem o aluguer da respectiva sala, abrem as suas portas, gratuitamente, para que esta faceta da cultura popular se desvenda. Com as exibições das danças, superabundam ainda as guloseimas típicas desta época e o espírito carnavalesco é vivido na sua plenitude. Entre os fins do século vinte e até pouco antes da pandemia a Califórnia teve muito anos em que pisavam os palcos deste estado entre 20 a 25 danças e bailinhos. Neste ano de 2023, serão, pela publicidade feita uma dúzia. Na Costa Leste, particularmente nos estados de Massachussetts e Rhode Island, o número também sofreu uma grande redução.
E qual a diferença entre o Carnaval deste ano e o de há quatro décadas? Houve, em quatro décadas um grande salto qualitativo. As danças e os bailinhos da Califórnia, criaram as suas próprias raízes, ficando autónomas das da ilha Terceira, adquirindo a sua própria identidade. Primeiro foram os assuntos que eram traslados dos textos e temas introduzidos em anos anteriores na Terceira, muitas vezes passadas ao papel pelos entusiastas que haviam conseguido uma cópia em áudio cassete, e daí os erros inerentes que ocorriam. Hoje, todos os assuntos, alguns escritos mesmo localmente, são temas relacionados com as comunidades, o mundo americano e as nossas vivências entre duas culturas. Aliás, sem menosprezar o trabalho árduo e criativo dos escritores de danças da Terceira, quando os assuntos são escritos na Califórnia, ou em outro canto da nossa emigração para os States, e quando se trata de assuntos de sátira política ou social, têm um cheiro muito mais interessante, porque são de quem está por dentro do assunto, quem o viveu, directa ou indirectamente. Uma das evoluções, para mim das mais significativas, foi o Carnaval californiano ser o seu próprio Carnaval e não uma cópia de outros lugares e de outros tempos. É ainda importante, e extremamente saudável, a autocrítica que começou a aparecer, particularmente nos últimos 20 anos, quer à sociedade onde vivemos quer à própria comunidade. Que bom podermos rir de nós próprios.
Existe ainda a diferença nas expressões dos próprios figurantes. Se há 25 anos, os principais protagonistas eram dos Açores, (isto é: emigrantes recentes) hoje, existem cada vez mais puxadores e actores nascidos nos Estados Unidos ou vindos de Portugal ainda em criança. Com expressões teatrais muito suas, e com um português misturado com o inevitável sotaque americano, as danças e os bailinhos da Califórnia foram capazes de muitas vezes inconscientemente, e por força das circunstâncias, criar as suas próprias nuances e serem iguais a si próprias: serem reflexos genuínos da metamorfose que se passa, quotidianamente, nas próprias comunidades. Aliás, nota-se claramente, as diferenças de estilo entre os figurantes que emigraram já conhecendo os Açores e as danças de lá e os que as conheceram apenas na Califórnia. Tal diferença (que muitas vezes choca os puristas, mas o que é que não choca os puristas? No Carnaval e na vida?) é extremamente positiva, porque mostra-nos que o Carnaval californiano tem evoluído e caminha pelas suas próprias pernas. Que as comunidades lusas deste estado criaram, com entusiasmo, o seu próprio Carnaval.
Um dos outros aspectos interessantes desta manifestação única de cultura popular terceirense na Califórnia, é a componente abrangente destas celebrações. Enquanto nos Açores danças e bailinhos ainda são aspectos restringidos à ilha Terceira, na Califórnia os figurantes, e até alguns organizadores, vêem de várias ilhas. Recordo-me de há anos, em conversa com a minha amiga, a poeta Maria das Dores Beirão, comentarmos que muitas vezes é na emigração que aprendemos a ser açorianos. O Carnaval no estado da Califórnia é a indicação clara e inequívoca de como os açorianos das várias ilhas podem trabalhar e criar em conjunto. Em praticamente todas as manifestações carnavalescas há gente de várias ilhas, que aqui, muito longe das suas ilhas, aprendeu a gostar desta tradição terceirense, que para eles é mais do que isso: é uma manifestação açoriana e portuguesa.
Há ainda que registar o elemento da língua portuguesa. Como professor de português como língua estrangeira, e aprendiz das nossas comunidades, desperta-me sempre grande entusiasmo quando vejo jovens nascidos nos Estados Unidos, a falarem e cantarem em português, aquilo que muitas vezes recusam fazer em ambientes mais formais, como na sala de aula, ou até menos formais, como em casa com os pais. Daí que sempre considerei o Carnaval, dentro da sua esfera de cultura e teatro popular, um óptimo acréscimo a aulas de português, quer sejam dadas, como se disse, em ambientes formais ou informais. É que ao contrário dos grupos de folclore, das bandas de música, dos grupos de futebol, e dos grupos sociais de jovens, todos eles elementos importantes e marcantes na vida social da nossa comunidade, nas danças do Carnaval os jovens têm que, forçosamente, ouvir, falar e cantar em português. Mas daí também a grande incógnita de se saber quanto tempo mais durarão estas magníficas expressões culturais. É daí o nosso dilema e também o produto inevitável do acentuado decréscimo.
Não podemos nem devemos culpabilizar a pandemia por todos os dilemas que se vivem no Carnaval da ilha Terceira em terras americanas e canadianas. Bem sabemos que mesmo antes já tínhamos visto algumas crises, não só na falta de conhecimento da língua portuguesa pelos jovens que fazem o Carnaval, mas sobretudo no envelhecimento das audiências e na falta de interesse das novas gerações e das gerações mais distantes dos Açores, aqueles, que independentemente da idade, foram os avós ou os bisavós que emigraram e em muitos casos não lhes passaram a língua portuguesa ou o legado cultural. A tradição que esta manifestação cultural soube criar, em algumas zonas geográficas mais do que outras, merece alguma reflexão e merece que tenhamos a coragem de a ver dar a metamorfose que necessita para que tenha futuro na comunidade de amanhã de manhã.
Independentemente do que venha a acontecer, e é mais do óbvio o que acontecerá daqui a uma dúzia de anos, há que salientar a independência destes grupos de associações formais das nossas comunidades e os gastos dos participantes. Tudo produto de uma dedicação a esta manifestação cultural. É que quase todas as danças e bailinhos são, ou autónomos, ou independentes, das associações portuguesas. Muitas são formadas por grupos criados ad hoc que existem única e exclusivamente durante o Carnaval. Do norte ao sul da Califórnia, estes grupos formam-se nos fins do outono, e ano após ano, têm levado à cena, al longo de mais de quatro décadas, centenas de danças e bailinhos os quais viajam milhares de quilómetros para se exibirem nos vários palcos da Califórnia. Independentes das amarras do nosso movimento associativo, estes aglomerados de gente que vive esta rica tradição, têm prestado, anualmente, um magnífico serviço à língua portuguesa. Embarcam numa odisseia, sem terem por detrás o suporte financeiro de nenhuma instituição, e durante os dois meses que antecedem a Quarta-Feira de Cinzas, num voluntariado verdadeiramente impressionante, promovem em cantigas e em declamações a língua de Camões. São verdadeiros embaixadores e impulsionadores vernáculos das tradições que os embalaram ou aos seus pais. E pelo que fizeram e ainda farão há que lhes agradecer.
Por tudo o que fizeram e porque nenhuma cultura é estática, se o for fica em peça de museu, há que solicitar às novas gerações que tenham visão, e que façam a mudança necessária para que esta tradição não se reduza a meia dúzia de danças e bailinhos em todo o estado. Que tenham a coragem de iniciar a metamorfose e passá-la a uma tradição integrada no mainstream californiano. Para que o Carnaval da ilha Terceira tenha vida nas novas gerações há que ir além do que a poeta Natália Correia chamou, e muito bem: a via-sacra dos antigos.
*de um poema de Álamo Oliveira em Itinerário das Gaivotas