OPINIÃO | Paz, Justiça, Igualdade e Liberdade: A Sinfonia inacabada na América de Martin Luther King Jr., por Diniz Borges
“O Dr. King disse-nos que o arco moral do universo é longo,
mas inclina-se para a justiça.
Porém, não se inclina por si próprio.
Para o fazer, precisamos de todos.
Ninguém pode igualar o brilhantismo de King,
mas cada um de nós pode seguir os seus passos.”
Barack Obama, 44º Presidente dos EUA
Martin Luther King Jr. é uma figura imponente da história americana, conhecido pela sua incansável defesa da igualdade racial, da justiça económica, dos direitos dos trabalhadores e da paz. O trabalho da sua vida, enraizado nos princípios da não-violência e do amor, procurou desmantelar a opressão sistémica e construir uma sociedade baseada na justiça e na igualdade para todos. Na América de hoje, à medida que persistem as divisões sociais e se desenham novos cenários políticos, os ensinamentos de King continuam a ser um modelo vital para enfrentar os desafios contemporâneos. Como a América seria diferente se como ele, também sonhássemos que “um dia todo vale será exaltado, todo monte e colina serão abatidos, os lugares difíceis serão aplainados e os lugares tortuosos serão descurvados; e a glória do Senhor será revelada, e toda a carne a verá juntamente.”
Nascido a 15 de janeiro de 1929, na cidade de Atlanta, estado da Geórgia, King cresceu numa América segregada, testemunhando em primeira mão as indignidades e a violência infligidas aos afro-americanos. Orador e académico com enorme talento, obteve um doutoramento em teologia na Universidade de Boston. Inspirado nos ensinamentos de Mahatma Gandhi e na doutrina cristã do amor, King adotou a não-violência como pedra angular do seu ativismo político e cultural.
King ganhou proeminência nacional durante o boicote aos autocarros de Montgomery nos anos de 1955-1956, que liderou após a detenção de Rosa Parks por ter recusado a ceder o seu lugar a um passageiro branco. O boicote não só desagregou os autocarros de Montgomery, como também catapultou King para a ribalta nacional como líder do florescente movimento dos direitos civis.
O seu trabalho culminou em realizações marcantes para a nação americana, tal como a Lei dos Direitos Civis de 1964 e a Lei dos Direitos de Voto de 1965. Os esforços de King valeram-lhe o Prémio Nobel da Paz em 1964, tornando-o, até então, no mais jovem galardoado. No entanto, a sua visão ia muito para além da igualdade racial. Ele acreditava que a verdadeira justiça exigia o desmantelamento das estruturas da pobreza e a garantia da igualdade económica e social para todos. Ele próprio o disse no discurso Duas Américas em 1967: “Existem duas Américas. Uma América é bela para a situação atual. Nesta América, milhões de pessoas têm o leite da prosperidade e o mel da oportunidade a correr à sua frente. Mas quando nos reunimos aqui esta noite, tenho a certeza de que cada um de nós está dolorosamente consciente do facto de que existe outra América.”
Luta pela igualdade
O sonho de igualdade de King foi talvez expresso de forma mais eloquente no seu icónico discurso “I Have a Dream” (Tenho um sonho) durante a famosa manifestação, intitulada: A Marcha para Washington pelos Empregos e Liberdade, em 1963. Nesse momento marcante para a história americana, imaginou um futuro em que todos seriam julgados não pela cor da sua pele, mas pelo conteúdo do seu carácter. King compreendeu que, para alcançar a igualdade racial, era necessário enfrentar o racismo sistémico enraizado no estado americano, quer nas políticas e quer nas normas sociais.
As suas campanhas, incluindo a Campanha de Birmingham e as manifestações de Selma a Montgomery, chamaram a atenção para a brutalidade da segregação e forçaram o governo federal a agir. A capacidade de King para mobilizar diversas coligações – ativistas, líderes religiosos, sindicatos e cidadãos comuns – demonstrou a sua convicção de que a igualdade não era uma questão marginal. Era e ainda é um imperativo moral para todos os americanos. Assim o disse repetidamente: “Tenho a audácia de acreditar que todos os povos podem ter três refeições por dia para alimentarem os seus corpos, ter educação e cultura para suas mentes e dignidade, igualdade e liberdade para seus espíritos.”
Justiça económica e direitos dos trabalhadores
Martin Luther King Jr. reconheceu que a igualdade racial e a justiça económica eram inseparáveis. Nos seus últimos anos de vida, concentrou-se na luta contra a pobreza sistémica e na defesa dos direitos dos trabalhadores. A sua “Campanha dos Pobres” exigia políticas económicas que dessem prioridade às necessidades humanas em detrimento do lucro, tais como um rendimento garantido, habitação a preços acessíveis e acesso à educação e cuidados de saúde de qualidade.
Esteve profundamente envolvido nas lutas laborais, apoiando os trabalhadores do saneamento em greve na cidade de Memphis, estado de Tennessee, pouco antes de ser assassinado em abril de 1968. A sua presença em Memphis sublinhou o seu empenhamento na dignidade do trabalho e a convicção de que todos os trabalhadores, independentemente da sua posição, mereciam respeito, salários justos e condições de trabalho seguras. O respeito por todos os trabalhadores, algo que ainda não aprendemos: “Um dia, a nossa sociedade respeitará o trabalhador do saneamento se quiser sobreviver, porque a pessoa que recolhe o nosso lixo, em última análise, é tão importante como o médico, porque se ele não fizer o seu trabalho, as doenças são galopantes. Todo o trabalho tem dignidade.”
Defensor da Paz
Martin Luther King Jr. era um fervoroso defensor da paz, opondo-se veementemente à Guerra do Vietname. Argumentava que o militarismo desviava recursos da luta contra a pobreza doméstica e perpetuava ciclos de violência e opressão a nível mundial. No seu discurso de 1967, “Beyond Vietnam: A Time to Break Silence”, de 1967, descreveu a interligação entre o racismo, a exploração económica e o militarismo, apelidando os Estados Unidos de ‘o maior fornecedor de violência no mundo’.
A filosofia de não-violência de King não era passiva, mas uma estratégia poderosa para a mudança social. Exigia coragem, disciplina e um profundo empenhamento na justiça, demonstrando que a força moral podia triunfar sobre a agressão física. A sua resistência não violenta inspirou movimentos em todo o mundo, desde a luta da África do Sul contra o apartheid até às campanhas contemporâneas de direitos humanos. As palavras do seu discurso denunciando a guerra do Vietname, ressoam neste ano último ano do primeiro quartel do século XXI: “A nossa única esperança hoje reside na nossa capacidade de recapturar o espírito revolucionário e sair para um mundo por vezes hostil declarando hostilidade eterna à pobreza, ao racismo e ao militarismo.”
Os ensinamentos de King na América de hoje
Com uma América que enfrenta quotidianamente desafios políticos e sociais, incluindo a desigualdade económica, a injustiça racial e as ameaças às instituições democráticas, os ensinamentos de King oferecem-nos uma luz num túnel cada vez mais escuro. Particularmente no contexto de uma nova administração Trump, marcada por uma retórica polarizada e políticas abrangidas pela desigualdade, a visão de King torna-se ainda mais crítica. Os preceitos de Martin Luther King Jr., são ainda hoje de extrema importância.
- Abordar o racismo sistémico:
O racismo continua profundamente enraizado nas instituições americanas, desde o policiamento à educação. Os realces de King no desmantelamento das barreiras sistémicas devem inspirar políticas que promovam a equidade, como a reforma da justiça penal, a ação afirmativa e os investimentos em comunidades carenciadas. - Equidade económica:
O apelo de King à justiça económica é especialmente relevante numa era de crescente desigualdade de rendimentos. Os esforços para aumentar o salário mínimo, garantir cuidados de saúde para todos e apoiar os sindicatos alinham-se com a sua crença na dignidade do trabalho. Os decisores políticos devem dar prioridade à redução do fosso da riqueza e à resolução das causas estruturais da pobreza. É uma nódoa no sonho americano, que o país mais rico do mundo tenha tantos pobres. - Direitos laborais:
A solidariedade de King para com os trabalhadores sublinha a importância de proteger os direitos de negociação coletiva e de melhorar as condições no local de trabalho. É preciso resistir aos esforços para reverter as proteções laborais, e as novas políticas devem apoiar os trabalhadores que trabalham por turnos e os trabalhadores essenciais, muitos dos quais têm empregos precários, com salários miseráveis. - Defender a paz:
À medida que as tensões globais aumentam, a visão de King da paz através da diplomacia e da compreensão mútua continua a ser um antídoto crucial para o militarismo. A sua crítica ao desvio de recursos para despesas militares é um apelo a todas as forças políticas americanas: há que dar prioridade ao bem-estar doméstico e à cooperação global. Sim, cooperação global, não dominação global. - Construir coligações:
O sucesso de King residiu na sua capacidade de unir pessoas de todas as raças, religiões e classes sociais numa causa comum. No atual clima político fortemente marcado pelo divisionismo extremista, os ativistas e líderes devem trabalhar para construir coligações inclusivas que transcendam as divisões ideológicas e as retóricas perigosas que certamente fraturarão ainda mais o tecido americano.
Não sejamos ingénuos, a incorporação dos ensinamentos de King não está isenta de desafios. A resistência estrutural à mudança, a polarização política e a erosão da confiança nas instituições complicam o progresso americano. No entanto, a vida de King demonstra o poder de uma ação persistente e baseada em princípios comuns. A sua crença no arco moral do universo, que se inclina para a justiça, dá esperança e inspiração para continuarmos a defender as causas que nos tornam mais humanos. É que ainda hoje, o que nos deve preocupar não é: “o grito dos maus. É o silêncio dos bons.”
É fundamental educar as gerações mais jovens sobre o legado de King. As instituições de ensino precisam apresentar aos seus alunos não só os seus discursos mais famosos, mas também a sua filosofia mais alargada e as suas campanhas menos conhecidas, assegurando que os seus ensinamentos sejam debatidos e daí que retumbem para além das comemorações cerimoniais.
A vida e as palavras do Dr. Martin Luther King Jr. continuam a ressoar como um apelo à ação em prol de um mundo mais justo, equitativo e pacífico. A sua visão da igualdade, da justiça económica e da não-violência desafia-nos a enfrentar as injustiças do nosso tempo com coragem e compaixão. Enquanto a América se debate com questões profundas, os ensinamentos de King continuam a ser uma bússola moral, incitando-nos a construir pontes sobre as divisões e a trabalhar coletivamente para o bem comum.
Num momento crucial para a história americana, no dia (20 de janeiro de 2025) em que um dos presidentes mais divisionistas da história moderna americana toma posse, quando muitos querem abdicar da luta por um mundo melhor, é bom que nos relembremos das palavras de King: Se não puderes voar, corre. Se não puderes correr, anda. Se não puderes andar, rasteja, mas continua em frente.”
Ao refletirmos sobre o seu legado, é imperativo que nos EUA cada cidadão consciente de que a América é a tal sinfonia inacabada, possa concretizar o sonho de King nas suas próprias vidas. Que o façamos nas nossas comunidades (incluindo na nossa diáspora açoriana) e nas políticas que defendemos. Ao fazê-lo, honramos não só a sua memória, mas acima de tudo a verdade duradoura da sua visão.
“Mesmo se eu soubesse que amanhã o mundo se partiria em pedaços, eu ainda plantaria a minha macieira.” Plantemos, pois, a nossa árvore. É que, parafraseando-o, é justo que aceitemos uma deceção, mas nunca devemos perder a infinita esperança.