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OPINIÃO | O Relógio Parado dos Vivos: Envelhecimento e resistência em Os Velhos (the Elderly) de Paula de Sousa Lima, por Diniz Borges

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Os Velhos (the Elderly), Paula de Sousa Lima traz a cada leitor uma meditação lírica e inabalável sobre o envelhecimento, a solidão e a memória. O romance centra-se nos residentes de um lar, em particular em Maria de Fátima, uma mulher de 88 anos cuja vida interior é tão rica como o mundo institucional que a rodeia é estéril. Mas reduzir esta obra à história de uma única protagonista seria perder o seu objetivo mais vasto e assombroso: Os Velhos (the Elderly) é um romance coral, uma tapeçaria de vozes silenciadas que em que cada residente – a cochilar, a tropeçar, a sonhar, a ser esquecido – contribui para uma elegia coletiva a quem a sociedade pôs de lado. Um livro sobre a geografia do esquecimento. 

Não há melodrama aqui. Paula de Sousa Lima evita o sentimentalismo em favor de uma tristeza silenciosa e cumulativa, expressa numa prosa precisa e sem exagerados adornos. O que emerge é uma história profundamente humana sobre o que significa envelhecer num mundo que já não tem tempo para os velhos. Não se trata de um apelo à piedade. É uma exigência de ser visto, ou o peso invisível da presença.

O lar de idosos é descrito menos como um refúgio e mais como um purgatório caiado de branco. As paredes são neutras, a temperatura regulada, as refeições repetitivas. Os dias desenrolam-se numa rotina implacável – chá às onze, sopa ao meio-dia, biscoitos macios às quatro. O tempo aplana-se. Cada hora assemelha-se à anterior. E, no entanto, dentro desta monotonia, a vida interna dos residentes cintila com intensidade, marcada por memórias fragmentadas, ansiedade, saudade e momentos de surpreendente clareza.

Entre eles, Maria de Fátima continua a ser a âncora emocional. Uma mulher outrora orgulhosa e devota que agora se esqueceu de como rezar – murmura através de rosários que já não oferecem conforto. O seu sentido de identidade começou a dissolver-se.  E não está sozinha na sua desintegração. À sua volta há outros: Ernestina dos Anjos, amarrada na poltrona por um lençol para evitar que caia para a frente. Baba-se e os cuidadores reagem por vezes com repugnância. Embora quase não fale, a sua presença é uma lembrança assustadora de como a dignidade é retirada aos idosos em ambientes institucionais. Ernestina torna-se emblemática do declínio físico e da indiferença com que a sociedade trata os seus mais vulneráveis. Só é notada quando se torna inconveniente. Através dela, e do sofrimento que viveu fora do lar, verificamos a realidade deste ser um espaço onde já não somos, mas estamos. 

Bernardino Augusto, em contrapartida, é o mais politicamente consciente dos idosos residentes. Tem uma voz aguda e crítica no lar, onde é visto como uma presença subversiva. Antigo revolucionário, reflete sobre os seus ideais com desilusão, mas recusa-se renunciá-los. Bernardino vê a instituição como uma forma de controlo social, uma extensão dos sistemas contra os quais outrora lutou. A sua presença desafia tanto a estrutura do lar como a narrativa do envelhecimento passivo, tornando-o um símbolo de resistência, mesmo na velhice.

O que une todas estas personagens é a negação da complexidade. São tratadas como conchas, definidas por sintomas. Os funcionários referem-se a elas com uma abreviatura clínica – surdas, senis, incontinentes – como se o seu valor fosse mensurável apenas pelo que já não podem fazer. Neste extraordinário romance Paula de Sousa Lima desafia esta redução a cada passo. Vemos estes protagonistas como seres humanos plenos. Alguns recordam a sua juventude, outros têm sonhos vividos e muitas vezes aterradores. Preocupam-se, anseiam, recordam. Continuam a tentar dar sentido à vida, mesmo quando a morte se aproxima.

Um dos dispositivos mais poderosos do romance é a justaposição entre a rotina mecanizada da casa e a rica interioridade dos seus residentes. Enquanto as suas vidas exteriores são definidas por um horário rigoroso, os seus mundos interiores permanecem turbulentos e vivos. Os seus sonhos não são fugas pacíficas, mas sim eventos cheios de metáforas, memórias e, por vezes, de horror. Parafraseando Maria de Fátima, os sonhos são por vezes mais robustos do que a realidade.  Uma espécie de cartografia da ausência.  

Talvez o mais chocante seja o comentário social embutido nas narrativas pessoais. Os residentes não estão no lar apenas por causa da idade avançada. Estão lá porque as suas famílias decidiram – muitas vezes apressadamente e sem uma compreensão profunda – que os idosos são um fardo. Clara, a nora de Maria de Fátima, considerava intoleráveis os seus esquecimentos e pequenos deslizes. Uma chaleira queimada torna-se a desculpa para o exílio. O filho, Ricardo, não oferece resistência. O mais devastador desta rutura geracional não é a ausência de visitas, mas a perda de uma linguagem significativa.

O romance é também uma meditação sobre a invisibilidade. Estamos perante o paradoxo – presença sem reconhecimento – é a essência da dor. Os residentes não estão apenas separados da família, mas também de si próprios. Maria de Fátima esquece-se por vezes do seu próprio nome. Ernestina dos Anjos não é chamada pelo seu. Os funcionários gritam sobre o cheiro, a sujidade, o incómodo. Não falam com a pessoa, falam por cima dela.

Os Velhos (The Elderly) não é, entretanto, um romance desolador. A sua beleza reside na forma como devolve a visibilidade àqueles que se tornaram invisíveis. Ao dar espaço a cada protagonista idoso – ao debruçar-se sobre os seus pequenos pensamentos, os seus sonhos incómodos, as suas indignidades – Paula de Sousa Lima devolve-lhes a dignidade. Mesmo uma personagem como o Sr. Alcino, que se suja na sua cadeira, não se reduz a esse momento. Também ele existe em plenitude, mesmo que o mundo se recuse a vê-lo.  Dir-se-á que estamos perante um purgatório de pequenas coisas.  

Uma das cenas mais ternas do romance ocorre quando Maria de Fátima reconhece um novo morador como sendo o Luís, o seu primeiro amor. O seu coração agita-se – e depois esconde-se. “Não olhes para mim”, pensa ela. “Não procurem em mim nada que vos faça lembrar a rapariga que eu era.” Quer ser lembrada, mas não vista. Tem vergonha no que o tempo a transformou. E nessa vergonha, vemos a crueldade final, não dita, mas entendida, de como as nossas sociedades enquadram o envelhecimento – não como uma evolução, mas como uma erosão.

A sensibilidade açoriana de Paula de Sousa Lima aprofunda esta paisagem emocional. As memórias de Maria de Fátima estão impregnadas da vida na ilha – bordar com a mãe, olhar para Luís por detrás de uma cortina, o cheiro a eucalipto, a proximidade do mar. Estas memórias, embora fragmentárias, têm cor e peso. É nelas que reside a sua identidade. Aqui, o passado não é nostalgia. É identidade. É tudo o que lhe resta. O infinito dentro da rotina. 

Numa altura em que as populações envelhecidas estão a expandir-se globalmente, Os velhos (The Elderly) é simultaneamente literatura e alarme. Questiona a forma como cuidamos dos vulneráveis, como definimos a utilidade, como preservamos a dignidade quando a autonomia diminui. Mostra, com clareza e graça, que o envelhecimento não é um problema a ser gerido – é uma vida a ser honrada.  É sobretudo uma tapeçaria dos esquecidos. 

Os Velhos (The Elderly) é um romance que engloba vários temas e subtemas: a erosão da memória, a política de cuidados aos idosos, o terror dos sonhos, a persistência da identidade e o heroísmo silencioso daqueles que continuam a viver depois de terem sido esquecidos. Acima de tudo, é um romance sobre a dignidade – a luta para a manter, para a reconhecer e para a estender aos outros. Como Maria de Fátima nos diz, com uma clareza de partir o coração: “Não morremos, como seria natural e conveniente, e é isso que é intolerável. Mesmo sem sermos vistos, permanecemos”.

Através destas vozes – borradas, rachadas, mas ainda falando – Paula de Sousa Lima restaura não apenas a memória, mas a presença. E para os leitores dispostos a interiorizar as múltiplas mensagens deste romance, a autora restaura algo que se tornou radical na nossa contemporaneidade: a empatia.

Por estas e por tantas outras razões li e traduzi Os Velhos (The Elderly) de Paula De Sousa Lima, um dos romances que mais me marcou nos últimos tempos.  Agora nas duas línguas da nossa existência como açorianos das nove ilhas e de uma diáspora centenária, a escrita singular desta autora pode chegar mais longe.  Pode atravessar latitudes e geografias, desencadeando em cada leitor, ora em português, ora em inglês, o desejo de enfrentarmos os dilemas que por vezes queremos esquecer.  Yoko Ono disse-o magistralmente: “A primavera passa e lembramo-nos da nossa inocência.  O verão passa e lembramo-nos da nossa exuberância.  O outono passa e lembramo-nos da nossa reverência. O inverno passa e lembramo-nos da nossa perseverança.”

Comprem-no em português, porque é uma obra que merece a vossa leitura e comprem-no em inglês para os vossos primos da América. Está aí em edição portuguesa da Letras Lavadas, editora heroína da nossa Região e em edição na língua inglesa da LL e Bruma Publications do Instituto PBBI da Universidade do Estado da Califórnia em Fresno, que nos confins da nossa diáspora, na longínqua Califórnia tenta, sem um único centavo de apoio, trazer a criatividade açoriana junto das novas gerações e do público americano.  Oferecem-no porque como ouvi algures: há gestos que iluminam e, dar um livro, é acender uma constelação na alma do outro. 

Mauricio De Jesus
Maurício de Jesus é o Diretor de Programação da Rádio Ilhéu, sediada na Ilha de São Jorge. É também autor da rubrica 'Cronicas da Ilha e de Um Ilhéu' que é emitida em rádios locais, regionais e da diáspora desde 2015.