Hoje é um daqueles dias de inverno (canadiano) em que a Mãe Natureza transformou a paisagem num daqueles belos cenários que, em tempos da minha vida, julguei que só podiam existir nos cartões de Natal das Américas, e que a minha história de emigração fez com que se tornasse real.
Da minha janela, olho para a neve que se acumula fora da porta e vem-me à lembrança bonitas recordações dos meus filhos que cresceram a brincar neste manto branco.
Hoje, já há uns vinte centímetros de neve acumulada fora da porta. Neve que, aliada a uma brisa gelada, transforma as estradas num caos. Respiro de alívio mal passo a porta de casa e deixo escapar o tal desabafo que todos já se habituaram a ouvir em dias de tempestade:
— É hoje que me vou embora para a Fajã de São João!
Hoje sabia bem comer um daqueles caldos de peixe como antigamente. Com sargo, bodião e — quantas vezes — com tainhas apanhadas na rede de malhar que se armava numa vara que encaixava nas argolas de ferro que havia no muro à ponta do cais no Porto da Panela e que, em noites de bonança em pleno inverno, fazia o milagre de um caldo de peixe na mesa.
Era também nessas longas noites de inverno que os serões eram animados com as histórias e lendas que os meus anciãos se iam lembrando de contar, ora para causar umas boas gargalhadas ou, então, para me deixarem de cabelos em pé.
Quantas vezes nos sentávamos nuns banquinhos de madeira ou de osso de baleia, perto do lar da cozinha, a olhar o lume que, ardendo vagarosamente, ia consumindo os grandes toros de faia-de-boi ou de incenseiro — que ainda haviam de ter brasa na manhã seguinte —, enquanto coziam um caldeirão de inhames.
As histórias de bruxas e feiticeiras que cantavam à noite de cima dos portões da Fajã, através da voz dos melros pretos, acompanharam-me durante anos sempre que saía à rua de noite.
Era na noite de 2 de Fevereiro que tinha mais medo… Tinha sido em tal dia que se deu a história da mulher que, a sol posto, vinha da ribeira e que ao passar pela Baía D’Areia começou a ouvir como que um tinir de campainhas.
Como não via ninguém ou gado no caminho, olhou para o mar e se apercebeu de alguns botes estranhos com umas luzes estranhas, rumando para terra rapidamente. Eis que, de repente, se lembrou que era o dia dos Carianos! E desatou a correr, sem olhar para trás, chegando, sem fôlego, ao Canto do Calhau, mas ainda conseguia ouvir o ressoar de vozes e de correntes a serem arrastadas pelo calhau rolado da baía.
Reza a lenda que na noite de 2 de fevereiro os careanos acorrentam as pessoas para as levarem com eles para o mar. Eu até me escondia debaixo das mantas se nessa noite ouvisse o mar naquele lamento arrepiante que anuncia tempestades. Valia-me do ditado: “O vento que venta, não venta. O ar que urra não urra. Atrás de mim não vem gente. Ó meu Deus, quem tanto me empurra?” Só podia ser.
Mas havia histórias do mafarrico! Como da vez que em casa de baile apareceu um desconhecido que, mal pegando na viola, tocava tão bem que todos pediam para ele continuar, ao que ele acedeu com uma condição: Não podia haver crianças por perto. Logo o dono da casa trancou todas numa sala contígua. Às tantas, a criançada, já farta de tal castigo, começou a trepar para espreitar por cima do frontal que, por sinal, não chegava ao tecto da casa e foi quando um rapaz gritou:
— Ó pai, quem é aquele homem com cornos e pés de cabra que está a tocar viola?! — Foi tamanho estrondo, deixando todos aterrorizados e na mais completa escuridão. Quando amanheceu, concluíram que tinha sido o diabo em pessoa que tinha estado ali naquela noite.
Pelo sim, pelo não, antigamente, em noites de tempestade, apagavam-se as grisetas e os candeeiros na Fajã de São João e o escuro era de breu. Contava-se apenas com o reflexo do farol da ilha do Pico. Nessa altura, era melhor pensar em histórias mais engraçadas, como daquela vez que o meu tio emprestou um “flashlight” americano a uns amigos que moravam longe e a altas horas da noite, ao regressar com ele na mão nunca o conseguiram apagar. Estafados de lhe soprar, até o tinham abafado num cobertor, mas o foco dava cada vez mais luz!
No dia dos Carianos — ou Cramilhanos — as bruxas e feiticeiras tiveram de ir passear para onde não haja electricidade — porque na Fajã de São João, e mesmo no Verão, as luzes do caminho ficam acesas pelo menos mais duas horas depois de o sol nascer.
Desejo a todos um feliz dia de Carianos ou Cramilhanos!
Rosa Maria.