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OPINIÃO | O Mês da História Afro-Americana: Destacando ícones, patenteando injustiças, abraçando oportunidades, por Diniz Borges

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“A história não é o passado. É o presente. 
Transportamos a nossa história connosco. 
Nós somos a nossa história.”
James Baldwin, escritor afro-americano (1924-1987)

Todos os anos fevereiro traz-nos o mesmo ritual: o mês dedicado à história dos negros nos Estados Unidos.  É ainda mais um momento para refletir e celebrar a rica herança, a resiliência e as contribuições dos afro-americanos para a história e a cultura da nação americana. Desde as primeiras lutas contra a escravatura até à luta atual pelos direitos civis e pela justiça social, os afro-americanos desempenharam um papel fundamental na definição do curso da história e do caracter americanos.  Mais do que exploraremos algumas das principais figuras históricas que deixaram uma marca indelével na paisagem da história dos negros nos Estados Unidos, há ainda que refletir, uma vez mais, o racismo e a situação atual de um povo cuja presença em território estadunidense antecede em mais de 150 anos, com os primeiros escravos a chegarem em 1619.  A comunidade afro-americana nos Estados Unidos tem uma história rica e complexa, marcada pela resiliência, criatividade e luta. Embora tenham sido feitos progressos significativos na luta pela igualdade e pela justiça, os desafios sistémicos continuam a ter impacto na vida dos afro-americanos em todo o país.  O mês de fevereiro, tem servido para relembrar os ícones desta comunidade, assim como os um espaço para a reflexão de uma das comunidades mais vitimadas na democracia americana.  

A história dos afro-americanos nos Estados Unidos está profundamente ligada à luta pela liberdade e pela igualdade. Figuras como Harriet Tubman, Sojourner Truth e Frederick Douglass são símbolos imponentes de resiliência e determinação perante a adversidade.  Harriet Tubman, muitas vezes referida como o “Moisés do seu povo”, nasceu na escravatura, mas fugiu ao encontro da liberdade em 1849. Tornou-se uma das mais famosas condutoras da Ferrovia Subterrânea, conduzindo inúmeros indivíduos escravizados à liberdade no Norte do país. A coragem e a arte de Tubman fizeram dela uma lenda no seu tempo e um símbolo de esperança para as gerações vindouras.

Sojourner Truth foi outra figura proeminente na luta contra a escravatura e pelos direitos das mulheres. Nascida escrava em Nova Iorque, Truth escapou da escravatura no ano de 1826 e mais tarde tornou-se uma poderosa defensora da abolição e do sufrágio feminino. O seu famoso discurso “Ain’t I a Woman?-Não sou eu uma Mulher?”, proferido na Convenção dos Direitos da Mulher de 1851, no estado de Ohio, continua a ser uma pedra angular do movimento dos direitos da mulher. Ainda hoje as palavras de Sojourner Truth ressoam no movimento para a igualdade das Mulheres nos Estados Unidos: “Enquanto às mulheres negras forem negados os mesmos direitos e oportunidades que às mulheres brancas, a luta pelos direitos das mulheres permanecerá incompleta.  Por isso, digo-vos hoje, vamos manter-nos juntos, negros e brancos, unidos na nossa causa comum. Vamos erguer-nos uns aos outros, apoiar-nos uns aos outros e lutar juntos por um futuro em que todas as mulheres sejam tratadas com dignidade, respeito e igualdade.”

Frederick Douglass, que fugiu das correntes da escravatura em 1838, tornou-se uma das vozes mais influentes do movimento abolicionista. Os eloquentes discursos e escritos de Douglass desafiaram a instituição da escravatura e apelaram à plena inclusão dos afro-americanos na sociedade americana. A sua autobiografia, “Narrative of the Life of Frederick Douglass, an American SlaveNarrativa da Vida de Frederick Douglass”, continua a ser uma obra clássica da literatura americana.  “Eu estava rachado de corpo, alma e espírito. A minha elasticidade natural foi esmagada, o meu intelecto enfraqueceu, a disposição para ler desapareceu, a centelha alegre que permanecia nos meus olhos morreu; a noite escura da escravatura fechou-se sobre mim; e eis um homem transformado num bruto!”

A luta pelos direitos civis atingiu o seu auge nas décadas de 1950 e 1960, quando os afro-americanos lutaram contra a segregação, a discriminação e a privação de direitos. Durante esse período, várias figuras-chave surgiram como líderes do Movimento dos Direitos Civis, incluindo Martin Luther King Jr., Rosa Parks e Malcolm X, entre outros menos falados mas essenciais para esta luta que acabou por libertar todos os americanos.

Martin Luther King Jr. foi um ministro batista e ativista social que se tornou o rosto do Movimento dos Direitos Civis. Através da sua liderança de protestos não violentos e da sua poderosa oratória, King desempenhou um papel fundamental na promoção da causa dos direitos civis na América. O seu famoso discurso “I Have a Dream”, proferido durante a Marcha sobre Washington em 1963, continua a ser um dos momentos mais emblemáticos da história americana.  “Tenho o sonho de que os meus quatro filhos pequenos viverão um dia numa nação onde não serão julgados pela cor da sua pele, mas pelo conteúdo do seu carácter.”  Esse sonho ainda não, infelizmente para todos os americanos de todas as raças, credos e culturas, ainda anão foi realizado.  

Rosa Parks, muitas vezes referida como a “mãe do Movimento dos Direitos Civis”, tornou-se um símbolo internacional de resistência quando se recusou a ceder o seu lugar a um passageiro branco num autocarro segregado em Montgomery, Alabama, em 1955. O ato de desafio de Parks desencadeou o Boicote aos Autocarros de Montgomery e galvanizou o Movimento dos Direitos Civis.

Malcolm X foi uma figura proeminente na luta pelos direitos civis, mas a sua abordagem difere da de Martin Luther King Jr. Enquanto King defendia a resistência não violenta, Malcolm X adotava uma posição mais militante, apelando à autodefesa e à autodeterminação dos afro-americanos. Apesar das suas diferenças, ambos foram fundamentais no trajeto de trazer à ribalta as injustiças enfrentadas pelos afro-americanos e na promoção de mudanças significativas. Malcom X, foi perentório numa verdade que ainda hoje nos aflige: “Não se pode separar a paz da liberdade, porque ninguém pode estar em paz se não tiver a sua liberdade.”

Embora o Movimento dos Direitos Civis tenha trazido ganhos significativos na luta pela igualdade, a luta pela justiça racial continua até aos dias de hoje. Nos últimos anos, figuras como Barack Obama, Kamala Harris e Stacey Abrams surgiram como vozes influentes na luta contínua contra o racismo sistémico e a desigualdade.

Barack Obama fez história em 2008, quando se tornou o primeiro afro-americano a ser eleito Presidente dos Estados Unidos. Durante os seus dois mandatos, Obama trabalhou para resolver questões como a reforma dos cuidados de saúde, a desigualdade económica e a reforma da justiça penal. A sua presidência constituiu um marco significativo na busca do progresso racial na América.

Kamala Harris fez história em 2021 quando foi empossada como a primeira mulher, a primeira negra e a primeira vice-presidente asiático-americana dos Estados Unidos. Ao longo de sua carreira, Harris tem sido uma defensora vocal da reforma da justiça criminal, dos direitos dos imigrantes e da saúde reprodutiva das mulheres. A sua eleição para o segundo cargo mais alto do país representa um momento de grande avanço para as mulheres e as pessoas de cor na política americana.

Stacey Abrams, política, advogada e ativista dos direitos de voto para todas as minorias, têm estado na linha da frente dos esforços para combater a supressão de eleitores e expandir o acesso às urnas. Os esforços de organização de base de Abrams na Geórgia desempenharam um papel crucial na transformação do estado em azul na eleição presidencial de 2020 e ajudaram a garantir vitórias democráticas no segundo turno das eleições para o Senado. O seu trabalho inspirou uma nova geração de ativistas a lutar pela democracia e pela igualdade.  É que ainda estamos infestados com problemas de enormes proporções na igualdade para todos, e a comunidade afro-americana continua vítima em várias frentes.  Vejamos apenas três:

Disparidades na educação:

A educação é frequentemente aclamada como o grande equalizador, mas as disparidades educativas persistem ao longo das linhas raciais aqui nos Estados Unidos. Os estudantes afro-americanos têm mais probabilidades de frequentar escolas subfinanciadas, com menos recursos e professores experientes. Consequentemente, enfrentam taxas de abandono escolar mais elevadas, resultados académicos mais baixos e acesso limitado a oportunidades de ensino superior. A linha de transmissão da escola para a prisão agrava ainda mais estas disparidades, canalizando os estudantes afro-americanos para o sistema de justiça criminal, em vez de lhes dar o apoio e os recursos de que necessitam para serem bem-sucedidos.

Disparidades no domínio da saúde:

As disparidades no domínio da saúde também afetam de forma desproporcionada a comunidade afro-americana nos Estados Unidos. Os negros americanos apresentam taxas mais elevadas de doenças crónicas, como a diabetes, a hipertensão e a obesidade, em comparação com os seus homólogos brancos. Além disso, o acesso a cuidados de saúde de qualidade continua a ser um desafio significativo para muitos afro-americanos, em especial para os que vivem em comunidades com baixos rendimentos. Fatores estruturais como a falta de seguro de saúde, o acesso limitado a cuidados preventivos e os riscos ambientais contribuem para estas disparidades, sublinhando a necessidade de uma reforma abrangente dos cuidados de saúde e de intervenções específicas para resolver as causas profundas das desigualdades na saúde.

Sistema de justiça penal:

O sistema de justiça penal continua a ser um local de profunda injustiça para a comunidade afro-americana nos Estados Unidos. Os negros americanos são desproporcionadamente visados pelas forças da ordem, são presos com maior frequência e recebem sentenças mais severas do que os americanos brancos por infrações semelhantes. O perfil racial, a brutalidade policial e o encarceramento em massa tornaram-se características duradouras do panorama da justiça penal americana, perpetuando ciclos de pobreza, privação de direitos e alienação social nas comunidades afro-americanas. Os apelos à reforma da polícia, à reforma da justiça penal e ao desmantelamento do racismo sistémico no seio das forças da ordem têm vindo a aumentar nos últimos anos, mas há ainda muito trabalho a fazer para conseguir uma mudança significativa. 

O racismo contra a comunidade afro-americana nos Estados Unidos é uma questão social premente que exige atenção e ação urgentes. Embora tenham sido feitos progressos na luta contra o racismo, ninguém o nega, as desigualdades sistémicas persistem, perpetuando ciclos de injustiça e opressão. A luta contra o racismo exige uma abordagem multifacetada e moderna que inclua o desafio às estruturas sistémicas, a promoção da diversidade e da inclusão e o fomento da empatia e da compreensão entre as clivagens raciais. Ao confrontar o racismo em todas as suas formas e ao trabalhar para uma sociedade mais justa e equitativa, a grande nação americana pode criar uma sociedade em que todos os indivíduos sejam tratados com dignidade, respeito e igualdade, independentemente da sua raça ou etnia.  Nós, acorianos e açor-descendentes, apesar das nossas histórias com a discriminação, também temos um longo caminho a percorrer.  

Os desafios que a comunidade afro-americana enfrenta nos Estados Unidos são vastos e multifacetados, com raízes plantadas em séculos de racismo sistémico, de discriminação e de opressão. A resolução destes problemas exigirá um esforço concertado dos responsáveis políticos, dos líderes comunitários e dos indivíduos. Ao reconhecer as realidades da desigualdade racial e ao trabalhar em conjunto para desmantelar as estruturas que a perpetuam, podemos criar uma sociedade mais justa e equitativa para todos os americanos. Ao enfrentarmos os desafios de hoje, inspiremo-nos na resiliência e determinação da comunidade afro-americana ao longo da história, sabendo que o progresso é possível quando nos unimos em solidariedade e lutamos por um futuro melhor.

Mauricio De Jesus
Maurício de Jesus é o Diretor de Programação da Rádio Ilhéu, sediada na Ilha de São Jorge. É também autor da rubrica 'Cronicas da Ilha e de Um Ilhéu' que é emitida em rádios locais, regionais e da diáspora desde 2015.