OPINIÃO | O Atlântico Não Separa a Palavra: A construção de pertença entre os Açores e o Canadá, por Diniz Borges

Antes de qualquer palavra, havia um murmúrio — feito de vento, mar e memória — que atravessava gerações como quem atravessa um oceano com os olhos fechados. Era o som de uma terra que se recusava a ficar para trás, um sussurro entranhado na alma, o fio invisível que ligava o passado ao presente em forma de língua, de sotaque, de pertença. Aquele murmúrio tornou-se voz — a voz que resiste nos jornais, nas estações de rádio e televisão da nossa diáspora – a voz que diz: ainda aqui estamos.
Mais do que papel, antena ou megabyte, a imprensa étnica é um território afetivo. É o som de casa numa língua que sobrevive à geografia, ao tempo e ao esquecimento. Como escreveu Daniel de Sá, “a voz dos que partiram ficou pendurada nos beirais das casas que deixaram.” É essa voz que ainda hoje nos chama pelo nome — mesmo que dito com o sotaque da distância.
Em países construídos com a argamassa da diversidade — como o Canadá, —, a imprensa étnica tem sido alicerce invisível de coesão social e identidade cultural. Em espaços onde os media dominantes uniformizam, os jornais, rádios e televisões comunitárias oferecem nuance. Oferecem o lugar que a diáspora precisa. A sua importância não reside apenas na informação que transmitem, mas na memória que preservam e na ponte que constroem entre o que se foi e o que se está a ser. A imprensa étnica é uma forma de resistência simbólica e afetiva contra a erosão da identidade e da língua.
Um dos papéis mais vitais que a comunicação-social de língua portuguesa de Québec tem sabido fazer, é criar pontes entre gerações. Para os que chegaram, a língua da terra natal é âncora. Para os que nasceram já com a cidadania do país de acolhimento, a mesma língua é caminho de regresso, mapa genético da pertença. O estudioso canadiano Karim H. Karim observou que “os meios de comunicação étnicos funcionam como janelas para o mundo, permitindo aos imigrantes manter uma ligação às suas raízes e, ao mesmo tempo, participar na vida cívica e social do seu país de acolhimento.” Esta pertença com memória — e não com esquecimento — é o que distingue a integração consciente da assimilação forçada. A imprensa étnica não pede que deixemos de ser quem somos; convida-nos a sermos mais.
Através de jornais comunitários, programas de rádio, transmissões televisivas, portais digitais e conteúdos multilingues, a imprensa étnica cria o que Vitorino Nemésio chamaria de “segunda pátria emocional”: um lugar onde os filhos da diáspora podem reconhecer-se sem se perderem.
Em Montreal — cidade bilingue (em muitos casos trilingue), criativa e plural — a imprensa de língua portuguesa tem sido essencial para manter o elo entre as gerações luso-canadianas. O vosso admirável trabalho tem ido muito além da nostalgia: tem reforçado competências linguísticas, formado cidadãos atentos, permitindo que uma nova geração cresça com orgulho das suas heranças. Como defendeu Paulo Freire, “a linguagem é um ato de criação e de recriação.” E é isso que os senhores e as senhoras fazem com mestria: recriam continuamente a ponte entre o ontem e o amanhã.
A comunicação social da diáspora açoriana na província do Québec tem desempenhado um papel exemplar na construção de uma comunidade coesa, trilingue e culturalmente consciente. Não apenas preserva o português, como dialoga com o francês e o inglês, gerando uma trituração linguística e cultural única, servindo como instrumento de representação política, como cronista de migrações familiares e como guardiã das práticas religiosas, das festas populares e dos gestos do quotidiano que definem um povo, o nosso povo.
Torna-se por isso urgente reforçar os laços entre os órgãos de comunicação social dos Açores e os da diáspora. A ADMA – Azores Diaspora Media Alliance, recentemente criada, poderá ser um catalisador fundamental nesta missão. Ao promover o intercâmbio de conteúdos, ideias e talentos, a ADMA pode ajudar a construir uma esfera pública transatlântica onde os açorianos da origem e os da diáspora se encontrem numa conversa contínua. Como escreveu Pedro da Silveira, “não há Atlântico que separe a palavra que é de todos.”
Ao ecoar as vozes da diáspora, ao dar espaço ao “outro”, ao rejeitar a uniformidade, os meios de comunicação social da diáspora meios alimentam o espírito democrático. São, como disse o jornalista Joe Fiorito, parte essencial da “conversa das cidades”. Uma conversa polifónica, plural, inquieta — como todas as conversas verdadeiramente livres.
Num tempo em que o ruído ameaça substituir a escuta, onde o efémero devora o enraizado, os OCS da Diáspora são um lugar de permanência. É onde ainda se pode ler sobre a Festa do Espírito Santo, ouvir um poema de Natália Correia, ou descobrir que um sucesso da comunidade local. Daí que, mesmo longe da ilha, mesmo sem as hortênsias, mesmo sem o mar, escrevemos. Porque como disse Antero de Quental, “a alma que sente é a que sabe.” E sentir — a língua, a memória, o outro — é o que nos faz humanos.
Por isso, continuam a girar as rotativas, a vibrar as antenas, a ecoar as vozes. Em português, sempre que for possível— mas também no idioma mais antigo do mundo: o da pertença. A comunicação social da nossa diáspora não é apenas espelho. É lâmpada. É bússola. É raiz. É a caneta com que a diáspora escreve o seu nome no presente — e traça com firmeza o contorno do futuro.
(Texto apresentado no encontro dos OCS dos Açores e da Diáspora em Montreal, no Canadá)