A luta não termina quando perde
Natália Correia, in Rascunho de uma Espístola.
Já lá vão uns anos que partilhei um “post” do Facebook, do editor do jornal Tribuna Portuguesa, José Avila, sobre uma feira de livro na cidade de Manteca, no norte do vale de São Joaquim, onde muitos açorianos e açor-descendentes fazem as suas vidas. A feira era um certame pequeno, mas significativo, já que não é usual termos muitas feiras de livros neste Vale. Porém, estes espaços são cada vez mais importantes e todas as feiras de livros, das mais conhecidas às menos publicitadas, são importantes. É que a leitura é dos atos mais importantes para o crescimento de qualquer pessoa. Fazia-nos bem, muito mesmo, que as nossas festas (e Deus sabe que temos tantas) fossem também espaços da cultura livresca, que também fossem instrumentos para incentivar a leitura. Não nos ficaria mal, se tivéssemos nas nossas vivências culturais portuguesas em terras americanas, onde temos a festa do santo popular, do Divino, da bola, da sardinha, do chicharro e da lapa, a festa do livro. Para que isso aconteça há que haver um esforço mútuo. Há que haver a abertura das novas gerações para a cultura, e não só para a tradição. Há que haver a consciência que os livros nos fazem bem. E há que haver da parte dos poderes em Portugal, e nas Regiões Autónomas, a consciencialização, de que a cultura popular não precisa de apoios, sobrevive e sobrevive bem, porém a cultura dos livros, a passagem do nosso legado e do nosso património, além do popular, não está assim tão seguro. Há que ter uma outra abordagem perante o registo da nossa história na Diáspora e a necessidade de incentivar a criação literária, mesmo que seja numa outra língua, assim como a tradução literária, aliada a projetos de televisão, de rádio e de jornalismo que aproximem estes dois mundos, que deveriam ser um único mundo, um único espaço cultural.
Sabemos que no seio da nossa Diáspora portuguesa espalhada na Califórnia ( e diria por todo o continente norte-americanos) já se lê pouco em português, mas há cada vez mais obras literárias traduzidas. Desde as obras dos nossos maiores escritores portugueses aos contemporâneos de língua portuguesa e de toda a lusofonia. As traduções, muitas vezes graças ao esforço de maia dúzia de pessoas, começam a aparecer com maior frequência, apesar dos incentivos de Portugal serem sempre escassos e viciados. Felizmente que temos a Portuguese Heritage Publications da Califórnia, a Tagus Press a Bruma Publications, entre outras entidades aqui nos Estados Unidos a publicarem obras em inglês sobre temáticas portuguesas, algumas relacionadas com as comunidades e outras especializando-se em traduções de obras literárias portuguesas. Há um manancial de publicações que precisavam serem lidas pelas nossas comunidades, por todos e de todas as idades. Fazia-nos bem valorizarmos a cultura dos livros, da leitura, do saber, do conhecimento. Fazia-nos bem termos em cada festa uma minifeira do livro (há anos que fazíamos isso nos eventos da escola secundária em Tulare-não se vendia muitos, mas lá estiveram – e nos simpósios de Tulare—aí até vendíamos em quantidade muito razoável); fazia-nos bem passar o nosso legado cultural de uma forma mais abrangente, mais coesa e mais correta.
Sejamos honestos, o conhecimento dos nossos jovens adultos pela cultura portuguesa é ainda muito rudimentar. Nas nossas instituições fica-se pelos elementos mais básicos da cultura popular e pelo mundo português que raramente vá além da freguesia, ou da ilha – da aldeia ou da região. Raramente vá a todo o arquipélago, mais raro a toda a portugalidade, e muito mais raro ainda à lusofonia. Atuamos como se o centro do mundo e a cultura portuguesa estivessem circunscritos à freguesia dos nossos pais ou avós. Gerimos as nossas atividades comunitárias como se tudo o que engloba a riquíssima tradição da cultura portuguesa, e do mundo da língua portuguesa, estivesse implantado e restrito aos aspetos mais populares. A nossa comunicação social tem culpas no cartório. A nossa liderança comunitária (há?) tem culpas no cartório. Eu e os meus colegas académicos, os meus colegas educadores, temos culpas no cartório. As entidades diplomáticas portuguesas têm culpas no cartório. As nossas políticas para a Diáspora têm culpas no cartório. Porquê? Não é assim tão difícil compreender-se. Porque todos optam pelo mais fácil, pelo que dá nas vistas, pelo que tem impacto imediato.
Sabemos, todos os que mencionei acima, e mais alguns, que gastamos demasiado tempo com o popular e não damos espaço ao que nos vai solevar como comunidade: o conhecimento, a leitura, o saber. Sei que muita gente se sente confortável nesse pequeno espaço, mas somos mais, muito mais, e só com os livros, e uma cultura que enobrece o conhecimento, poderemos passar às novas gerações quem verdadeiramente somos. Não sei porque é que como comunidade temos medo dos livros?! Ou não temos?! Com o sem medo, não sejamos ingénuos: há que criarmos espaços para todos os aspetos do nosso património cultural. Temo que o que andamos a passar é mesmo muito básico, extremamente elementar e não será perene, ou seja: pode ser perene em termos de festividade, mas não será perene em termos de sumo, de marca identitária. Chegamos ao ponto, que mesmo no mais popular, no mais básico, quando se apresentam algumas ideias falsificadas ou exageradas, somos excomungados até à sétima geração. Porquê? Porque já sabemos tudo e porque colocamos a nossa cultura numa redoma muito pequena e muito paroquial.
Daí que desafio (no sentido inofensivo da palavra em inglês–challenge) as nossas organizações a copiarem este aspeto bonito desta festividade dos livros e começarmos a ter espaços para os livros, para a poesia, os romances, os ensaios, as cronicas, para a totalidade da literatura portuguesa. É tempo de irmos mais além. É tempo de levarmos o valor das nossas artes junto de toda a comunidade. Não tenhamos medo da literatura, da poesia, do ensaio, da crítica literária, do conto, etc. Criemos espaço para a cultura literária. Para se ter conhecimento da nossa identidade temos de conhecer elementos que vão além do popular, do que se repete todos os anos sem qualquer inovação, ou pior ainda da adulteração de princípios e filamentos identitários que se passam como portugueses e como açorianos, e não são, nem um nem outro. Há que conhecer a nossa história coletiva, a nossa literatura, a nossa poesia, os nossos contributos no mundo da filosofia, das ciências, entre tantas outras áreas do conhecimento. Os livros trazem-nos tudo isso. E um dos piores pecados dos poderes em Portugal é que sabem isso, mas preferem o discurso paternalista, o elogio gratuito, e não apoiam uma verdadeira política cultural para a nossa Diáspora. Pior! Quando apoiam, fazem-no, demasiadas vezes, como dizia a minha santa avó: por feições.
Seria muito bom mesmo que os luso-descendentes pudessem conhecer a irreverência poética de um José Régio e de uma Natália Correia; a criatividade de um Saramago, de um João De Melo, de uma Clarice Lispector, de um Mia Couto, de um Pepetela, de uma Vera Duarte, entre outros. Conhecer um Eça de Queiroz, um Antero de Quental, um Fernando Pessoa e o nosso Camões, além do nome, claro. Conhecer os nossos açorianos e a riqueza literária de um arquipélago que continua a produzir magníficos romancistas, poetas e cronistas. Conhecer e ler os nossos luso-descendentes, como um Frank Gaspar, uma Katherine Vaz, um Anthony Barcellos, uma Lara Goulart, um Sam Pereira, um Carlo Matos, uma Millicent Borges Accardi, uma Melinda Medeiros, um Tony John Roma, uma Paula Neves, uma Amy Baptista, uma Sharon Coleman, entre muitos outros.
Gastamos tanto tempo e energia em tantas atividades populares que nunca temos espaço para elementos fulcrais como a nossa literatura. E magoa-me, em termos culturais, ver jovens adultos, orgulhosos da sua cultura, mas sem a, verdadeiramente, conhecerem. Embora pensando e às vezes, vaidosamente, que a conhecem, sem nunca terem lido alguns dos nossos clássicos, alguns dos nossos contemporâneos, alguns dos nossos luso-americanos. Ainda que fosse para discordar com eles.
Há ainda muito que fazer nesta nossa Diáspora e não sei se algum dia chegaremos a esta ideia pela qual lutei (e ainda luto) durante os colóquios, simpósios e outras atividades que teimei em fazer, e ainda faço, ou seja: pensar-se a Diáspora além da próxima Festa e incentivar a leitura nas nossas vivências quotidianas, em português ou em tradução.
Bem sei que há quem ficará chateado com isto, em ambos os lados do atlântico. Não o escrevo para chatear ninguém, mas para alertar, para dizer aos poderes que a Diáspora não precisa de mais um elogio fácil, mais um discurso paternalista, mais um momento de elevação fictícia, mais uma oportunidade para se vender um Portugal milagroso, que não é assim tão milagroso se quisermos ter em consideração todos os dilemas sociais e económicos que, infelizmente, ainda se vivem em Portugal e nas regiões Autónomas. Não é para importunar, mas se estorvar, não é com os 64 anos que já cantam, que vou começar a preocupar-me com as críticas dos poderes, lá e cá, as quais francamente, como também dizia a minha santa avó: sempre as coloquei na borda do prato. O que sempre me preocupou foi o crescimento cultural das nossas comunidades. Esse crescimento cultural só se faz com a leitura. Não me venham dizer que são conhecedores da cultura portuguesa, como já ouvi tantas vezes, e, infelizmente, nunca leram um livro de um dos nossos escritores.
Todos sabemos que a cultura portuguesa vai muito além de um pé de dança e um prato de sopas.
*título vem de um poema de Natália Correia no ano que comemoramos o centenário do seu nascimento.