DIÁSPORAOPINIÃO

OPINIÃO | Entre Risos e Solidões: Humor, crítica social e universalidade nos contos de Artur Veríssimo, por Diniz Borges

511views

O Encantador de Viúvas e Outras Histórias é como atravessar um arquipélago feito de palavras — ilhas de ironia, mares de melancolia, vulcões de riso onde o humano se revela em carne viva. Cada conto é uma janela aberta para dentro da pedra vulcânica: por ela entra a luz da ternura e o sopro agreste da solidão. Há viúvas que dançam com a memória, professores que tropeçam na vingança dos antigos alunos, romeiros que se perdem no labirinto do desejo, e poetas que dialogam com pintores nunca encontrados. Nas páginas de Artur Veríssimo, o riso não é leveza: é cicatriz e bálsamo, espada e consolo. É a gargalhada  (ou a gaitada como aprendi no Ramo Grande, Terceira e ainda gosto de dizer) que ecoa no fundo das casas de pedra, lembrando-nos que, nas ilhas, a sobrevivência nunca se separou da arte de rir de si própria.

O humor, afinal, é uma das mais antigas máscaras da literatura. De Aristófanes, que fez da comédia grega um palco de crítica política, até Jonathan Swift, cuja A Modest Proposal é sátira feroz sob o disfarce do riso, sempre que os homens e as mulheres precisaram dizer a verdade sem serem queimados e usaram a ironia como disfarce. Cervantes, em Dom Quixote, desmonta a loucura do idealismo com gargalhadas que ainda ecoam nos corredores da literatura. Mark Twain, no século XIX, transforma a sátira em cartografia social: no livro As Aventuras de Huckleberry Finn, rir é denunciar o racismo e a hipocrisia de uma sociedade que se julgava civilizada. Philip Roth leva o humor ao limite da transgressão, expondo desejo e neurose, enquanto Kurt Vonnegut, em Matadouro Cinco, consegue o paradoxo supremo: rir do horror da guerra sem diminuir a sua tragédia.

O riso literário, quando bem usado, é libertação e conhecimento. Mikhail Bakhtin chamou-lhe “carnavalesco”, espaço de inversão e liberdade, onde os interditos se tornam risíveis. Henri Bergson via no riso um corretivo social, revelador da falha humana. Artur Veríssimo inscreve-se nesta tradição: o seu humor não é anedótico, mas estrutural, uma forma de revelação da condição humana. Rimos da viúva carente, do Baltasar mulherengo, da enfermeira vingativa, mas logo percebemos que rimos de nós próprios — das nossas carências, dos nossos medos, das nossas hipocrisias. Como escreve Paula de Sousa Lima, estes contos “apresentam situações do quotidiano, mas igualmente inusitadas, desconcertantes, imprevisíveis, surpreendentes (sobretudo nos finais), a que se junta […] uma dose de inteligente humor, marca distintiva deste autor de exceção.”

O volume reúne doze histórias, cada uma delas pequena peça-prima. Em Só os açorianos se beijam no vão da escada, a excêntrica tia Georgina inventa romances improváveis: “Com a sua alegria pueril, a tia Georgina é capaz de colorir, sem preconceitos e sem medo do ridículo, as coisas mais imperfeitas.” O título promete açorianos apaixonados, mas a história traz um casal coreano. A ironia é clara: nada é o que parece, e o humor nasce dessa incongruência. Em A vida amorosa de Baltasar Peixe-Rei, o grotesco domina. Baltasar, mulherengo inveterado, vive num ménage à trois. O narrador descreve: “A mulher é o pão quotidiano do amor, gostava Baltasar de dizer, subvertendo, sem vergonha, uma conhecida metáfora de António Vieira.” O riso aqui vem do exagero e da sátira social a uma comunidade que condena e inveja ao mesmo tempo.

A tentação do romeiro mostra o conflito entre fé e desejo. Um homem de fé recorda A Arte de Amar, de Ovídio, enquanto foge da tentação carnal. O humor é amargo, porque expõe a fragilidade humana. Em Perguntas que trazem bullying no bico, uma antiga aluna transforma humilhações escolares em vingança: “Lucrécia ainda se lembrava dessa galhofa cruel que a feriu para sempre. Tudo por culpa do professor Gabriel (ou terá sido da professora Celeste?).” A sátira é corrosiva, expondo a arrogância pedagógica.

No conto central, O encantador de viúvas, Veríssimo atinge o auge da ironia. O protagonista, um sedutor especializado, oferece felicidade efémera a mulheres solitárias. O humor, porém, não é ridicularização, mas ternura: rir das viúvas é humanizá-las, revelar a sua solidão silenciada. Já em O pintor e o poeta, Veríssimo inventa um diálogo impossível entre Domingos Rebelo e Armando Côrtes-Rodrigues. O irreal torna-se verosímil, num exemplo do seu realismo subversivo. Outros contos, como A carta e Não me envergonhes diante do doutor!, exploram o ridículo do quotidiano. Em O mar é importante para a navegação, Veríssimo revisita o mar açoriano sem épico, apenas como espaço de afetos e contradições. E em A última viagem, o lirismo mistura-se com o humor: “Viajar é apenas isto: fechar os olhos, sentir no rosto a brisa fresca da tarde e ouvir as histórias que o bracel-da-rocha ou a faia-da-terra escondem.”

A crítica reconhece o alcance deste autor. A escritora Paula de Sousa Lima diz-nos que O Encantador de Viúvas e Outras Histórias é “inusitado, inesperado, desconcertante, humorístico” e, por isso, um livro “aliciante”. Já Vamberto Freitas, que desde sempre tem esrito sobre a obra do autor, vai ainda mais longe: “Ler Artur Veríssimo é rir de página a página, é reconhecer a nossa inocência, as nossas virtudes e a nossa maldade. Brinca com os nossos desejos supostamente mais perversos, mas demasiado humanos, como acentua a profunda humanidade de outros, homens e mulheres.” Para o crítico literário, a sátira de Veríssimo é “implacável” e comparável à de Philip Roth. O mundo, escreve, é “feito de ilhas rodeadas de água ou terra”, tal como os Açores, e é isso que Artur Veríssimo nos mostra: uma humanidade em busca do seu sentido de vida.

Há ainda uma dimensão que não podemos ignorar: a necessidade de estes contos chegarem à diáspora açoriana, sobretudo às novas gerações que já não leem em português. Traduzir este livro seria um desafio imenso, porque o humor de Veríssimo é subtil, erudito e profundamente enraizado na linguagem popular da ruralidade açoriana. Muitas vezes intraduzível na sua literalidade, exige recriação e engenho. Mas é precisamente nesse desafio que reside a sua riqueza: dar a conhecer, em inglês, esta escrita única dos Açores, que combina ironia, crítica social e humanidade. Para os açor-descendentes da América do Norte, seria um encontro com a literatura da sua herança — não como peça de museu, mas como criação viva e contemporânea. Artur Veríssimo merece ser conhecido além da região, e os nossos jovens da diáspora necessitam sentir que a literatura açoriana também lhes pertence, que é parte da sua identidade cultural e afetiva.

O Encantador de Viúvas e Outras Histórias é, assim, uma tapeçaria onde o riso e a dor se entrelaçam, onde a solidão e a esperança se encontram. Cada conto é uma brecha por onde vemos a vida insular: o isolamento, o desejo, o amor, o ridículo, o bálsamo dos encontros improváveis. Como nos lembra a contracapa, são contos que “nos divertem e nos perturbam”. E no fim, percebemos que o humor de Veríssimo é vulcânico: brota das profundezas da ilha, explode em ironia, e deixa no leitor tanto a queimadura como o consolo. São contos sublimes — porque só o sublime sabe rir e chorar ao mesmo tempo.

Mauricio De Jesus
Maurício de Jesus é o Diretor de Programação da Rádio Ilhéu, sediada na Ilha de São Jorge. É também autor da rubrica 'Cronicas da Ilha e de Um Ilhéu' que é emitida em rádios locais, regionais e da diáspora desde 2015.