Estou p’ró mar, estou p’rá terra,
Estou p’ró sul, estou p’ró norte;
Estou p’rá paz, estou p’rá guerra,
Estou p’rá vida, estou p’rá morte.
Do livro A Turlu na Califórnia em 1938
Organização de Liduíno Borba
Recordo, vivamente, quando com apenas seis anos de idade, com os meus pais, apreciei a primeira cantoria ao desafio. Na longínqua década de 1960, sentado num banco junto ao império das Tronqueiras, pela festa do segundo bodo, marcou-me dois cantadores que destacaram a cantoria ao desafio na ilha Terceira, no arquipélago e na Diáspora espalhada pelos Estados Unidos da América, o Canadá e o Brasil, um duelo, entre o Ferreirinha das Bicas (pai) e o Charrua. Apesar de certamente não ter compreendido a dimensão desse desafio em quadras, achei-o fascinante, e fez-me para sempre um apreciador do que o ator Belarmino Ramos, no seu livro João Vital, Poeta de Todas as Ilhas descreveu como: “uma poesia de partilha imediata que existe apenas e só no momento em que acontece.” Num tempo muito mais simples, pelas mãos de meu pai e da minha avó paterna, tinha como heróis, não só o Ferreirinha e o Charrua, mas também o Caneta e o Gaitada, o Vital e o Abel, a célebre Trulu e um dos improvisadores que meu pai muito gostava, o José Fernandes.
As cantorias ao desafio, como é do conhecimento geral, fazem parte das nossas vivências, quer nos Açores, quer na Diáspora. Cada cantoria é um verdadeiro festival de poesia. Tal como escreveu o poeta Álamo Oliveira na nota introdutória ao excelente livro Caneta de tinta permanente na poesia popular: “milhares e milhares de versos, normalmente saídos sob forma de redondilha maior, são cantados nas festas das ilhas e nas comunidades da diáspora açoriana, sobrevivendo, de forma muito efémera, na memória dos ouvintes.” Daí a necessidade de registar-se em livro as vidas e as cantigas destes homens e mulheres, que segundo vários levantamentos, marcam várias ilhas do arquipélago desde cerca de 1810 e são uma parte importante do nosso calendário festivo, das nossas vivências culturais. Não há festa que se preze que não tenha a sua cantoria. Qualquer mordomo que queira ser lembrado tudo fará para trazer à sua festa cantadores de renome.
Alguns escritores e estudiosos, nem tantos como se desejaria, é certo, mas alguns, têm dedicado ensaios e publicações à arte do improviso. Gervásio Lima, nascido a 26 de maio de 1876 na Praia da Vitória, prolifico autor com vários ensaios e estudos na história e na etnografia dedicou-se à cantoria publicando várias obras nesse sentido. O Tenente Francisco José Dias no seu livro Cantigas do Povo dos Açores também dedica um capitulo aos Cantadores do Desafio. Num excelente texto introdutório à secção que dedica à cantoria, o autor traça merecidos elogios a estes chamados poetas do povo e descreve-os da seguinte forma:
São elementos preciosos saídos do povo os cantadores do desafio.
É por eles que se avalia a veia poética da gente açoriana. A rudeza
de modos e atitudes e a limitada instrução que possuem, não os impede
de exteriorizarem ideias sublimes, pensamentos elevados que admiram.
Rodeiam-se de assuntos históricos, bíblicos, mundanos e sobre eles
divagam à sua maneira na ornamentação das frases dispostas em quadras
ou sextilhas que lhes ocorrem naturalmente impulsionadas ou ajudadas
pelo som estimulante da viola da terra, som que lhes dá o canto, a melodia
que os inspira e que lhes abre as ideias; as palavras jorram como
água da nascente. (Cantigas do Povo dos Açores, pg 305)
É sobre esse cantador popular, que segundo o tenente Francisco José Dias, nasce cantador, que gostaria de referenciar dois livros que há anos foram lançados num sarau comemorativo do cinquentenário da geminação de Angra do Heroísmo na Terceira com Tulare na Califórnia. O autor dos dois, José Liduíno Melo de Borba, nasceu e vive na freguesia de São Mateus, concelho de Angra. Desde os 16 anos de idade que escreve versos e prosa. Desde 2007 que tem publicado várias obras ligadas à história, à biografia e vários temas da cultura popular. Num sumptuoso e extremamente bem escrito estudo introdutório ao livro Improvisadores da ilha Terceira, obra a partir do original do poeta José Henrique Borges Martins, o improvisador José Eliseu, um dos mais conceituados da cantoria contemporânea, afirma que Liduíno Borba “ressuscitou o interesse pelo registo e produção livreira da poesia popular terceirense”, apelidando-o de “o Biógrafo dos Cantadores”. É um cognome bastante apropriado já que são inúmeras a obras biográficas que Liduíno Borba tem publicado sobre os cantadores do improviso quer dos Açores, quer da Diáspora.
Nas obras Improvisadores da Ilha Terceira e Improvisadores da Diáspora, encontra-se nitidamente a paixão do autor por este tema. Partindo dos originais 95 cantadores, a nova edição conta com 207 improvisadores, começando com o famoso Terra e fechando com o jovem Roberto Toledo. Ao longo deste livro estão os dados biográficos de cada improvisador, assim como o registo de algumas quadras. Minuciosamente, estão ainda incluídos índices indispensáveis e dados extremamente pertinentes para entender a dimensão da cantoria ao desafio, como a curiosidade de 142 cantadores serem naturais do concelho de Angra do Heroísmo e 65 do concelho da Praia da Vitória. Dos 207 antologiados, a freguesia de São Bartolomeu tem o maior número, 20; seguindo-se os Altares com 18, São Mateus com 16, Biscoitos com 14, Raminho com 13, Cinco Ribeiras com 12 e as Lajes com 11. Improvisadores da Ilha Terceira incluí ainda uma nota biográfica sobre Borges Martins com algumas magnificas citações do poeta álamo Oliveira; o texto do livro original de apresentação da primeira edição pelo próprio poeta Borges Martins, e como já referenciei, um estudo extremamente bem elaborado pelo improvisador José Eliseu que numa simbiose perfeita combina a história do mundo ocidental com a poesia e os cantadores e o valor das artes, que desde sempre teviream e terão para o desenvolvimento do espírito humano.
Na obra Improvisadores da Diáspora, contam-se 121 antologiados, que segue os mesmos moldes, a nota biográfica e as quadras dos improvisadores. Outros dados pertinentes marcam este livro, como os que nos indicam que 62,8% dos antologiados são naturais da ilha Terceira, 27,3% de São Miguel, 5% de São Jorge, 1,6 de Santa maria e 0.8% do Pico. Os improvisadores emigrados, a vasta maioria vive ou viveu aqui nos Estados Unidos, muitos dos quais, a maior percentagem, aqui na Califórnia. A obra está repleta de surpresas e achados na história do improviso nas nossas comunidades, como por exemplo a de Frank Rodrigues da ilha de São Miguel, onde nasceu por volta do ano de 1900, viveu na cidade de Reno do estado de Nevada (o único cantador de improviso de origem açoriana com residência permanente naquele estado) e a quem a Turlu chamava de: um bom cantador. O prefácio é assinado pelo improvisador José Santos que salienta o contributo dos cantadores de desafio da diáspora para a preservação da cultura açoriana em terras de acolhimento. Tal como afirma José Santos, são: poetas de grande qualidade que passeiam na calçada da saudade.
Dois livros, um só tema: a arte do improviso, que se lé com muito gosto e através dos quais apendemos sobre os seus principais intervenientes e a sua importância nos Açores e na Diáspora. Num artigo publicado em 2006 pelo jornal A União, sobre o estudo “Caracterizar o Funcionamento Emocional e Cognitivo dos Cantadores ao Desafio de Improviso da Ilha Terceira”, o conhecido e saudoso cantador João Ângelo, com o seu estilo único, o seu finíssimo sentido de humor, definiu a arte da cantoria nos seguintes termos: “para fazer versos ponho os cinco sentidos a funcionar, mas às vezes sai cambado, não sai direito. Os versos aparecem como cinema no ecrã, aproveita-se o que se pode. O arquivo é a mente das pessoas. A técnica vai-se aperfeiçoando, como fumar cachimbo”.
Improvisadores da Ilha Terceira e Improvisadores da Diáspora são dois exemplos concretos da criatividade dos açorianos e da capacidade e a necessidade que o emigrante tem de perpetuar as suas seculares tradições. Sol viros, publicados há já alguns anos, ainda são, como todos os livros, tesouros a descobrir por muita gente em ambos os laterais do mar (e no caso da Califórnia também do continente) que nos separa e que nos une.