DIÁSPORA

OPINIÃO | Aos Meus Amigos da Diáspora Açoriana nos EUA: E aos que nos Açores acreditam nas vivências além-arquipélago, por Diniz Borges

OPINIÃO | Diniz (Dennis) Borges Portuguese Beyond Borders Institute-Director
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A essa terra que não era tua
deste a força dos teus braços,
deste o teu suor,
o teu engenho.

Por essa terra que não era tua
deste generoso o teu sangue.
E deste-lhe, ó semente de mundos,
os teus filhos.

Pedro da Silveira in Éxodo.  

A epígrafe do poeta florentino, cujo centenário estamos a comemorar, são versos que nos colocam frente a frente com a nossa realidade de homens e mulheres, que um dia, em busca de outras oportunidades, saímos das nossas pequenas ilhas, embarcámos nas novas caravelas da aventura, e em terras americanas, reconstituímos o nosso mundo: uma mistura de vários mundos, uns já existentes e outros fruto das nossas vivências e da nossa nostalgia.  É que ser-se emigrante significa estar-se num cosmos complexo onde tudo se transforma.  Daí que, se por um lado, a nostalgia, para a qual temos aquela palavra única e bonita no nosso idioma—saudade, leva-nos a recriar a identidade que trouxemos na bagagem, a assimilação, essa, leva-nos a introduzir elementos da cultura dominante em tudo o que fazemos e até dizemos.  Somos, americanos, mas diferentes, e já não somos tão portugueses, como quando estávamos em terras açorianas. Portanto não somos apenas comunidades vivendo fora do arquipélago. E somos diferentes.   E essa diferença é saudável para a Diáspora e para Portugal.       

Não há que transformar esta mudança num drama, porque nem sempre o é.  Penso que nós, todos nós, que trabalhamos e vivemos nos Estados Unidos da América, que aqui construímos outros alicerces e plantámos novas raízes, que já não dizemos loja, mas sim estoa; que celebramos as nossas festas, mas com nuances do novo mundo, substituindo as meninas das bandeiras pela Queen Nancy, temos de assumir estas diferenças e, descomplexadamente, vivê-las como contributo que damos ao mundo português, fora de Portugal, aos Açores e à açorianidade.  É que se hoje Portugal é conhecido nos Estados Unidos da América, e os Açores em particular; se a língua portuguesa é ensinada nas escolas americanas; se temos Filarmónicas e Grupos de Folclore; se celebramos o Espírito Santo e o Carnaval; São João e Santo António; se temos grupos desportivos e recreativos; se temos tauromaquia e bodos de leite, se continuamos a ser açorianos em terras americanas, terras e sistema que cedo nos convidam ao esquecimento e à integração total, é porque tivemos a capacidade de sustentarmos elementos básicos dos nossos valores culturais, enquanto salpicámos, como não podia deixar de ser, filamentos deste novo mundo que também é nosso. 

Num momento em que toda a gente fala da herança portuguesa, do novo Portugal e dos novos Açores e olha-se para o imigrante ainda com algum estigma, e por vezes para as novas gerações como gente perdida e sem ligação à seu legado cultural, venho pedir-vos, meus caros irmãos e irmãs da Diáspora para continuardes a serdes quem sois.  Gostaria muito que aproveitássemos as nossas celebrações, que começam a ressuscitar depois de um interregno de dois anos, para regozijarmo-nos pelo muito que temos feito, pelo que temos construído, pelos pilares que pelas terras americanas temos erguido: vivências que mesclam culturas e tradições, línguas e linguagens.  Que nunca peçamos desculpa por sermos quem somos.  Por sermos portugueses e açorianos, mas portugueses e açorianos diferentes dos que ficaram nas ilhas.  As nossas vidas, marcadas por convivências com outras raças, outras religiões e outros grupos étnicos, tornaram-nos, culturalmente, muito mais férteis.  E nunca esqueçamos que não somos, nem filhos de segunda, da pátria de origem, nem enteados desprotegidos, do país de acolhimento.  Temos direitos nos dois países, e devemos reclamá-los e usufruí-los. 

Ao entrarmos numa nova faze na nossa Diáspora dos EUA, gostaria que tivéssemos um espaço para reflectirmos este nosso mundo que já não está encalhado entre dois mundos, mas sim vivendo com as duas. Tivemos dois anos parados, e agora mais do que recomeçar o que fazíamos, porque não refletir numa realidade que diariamente nos bate à porta: a inevitável metamorfose.  Como será a nossa Diáspora daqui a uma dúzia de anos?  já que todos sabemos que a mesma, provavelmente, não será impregnada com sangue novo, isto é, com novos emigrantes, pelo menos com os números que tivemos nas décadas nas décadas de sessenta e setenta do século passado.  

 Quero acreditar que teremos força de passarmos o nosso legado cultural às novas gerações.  Quero sentir que a amalgama de conhecimentos que temos auferido ao longo de tantos anos e de várias gerações dar-nos-á a aptidão que necessitamos para, ao abarcarmos com outras agregações culturais, nomeadamente a dos nossos filhos e netos, cada vez mais americanos e menos portugueses, estejamos preparados para abraçar outros costumes, outras culturas, sem abdicarmos da nossa, permitindo que a mesma se misture cada vez mais nas instituições do grande mundo americano.  Porque, como se sabe, se isso assim acontecer, só ficamos a ganhar, incluindo os Açores.  Cada passo na integração, sem diluição, é um passo certo na continuidade da nossa comunidade para além da emigração e da primeira geração. Temos muitos exemplos com outros grupos étnicos em terras do Tio Sam.  A nossa Diáspora mudou nos últimos dois anos, a pandemia exacerbou muitos desafios que há tempos vínhamos varrendo para debaixo do tapete.  As nossas vivências além pandemia necessitam de ser acompanhada pelos nossos “líderes” comunitários com uma imaginação colossal.

A nossa Diáspora está repleta de homens e mulheres com responsabilidade e muita dedicação.  Temos, felizmente muitos seres humanos que fazem com que as nossas associações tenham vida e promovam as nossas tradições populares.  Também sabemos que muitos desses homens e mulheres estão extremamente cansados.  É que por vezes os aborrecimentos ultrapassam todas diligências.  Mas mais do que nunca, neste novo período das nossas vivências em terras americanas, há que ter homens e mulheres com vontade e aptidão para navegar este navio aos mares de um amanhã, que embora seja diferente, continuará a celebrar o espírito açoriano, lusitano e porque não lusófono em terras americanas.  Na nossa Diáspora existe um manancial de talentos, de gente que ainda sabe lutar contra a maré, não tivéssemos vindo de ilhas abandonadas pelo Terreiro do Paço, colocadas à mercê da sua força telúrica e da criatividade do seu povo.  Daí que acredito, veementemente, que com o diálogo, a abertura à crítica, uma nova visão baseada na realidade do mundo de hoje, assim como o trabalho despretensioso e verdadeiramente comunitário, possamos continuar a construir a Diáspora que todos queremos e que Portugal e os Açores necessitam, encarando os desafios de uma nova era, onde o pós-pandemia se conjuga com uma comunidade em mudança.  A mudança que, mesmo sem pandemia, sabíamos, muito bem, era inevitável e dava passos gingantes nas nossas vivências açor-americanas.  

É certo que variadíssimos setores da nossa Diáspora envelheceram, há gente opulenta e satisfeita.  Mas o mundo, nunca foi feito pelos sossegados e os satisfeitos.  Desde as grandes figuras da história universal, ao mais comum dos mortais, foram sempre os desassossegados que mudaram os rumos da história.   O envelhecimento na idade é irreversível, porém as ideias, os sonhos, as utopias, jamais podem envelhecer e há que trabalhar, em ambos os lados do atlântico, para uma diáspora que mantenha sempre o debate de ideias novas e a construção do possível e do impossível.  

Temos uma série de empreendimentos a fazer, os quais não podem ser lugar para os pretensiosismos e egocentrismos pessoais que nos têm afetado através dos anos. É imperativo uma Diáspora que ao celebrar as tradições do seu passado tenha olhos postos no futuro.   É urgente acreditar-se nos nossos jovens e nas instituições que não se conformam com o status quo.  Naqueles que têm coragem de sonhar.  Há que continuar a trabalhar, incessantemente, para uma Diáspora cada vez mais integrada, mas sem esquecer-se quem é, e de onde veio.  Se é certo que a experiência nos ensina que muitas das utopias cairão em terrenos estéreis, nos pântanos dos contentes e eterno caçadores de medalhas da nossa Diáspora, na terra ressequida dos desistentes e até mesmo nos relvados artificiais dos poderosos.  Também sabemos que os ventos são caprichosos e que há terras na nossa Diáspora extramente sedentas por novas sementes e de outras madrugadas.  

PBBI/DB/RÁDIOILHÉU

Mauricio De Jesus
Maurício de Jesus é o Diretor de Programação da Rádio Ilhéu, sediada na Ilha de São Jorge. É também autor da rubrica 'Cronicas da Ilha e de Um Ilhéu' que é emitida em rádios locais, regionais e da diáspora desde 2015.