DIÁSPORA

OPINIÃO | Açorianos na Califórnia: Pensando e Repensando a nossa Diáspora, por Diniz Borges

OPINIÃO | Diniz Borges;
1.1kviews

Poder-se-á dizer, com alguma segurança, que se fala português na Califórnia desde o último quartel do século XIX.  Aliás, como se sabe, a emigração para o estado gigante do Pacífico norte-americano ocorreu, com algum significado, entre 1870 e 1920, e de novo entre 1960 e 1975.  Hoje são pouquíssimas as famílias açorianas a refazerem as suas vidas em terras do El Dorado.  Desde 1980 que a emigração praticamente estancou para a Costa Oeste dos Estados Unidos.  Já lá vão os tempos em que, como nos diz o poeta Álamo Oliveira no seu extraordinário romance Já Não Gosto de Chocolates sobre a família Silva, paradigmática de muitas famílias açorianas:  “numa manhã de Agosto, lúcida de azul partiram com destino à América.  Pelo caminho foram olhando para os pequenos montes da ilha, para as árvores e cerrados, para as casas e seus redutos, para as igrejas e impérios, para as pessoas e animais, com aquela sensação esquisita de quem vê o que sempre estivera diante dos olhos e por quem de repente, se sente uma paixão mortal…aquele bocado de ilha fugia-lhes sob o manto espesso da saudade, com a mítica certeza que já nada os podia fazer voltar atrás…”  E os emigrantes açorianos para as terras do Tio Sam (com raras exceções) não voltaram atrás.  A nossa foi, infalivelmente, uma emigração para ficar.  

Daí que ao longo desses 150 anos se tenham construído e constituído pequenos aglomerados açor-americanos em várias partes do estado californiano.  Desde Eureka no Norte a San Diego no Sul, os açor-americanos arquitetam no universo estadunidense os seus pequenos mundos, uma mistura das suas terras de há meio-século com o modernismo americano.  O resultado são festas de Espírito Santo de sopas com Coca-Cola, como referiu algures o poeta do Raminho da Terceira; são as danças do Carnaval que durante muitos anos começavam com os Reis e terminavam na Páscoa; são as touradas com touros cobertos por uma almofada; são famílias onde a língua portuguesa está relegada aos dias de festa, aliás, como já disse em outro lugar e em outra ocasião: nos dias onde se colocam as toalhas com motivos regionais, o galo de Barcelos, e se diz alguns vocábulos em português, ora exóticos, ora eróticos, consoante os ânimos.  

As primeiras duas décadas do século XXI foram extremamente interessantes nas vidas das nossas comunidades açor-americanas, radicadas no Eldorado do continente norte-americano.  Permitam-me esta citação de algo que escrevi por ocasião do Ano Novo, viragem de 2000 para 2001, portanto há pouco mais de duas décadas:

A última década do século vinte foi marcada, nas comunidades portuguesas da Califórnia, por uma amalgama de acontecimentos anfibológicos.  Vejamos alguns:  apareceu mais uma estação de rádio em língua portuguesa a KIGS em Hanford e morreram mais de uma dúzia de programas independentes em todo o estado; nasceu mais um jornal, o Portuguese-American Chronicle e matou-se o nosso maior património jornalístico o centenário Jornal Português; nasceram mais escolas comunitárias para o ensino da língua portuguesa, mas decresceu o número de alunos (e em comunidades como Artesia, onde a Cerritos High School teve cadeiras de português durante várias décadas, o ensino da língua portuguesa desapareceu); inaugurou-se mais uma igreja “oficial” portuguesa e dizem-me que cada vez há menos missas em português (aliás, há clérigos portugueses na Califórnia a celebrarem mais funerais do que batizados); apareceram mais associações portuguesas (sociais, desportivas, religiosas, culturais e comerciais)  mas todas se queixam da falta de participação, do pouco voluntariado, e os salões portugueses cada vez mais se tornam em empresas de alugar salas e não em espaços de convívio que salvaguardem o nosso património coletivo.  As “catedrais da chamarrita” como afirmou o nosso escritor da diáspora Manuel Ferreira Duarte, autor de Banda Nova e Outras Histórias, em muitos casos converteram-se em “capelas de mariachis.”   E digo isto sem qualquer sentimento depreciativo para “nuestros hermanos” do México com os quais há muito nos devíamos ter entendido, não fosse tão soberbo o nosso eurocentrismo. 

As comunidades portuguesas da Califórnia vivem a transformação inevitável e natural de qualquer povo cuja história é inacabada (como são todas as histórias) e que em terras americanas já não é, não pode ser, só açoriano.  Hoje o que temos são homens e mulheres açor-americanos e com ênfase no “americano”.   Um pouco por toda a parte da Califórnia assiste-se a festas do Espírito Santo só em inglês, a ensaios de grupos de folclore com instruções em inglês, a conferências e congressos sobre a cultura lusófona na língua de Shakespeare, entre muitas outras mudanças.  

Há que lamentar esta situação?  Penso que não.  Temos de aceitar, cá e lá, que já lá vai o tempo em que a língua portuguesa era ensinada em casa.  Que a aculturação da nossa gente é inevitável, que a miscigenação ocorre diariamente.  Que num país que ainda não se libertou da teoria do melting pot, a nossa minoria invisível e demasiadamente silenciosa, integra-se e dilui-se, particularmente nas zonas de pequeníssimos aglomerados açor-americanos.  Mais, os filhos e os netos dos emigrantes estão cada vez mais a frequentar os estabelecimentos do ensino superior, algo que há muito se desejava, e são poucos os que regressam ao âmago comunitário.  Porque estão integrados, e a integração também tem a sua punição, vivem as suas origens muito à distância.

Na mesma crónica publicada no princípio do ano 2001 escrevi e cito:

Como comunidades portuguesas da Califórnia temos de admitir que muito do que construímos fizemo-lo pelo telhado.  E agora há que enfrentar a transmutação encará-la sem mitos e preconceitos, e com abertura e humildade caminharmos para um espaço que enquanto é do “melting pot” também é muito nosso.  Não há que ter receio das próximas gerações, e temos, inequivocamente, a responsabilidade de lhes legar mais do que o Bodo de Leite e a Matança do Porco.  Há que lhes garantir que podem ser portugueses à sua moda, que a sua identidade açoriana não é antagónica com o seu mundo americano.  Há ainda que receber os jovens nas nossas instituições sem infestá-los com a nossa saudadezinha, que para eles é um conceito mais estrangeiro do que o nosso sotaque.  Há que lhes dar espaço para que cresçam como americanos que são, conscientes e conhecedores do passado que também é deles.  Há que “aproveitar” os inúmeros filhos e netos de portugueses, nos mais variados campos da sociedade, e que estão tão ou mais distanciados das nossas comunidades do que nós estamos dos Açores.  Já alguém pensou a sério porque é que esses homens e mulheres não estão inseridos na comunidade portuguesa?  Já alguém lhes perguntou porque é que preferem o mundo americano?  Não perguntamos porque, infelizmente, não queremos ouvir a resposta.

Em sumário, o mundo açor-americano de hoje não é o mesmo de há trinta anos atrás.  Hoje, as comunidades transformam-se em espaços americanos com um salpico de açorianidade. Mas ninguém se iluda, o Azorean Spirit está vivo.   Os emigrantes na Califórnia, que há maio século se amedrontavam com a americanização das festas ao Divino, incompreensíveis perante as rainhas, os séquitos e a pompa e circunstância de um ato sem a religiosidade das ilhas, são agora os primeiros na fila para que as suas netas sejam coroadas de glória.  Aqueles que chegaram à Califórnia sem uma palavra de inglês e com uma saca de sonhos, e que durante anos insistiram em falar apenas português com os filhos, hoje vêem-se obrigados a falar o pouco inglês que sabem com os netos, se é que querem ter alguma ligação com eles.  Daí que teremos de nos reinventar, e ressuscitar em muitos já dissociados aos nossos organismos, o desejo de um regresso, por inteiro.  Será possível semelhante aventura?  Algo é certo, a sobrevivência das nossas comunidades açor-americanas em terras californianas requererá, por parte dos líderes, e pseudolíderes (destes últimos temos muitos), uma outra reflexão.  Uma nova forma de se fazer comunidade, de se ser Diáspora.    

As associações só sobreviverão se souberem integrar-se no movimento étnico que instiga a nação americana e abrirem-se para as futuras gerações.  A língua portuguesa só sobreviverá se for implementada no ensino oficial americano, nos currículos do ensino secundário e universitário e se tiver a capacidade de caminhar por mérito próprio e por desejo das comunidades.  A vida comunitária não pode continuar de festa em festa, de visita em visita, sem termos consciência de que o nosso legado é mesmo nosso, e só pode continuar se tivermos coragem de refletir, de prepararmos o futuro e de tomarmos decisões que poderão ser difíceis, mas são absolutamente necessárias.    

Na Diáspora há que se acreditar, cada vez mais, na nossa própria capacidade de intervenção e nos Açores há que ter a afoiteza de se apoiar o que é progressivo e dinâmico e cortar o que é fictício e exíguo.

PBBI/DB/RÁDIOILHÉU

Mauricio De Jesus
Maurício de Jesus é o Diretor de Programação da Rádio Ilhéu, sediada na Ilha de São Jorge. É também autor da rubrica 'Cronicas da Ilha e de Um Ilhéu' que é emitida em rádios locais, regionais e da diáspora desde 2015.