OPINIÃO | À Sombra dos Vulcões, Caminha um Herói: A Odisseia Poética de Bento de Goes, por Diniz Borges

Há livros que nascem da terra como as fontes mais puras, brotando da memória coletiva, da dor calada das ilhas, dos murmúrios entre mares e sismos. Bento de Goes, romance de Henrique Levy, é uma dessas obras raras que não se contentam em contar uma história — expandem o horizonte da existência humana, alicerçado em linguagem poética, testemunho histórico e um profundo sentido ético. A saga do açoriano que caminhou da Índia à China, não apenas refaz uma viagem esquecida, mas reinscreve, na beleza da prosa literária, a coragem de um homem que ousou ir além dos limites traçados pelos mapas e pelos impérios.
Henrique Levy traz à superfície a figura histórica de Bento de Goes, nascido Luís Gonçalves, num romance onde a linha entre realidade e ficção se dissolve na névoa lírica do passado. No prólogo, o autor avisa: “a dimensão ficcional da narrativa […] não deve ser entendida como um romance histórico.” O que temos, em vez disso, é uma ficção de época com bases reais, moldada para iluminar não apenas um homem, mas um povo. Levy reimagina a vida do explorador nascido em Vila Franca do Campo por volta de 1562 e que, ao serviço da Companhia de Jesus, percorre a mais longa viagem terrestre da história até então, ligando Goa ao império chinês do Cataio.
A narrativa abre-se com uma voz maternal poderosa, confessando o segredo que marca o nascimento de Bento: um menino salvo do infanticídio pelo amor rebelde de uma mãe camponesa. O trecho é de cortar a respiração: “Apesar de apartado de mim, és o filho mais presente. […] Teu pai insiste em cobrir a campa do quintal com flores […]. Para esta tua mãe, serás sempre, Bento!” Esta primeira parte é um monólogo profundamente lírico que transforma um dado biográfico (a origem açoriana) num mito fundador, numa origem trágica e secreta que prenuncia a grandiosidade do destino do filho.
O que faz de Bento de Goes mais do que uma narrativa histórica é a qualidade quase mística da linguagem. Henrique Levy escreve com a pena de um poeta. A sua prosa é repleta de imagens sensoriais, cadência lírica e uma espiritualidade que lembra o estilo de autores como Mia Couto ou José Luís Peixoto. Em vez de apenas contar, Levy enfeitiça: “A miséria da vida de quem esgravata a terra com as próprias mãos é o deserto de onde te vejo, querido filho.” A metáfora aqui não é enfeite, mas um espelho que refrata a verdade interior dos personagens. O mundo natural — o mar, os vulcões, as castanhas, os ventos, os tremores de terra — torna-se personagem da narrativa, como se a própria ilha estivesse a escrever junto com o autor.
Levy constrói personagens com uma complexidade psicológica rara, entre eles a mãe biológica e a mãe adotiva de Bento, ambas mulheres marcadas pela adversidade, mas movidas por amor e resiliência. O moinho onde Bento cresce torna-se um lugar mítico, um espaço de formação, onde o rapaz conhece o trabalho, a fome, a ternura e as suas primeiras visões — alucinações místicas ou prenúncios de uma missão divina. “As gentes surgidas nas visões têm rostos redondos e olhos esticados […]. As vozes dessas gentes falam um linguajar não alcançável a meu entendimento.”
Quando finalmente Bento — agora jovem — parte rumo ao desconhecido, a narrativa transforma-se numa verdadeira odisseia. A paisagem insular cede à vastidão da Ásia Central, à travessia de desertos, montanhas e territórios hostis. Embora Levy não se prenda a todos os pormenores históricos da viagem (que, como se afirma, durou quatro anos e mais de seis mil quilómetros), o essencial está ali: a coragem de um homem movido por um ideal maior, por uma fé que mistura o divino com o impulso poético de transcender o mundo.
Henrique Levy não glorifica Bento como herói sem mácula. Em vez disso, empresta-lhe profundidade humana, fazendo-o crescer diante dos nossos olhos. A sua história, embora épica, é atravessada pelo peso das origens, pela memória da mãe, pela miséria da infância, pelas feridas da ilha e pela persistência do amor. “Permanece descrita, no coração de uma mãe, toda a fragilidade humana e nela a nossa dependência última do amor transcendente a um filho.”
Ao ler Bento de Goes, compreende-se a urgência de dar voz, em inglês, a este romance. Como tradutor, sinto-me não apenas impulsionado pela beleza do texto, mas por um dever moral: tornar acessível, à vasta maioria da diáspora açoriana que já não lê em português, a história de um dos seus. Este não é um romance qualquer: é um elo identitário, uma narrativa de ADN cultural que precisa ser contada aos netos dos imigrantes que, como Bento, também cruzaram oceanos em busca de horizontes novos. Traduzir este livro é uma forma de restituição — uma devolução da memória àqueles que, por razões de tempo, distância ou língua, dela foram afastados. Porque a história de Bento de Goes é, em última análise, a história de todos nós que viemos das ilhas. Gratos estamos à Letras Lavadas por mais esta publicação em português que em breves meses aqui estará na língua inglesa em parceria com a Bruma Publications.
É impossível terminar este texto sem dedicar um espaço ao criador desta obra admirável. Henrique Levy, poeta de longa data, confirma-se neste romance como um dos grandes estilistas da prosa portuguesa contemporânea. A sua linguagem é “divinal”, como se diz na carta de intenções deste ensaio, feita de uma poesia refinada, subtil, que não esconde a dor, mas a transfigura em beleza. A prosa do meu amigo Henrique Levy é, ao mesmo tempo, espada e beijo, denúncia e abraço. Há uma ética na sua escrita — um profundo sentido de justiça, liberdade e amor que transborda em cada linha.
Mais do que um escritor e um excelso poeta, Henrique Levy é um mistificador das palavras, que magistralmente transforma a dor insular em mito, o esquecimento histórico em memória coletiva, a miséria em dignidade. Bento de Goes é uma obra que honra não apenas o protagonista, mas também o povo açoriano, a sua coragem, a sua fé, e a sua capacidade de sonhar mesmo quando o chão treme.
Na última página do romance, o leitor não sente que terminou uma leitura — sente que regressou de uma viagem iniciática. A figura de Bento de Goes permanece viva, não como estátua, mas como sopro. A sua caminhada ecoa nas veias de todos os que, nascidos em ilhas ou não, ousam atravessar os desertos da vida com a alma erguida. Henrique Levy escreveu mais do que um romance: escreveu um cântico épico à condição humana. E como a própria ilha, essa “pele de lava e silêncio”, o seu texto não se explica — sente-se. Leiam-no, para sentirem.
“Se algum desesperado espaço existe para uma mãe, será então o da ausência de um filho. Esta é a mais forte garantia do amor que nos une.” É este o coração do livro. Uma viagem que começou entre a lama e a fome, cruzou desertos e montanhas, e termina — como todos os verdadeiros épicos — no lugar mais secreto: o interior de cada leitor.





