A poesia é apenas o homem resistindo à tentação
de se deixar silenciar pelo que o nega e se sobrepõe
à sua voz. Uma rosa no meio do inferno é o paraíso
inteiro. Mas só os poetas podem inventar a mais
inexistente das rosas, a da esperança, quando mundo
e vida se desesperam.
Eduardo Lourenço
Desde jovem que sou um leitor de poesia. Leio-a, religiosamente. Gosto de todas as suas formas, aprecio toda a sua irreverência, delicio-me com a sua musicalidade, rendo-me perante as suas metáforas. Também há vários anos que na longínqua Califórnia, perdida com, e agora cada vez mais sem as tais “abundâncias”, de que nos falava o saudoso Pedro da Silveira, comecei a ler os poetas das nossas ilhas. Foi, efetivamente um poema de Pedro da Silveira, o célebre “ilha” que me seduziu para os poetas da terra que havia deixado com dez anos de idade. E cedo descobri a riqueza da arte poética açoriana.
De poema em poema fui descobrindo a magnificência dos criadores das ilhas enquanto, simultaneamente, desencobria quem era. É que num país onde somos constantemente chamados a esquecermos o nosso passado, o legado histórico de onde viemos, foram os poetas, foram as letras dos Açores, que me ajudaram a permanecer açoriano em terras do Tio Sam, porque tal como afirmou Mário Quintana no poema “Emergência”: quem faz um poema salva um afogado.
Daí que quando pensei num projeto que tentasse levar os Açores junto daqueles que apesar de confessarem a ascendência açoriana já não falam ou lêem em português, e do mundo literário norte-americano em geral, claro que optei pela poesia. Porque era também uma tentativa, extremamente modesta, entenda-se, de reconhecer, e reverenciar, a arte que me permitiu estar sempre perto da minha terra, de sentir o mar, de respirar a bruma, de sentir a força criativa das ilhas.
Foi em 1999 que embarquei nesta odisseia e em quatro anos tentei passar para a língua de Shakespeare 39 poetas dos Açores. E claro que foi, em termos de escrita, o meu maior desafio. Porque se a tradução em si é difícil, traduzir poesia é como afirmou Wilhelm Humbolt: uma tentativa de se conseguir o impossível. E não foram poucas as vezes, que a meio da noite, ao olhar para o computador, e para a poesia açoriana, sentia-me um bocado o tal “tradutore-traditore.” É que, como se sabe, as palavras não possuem equivalência literária em várias línguas. Porque se “tradutore-traditore” não é o mesmo que “tradutor-traidor” muito menos o será como: “translator-betrayer.” Tal como escreveu Christopher Daudewell em Illusions and Reality enquanto as qualidades do romance podem sobreviver à tradução, isso nem sempre acontece com a poesia. E não o é pela dificuldade de traduzir a métrica, mas sim pela natureza intrínseca da própria poesia.
Daí que para este tradutor, tal como Umberto Eco afirmou: “uma tradução não é a comparação de duas línguas, mas a reinterpretação dum texto em duas línguas diferentes, aglomerando a mudança entre as culturas.” Esta antologia foi construída a partir do princípio ecoado pelo professor Jonas Zdanys da Universidade Yale, segundo o qual o tradutor não é um mero agente passivo mas sim uma força ativa no poema., tal como escreveu: “o tradutor tem que ser um criador e não um simples transportador.” Embora tal compromisso tenha, como devem imaginar, um alto grau de risco.
On a Leaf of Blue, para bem ou para mal, não aconteceu com um dicionário em mão rebuscando e escrevendo equivalências linguísticas. Enquanto se tentou ser fiel às ideias dos poetas aqui representados, esta antologia, tentou atravessar barreiras linguísticas e culturais com o objetivo de dar ao leitor de língua inglesa um corpo poético que apesar de ser muito açoriano poderá ter, simultaneamente, o seu próprio espaço na moderna tradição poética da língua inglesa. O tal servir a dois deuses de que falava Franz Rosenzweig no seu livro A Impossibilidade e a Necessidade da Tradução.
Uma antologia, como se sabe, é sempre um trabalho extremamente subjetivo. Esta tentou incluir todos os poetas açorianos vivos que tenham publicado em livro, embora haja, algumas omissões. Tentou-se ainda levar ao leitor de língua do mundo anglófono, em formato bilingue, uma amalgama de autores que na minha perspetiva são açorianos, mas também são universais e dar uma visão das novas gerações criativas do nosso arquipélago.
O poeta Eduardo Carranza escreveu algures: “Se a poesia não serve para acelerar-me o sangue, para abrir-me de repente janelas sobre o misterioso, para ajudar-me a descobrir o mundo, para acompanhar este desolado coração na solidão e no amor, na festa e no desamor, para que me serve a poesia?” Foi a sonhar com a possibilidade de a poesia nesta antologia ter semelhante efeito com os leitores de língua inglesa que me levou a esta publicação. Se isso aconteceu, foi, definitivamente, pela força do poema e não pelo valor da tradução.
Duas décadas depois da publicação de On a Leaf of Blue, eis-me embalado numa outra aventura: uma nova antologia bilingue que englobe mais vozes açorianas e desta feita vozes açor-americanas e açor-canadianas que escrevam em inglês, neste caso com tradução para português. Será uma antologia das duas margens e que incluirá cerca de 70 vozes. É um projeto que me tem dado prazer e tirado sono. Mas é acima de tudo um projeto abraço porque o acho necessário. Como o tenho dito e escrito, talvez em demasia, os Açore são mais Açores com a sua diáspora, e a sua diáspora é uma diáspora criativa que não cessou com a primeira geração, apenas mudou de língua.
Disso tem escrito, magistralmente, Vamberto Freitas. A criatividade açoriana está viva nas segundas, terceiras e sucessivas gerações. Não são comunidades emigradas, são filhos, netos e bisnetos dessas comunidades, é a nossa diáspora que na sua língua materna, o inglês, cria outras linguagens e novas formas da identidade açoriana, para além do arquipélago e do mar que o rodeia. Tal como escreveu a poeta Mary Lourdes Silva, filha de pais micaelenses no excelente poema, que traduzi para português, com o sugestivo título, deixei cair e quebrei a língua:
o meu pai carregou há tanto tempo
num cargueiro vindo das ilhas
para os portos de Boston.
Desde então que não fala comigo
na língua da sua Mãe.
Eu quero de volta essa língua portuguesa…
Barulhenta, teimosa e opiniosa.
Não me importaria de andar por aí com as duas:
Uma língua americana que fala
o que os outros querem ouvir
e uma língua portuguesa para morder
a outra
Dentro de alguns meses espero eu, Into the Azorean Sea (baseado num verso da poeta açor-descendente Lara Gularte) estará por aí, juntando poetas de várias gerações, de vários estilos, e de várias geografias, mas todos cantando os Açores e as nossas vivências em múltiplas latitudes. Serão 103 poetas nas nossas duas línguas português e inglês. É que há muito em comum entre os açorianos do arquipélago e os açor-descendentes, que também são açorianos, em terras norte-americanas. A poesia mostra-o, clara e inequivocamente. Queiramos nós aprender com os poetas.