“Não haverá uma única família açoriana que
não tenha parentesco no outro lado do Atlântico.”
José Andrade num texto comemorando
a Associação dos Emigrantes dos Açores.
Já se disse muito sobre a nossa Diáspora. Desde sempre que os poetas das nossas ilhas souberam cantar as nossas partidas com raros retornos e a nossa forma de lá longe, bem longe, termos, o que Pedro da Silveira magistralmente soube sintetizar no excelso poema Êxodo: como a marca dos nossos passos. A marca dos nossos homens e mulheres que destas ilhas se transplantaram em outras latitudes, assimilaram outras culturas, misturaram outras línguas e linguagens e mantendo-se, como já foi referido, imensas vezes: açorianos, mas açorianos com outras experiências. São essas vivências, essa universalidade do espírito açoriano, que o atual Diretor Regional das Comunidades, José Andrade, trata no seu mais recente livro: Transatlântico: As Migrações nos Açores, publicado em fevereiro deste ano pela editora Letras Lavadas. Um livro que retrata os Açores de ontem, os Açores de hoje, e simultaneamente, prospetiva os Açores de amanhã.
Primeiro, e acima de tudo, uma palavra sobre José Andrade, que conheço e respeito há várias décadas, particularmente nesses tempos idos pelo seu trabalho na comunicação social dos Açores. É uma referência na nossa comunicação social, quer no arquipélago, quer na diáspora, a qual ele tem acompanhado desde sempre. Segundo, talvez nem o precisasse escrever, mas quero, que independentemente de podermos ter algumas posições políticas dissemelhantes (se bem que, no mundo de hoje, eu por vezes nem sei quem está pela direita ou pela esquerda) sempre tive um enorme apreço pelo seu trabalho não só na comunicação social, mas também no serviço público e, obviamente o seu trabalho intelectual, como pesquisador e escritor.
Na realidade foi em 1984, em edição de autor, portanto estará a celebrar 40 anos de vida literária, muito brevemente, que publicou, Semente – Prosas e Poesias. Desde então está à beira de 30 livros publicados, numa obra diversificada, com temas ligados à política, à história, à sociologia, às vivências comunitárias e institucionais e à biografia, entre outros temas. Tem, em parceria com a criatividade de um dos nossos melhores fotógrafos, cuja arte fotográfica sou um apreciador, José António Rodrigues, um conjunto de belos livros sobre as maiores festas religiosas do arquipélago: As Festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres. O seu livro Açores no Mundo, publicado em 2017 é uma obra de extrema importância para a nossa história coletiva que vai muito além do arquipélago. Uma outra menção, desta feita ao livro A Vontade dos Açorianos, que relata os órgãos do governo desde a autonomia, e que é, uma obra importante, a qual merece e necessita ser traduzida, em resumo, para inglês, e distribuída na Diáspora, como já falámos. As comunidades, não é segredo nenhum, ainda estão muito carentes em termos de compreender o significado da autonomia para o arquipélago e para a Diáspora.
Obviamente que, com praticamente trinta títulos publicados, poderíamos preencher esta crónica com um resumo de cada obra. Sem menosprezar nenhum dos livros debruçar-me-ei sobre o seu mais recente que já foi lançado em várias partes da Diáspora, sendo o último, há poucas semanas na Casa dos Açores da Nova Inglaterra. Transatlântico: As Migrações nos Açores é um conjunto de 50 textos, que como Diretor Regional das Comunidades, apresentou em apenas dois anos, ou seja, são textos de 2021 e 2022, muitos feitos ainda em tempos de pandemia e em eventos realizados por via digital. Aliás, o autor, como Diretor Regional das Comunidades, soube, e muito bem, compreender que a era digital está para ficar e tem-lhe permitido estar em muitos lugares da nossa Diáspora, até nos mais distantes e menos conhecidos, como em Fresno, com o propósito, como está escrito na capa, de que este é um livro sobre “a consciência e o orgulho de sermos um arquipélago transatlântico que projeta identidade no mundo e que abraça continentes nas ilhas.”
O livro de José Andrade tem a particularidade de em cerca de 200 páginas dar-nos um manancial de temas que nos unem como povo. Desde a açorianidade de Nemésio à poesia sem fronteiras; desde o Espírito Santo migrante à mulher na diáspora; desde a visita do emigrante à saúde e a diáspora; desde a Diáspora económica à Associação dos Emigrantes Açorianos. É um livro com 50 pontes, que no seu conjunto unem continentes e ilhas em torno das nove ilhas dos Açores. E mais do que textos circunstanciais, tão habituados que estamos a esses, até, infelizmente, vindos dos espaços das mais altas chefias do país. Aqui não é caso, e ainda bem. Cada texto tem uma história e traz-nos a história do povo que somos, independentemente onde estivermos. Utilizo como exemplo o texto denominado Comunicar é preciso que foi apresentado na formação da ADMA (Azores-Diaspora Media Alliance) na costa leste dos Estados Unidos em outubro de 2022. Mais do que uma apologia a uma aliança necessária, este texto é um documento histórico e importante sobre a comunicação social nos Açores e na Diáspora. Uma resenha que em poucas palavras traça a vitalidade da rádio, da televisão e dos jornais, em formatos tradicionais ou alternativos, para a democracia, para a cultura, para a identidade de um povo, dentro e fora das suas fronteiras terrestres. Comunicar é preciso, é um de pouco mais de quatro dezenas de textos que celebram a nossa realidade, baseada na nossa história.
Há ainda uma passagem por comunidades que nem sempre são conhecidas e por lugares que nem sempre aparecem nos roteiros da nossa Diáspora, mas onde lá estamos e onde, como em toda a parte, marcamos presença, como escreveu Pedro da Silveira:
A essa terra que não era tua
deste a força dos teus braços,
deste o teu suor,
O teu engenho.
Por essa terra que não era tua
deste generoso o teu sangue.
E deste-lhe, ó semente de mundos,
os teus filhos.
E são esses filhos e filhas que Pedro da Silveira sublimemente escreveu que também têm presença neste livro de José Andrade. O autor está consciente que a diáspora é cada vez mais o espaço composto pelas segundas, terceiras e sucessivas gerações. Daí que há em vários textos, como o dedicado à Bellis Azorica da Tagus Press, alusões à necessidade da tradução literária e de se levar as vozes dos Açores, não só as de ontem, mas também as de hoje, às novas gerações. Num saboroso texto feito para o quadragésimo-sexto congresso da Luso-American Education Foundation, com o título: Navegando o Futuro – a nossa Diáspora na Califórnia,” diz-nos: “os filhos e os netos dos nossos emigrantes são o futuro da nossa identidade na Califórnia, como na América em geral. E esse futuro só depende do que fizermos no presente.” É essa a realidade. É um apelo que também tenho feito a quem de direito. Todos sabemos que estamos num momento crucial e até mesmo urgente, para, como José Andrade escreveu: “convencer os nossos jovens de que podem ser, ao mesmo tempo e com dupla vantagem, plenos americanos e orgulhosos açor-descendentes.” Esse é o nosso desafio. Essa tem de ser a nossa missão. Esse é um compromisso a assumir pelas entidades públicas, pelos líderes comunitários, pelos dirigentes do nosso movimento associativo, pelos nossos educadores, desde a pré-escola à universidade, pela nossa comunicação social, pelas famílias, enfim, por TODOS, como dizíamos nos velhos tempos da APPEUC—Associação de Professores de Português nos Estados Unidos e Canadá, que infelizmente se apagou.
A última parte do livro tem por tema Porto de Abrigo. São um conjunto de textos que nos falam sobre os desafios e as esperanças dos Açores como terra adotiva para mais de 4 mil pessoas de 90 nacionalidades diferentes. Os Acores que têm por obrigação histórica saberem receber e compreenderem as dificuldades da integração e os choques culturais. Não fossemos nós um povo com primos nas Américas.
Aqui fica um convite à leitura de Transatlântico: As Migrações nos Açores, que tem um sucinto, mas extremamente elucidativo prefácio do atual Presidente do Governo da Região Autónima José Manuel Bolieiro, onde está retratada a realidade, nua e crua, e por vezes de difícil ingestão, dos fenómenos das migrações à escala global no século XXI. Que como sabemos são cada vez mais complexas e repletas de injustiças e reptos para os governantes e para a sociedade civil. O convite é feito a leitores de língua portuguesa na nossa Diáspora e não menos importante aos que ficaram no arquipélago. É que este livro, acima de tudo, mostra-nos, clara e inequivocamente, que a açorianidade não é um conceito de apenas nove ilhas e que os Açores são mais Açores com a sua Diáspora.
*de um poema de Pedro da Silveira