Mas se tudo nos levam isto nos resta:
estamos de pé dentro de vós palavras.
Nem outra glória há maior do que esta.
Manuel Alegre, do poema As palavras
Já lá vão uns largos séculos desde que Cícero foi citado como tendo dito que “uma casa sem livros é como um corpo sem alma.” Pois é, há vários anos que ando a viver com os livros, fazem parte do meu dia a dia. Como todos os leitores, acompanham-me nas horas mais solitárias, e diria mesmo, que quase que não sei viver sem eles. São cúmplices num mundo cada vez mais angustiado. São tesouros que me ajudam a compreender esta complexa condição humana. E são os meus companheiros de viagem nos aviões, nas filas, nas horas de espera. Ajudam-me a não desesperar. Lá diz o provérbio popular: quem espera desespera. São os meus fiéis amigos, que me têm ajudado nos momentos mais diversos, porque como disse algures Henry Ward Beecher: “um livro é uma quinta, um armazém, uma festa, um conselheiro, melhor — uma multiplicidade de conselheiros.” São companheiros inestimáveis na jornada da vida, oferecendo refúgio, sabedoria e uma para mundos inexplorados.
Há livros que nos marcam mais do que outros. Há livros que ficam para sempre dentro de nós. Há livros que saboreamos de palavra a palavra, há outros que queremos despachar. Mas em todos há mensagens que guardamos. E por vezes nem somos nós que os escolhemos, são eles, os livros, que nos escolhem. Acontece que, num momento mais doloroso, lá vem o livro certo fazer-nos companhia, porque, quer queiramos quer não, acabamos de fazer parte de tudo o que lemos e tudo o que lemos faz parte de nós. S
São os amigos que nunca nos abandonam, sempre prontos para nos guiar, inspirar e consolar. Ao mergulhar na leitura, encontro, sempre, mas mesmo sempre, uma resposta por vezes a resposta que não quero ouvir), escapo das agruras da realidade e amplio os meus sempre limitados horizontes. Os livros acompanham-me desde a infância, moldando a minha imaginação, e continuam a enriquecer-me ao longo de toda a vida, revelando-nos outras perspetivas, histórias e conhecimentos que, quero acreditar, me têm tornado mais resiliente e com a sensatez possível para enfrentar os desafios, que como a todo o mundo, a jornada da vida nos coloca quotidianamente.
Tudo isto a propósito de dois livros que acabo de revisitar, escritos pelo poeta, escritor, político e intelectual Manuel Alegre. Primeiro, devo dizer que há vários anos que sou um leitor da poesia de Manuel Alegre. Identifico-me com o seu grito à liberdade, à justiça, à paz, ao amor. Lembro-me do seu Canto Peninsular e desta estrofe maravilhosa: “Andei de terra em terra/ por esse mundo que de certo modo descobri. / E fui soldado contra a minha própria guerra/eu que fui pelo mundo e nunca saí daqui.” Tenho tentado ler tudo que este poeta, romancista e político invulgar tem escrito. Político tão invulgar, que ainda acredita num mundo melhor, sem as vicissitudes dum exacerbado capitalismo, que retira o humano à humanidade e do qual todos somos coadjutores e responsáveis.
Mas é dos seus livros que quero refletir, particularmente de dois, que como escrevi, que revisitei recentemente, por motivos do cinquentenário do 25 de abril ( e de alguns projetos que gostaria de ver erguidos nesta nossa Diáspora) e que li quase de um só fôlego: Rafael e O Homem do País Azul. O primeiro fala-nos directamente da luta pela liberdade, do peso do exílio, dos sonhos pela justiça social, do idealismo dos revolucionários, particularmente dos anos sessenta. É um livro cheio de poesia, de coragem, de sonhos e de pesadelos. Rafael é a história de um homem e de todos os homens. É a história de um povo e de todos os povos. Rafael, que se não é, deveria ser leitura obrigatória para os alunos da escola secundária em Portugal, onde infelizmente, pelo que se ouve quase diariamente da classe política, e não só, em demasiados segmentos da sociedade esqueceu-se, muito rapidamente, os custos da revolução. Rafael precisava ser traduzido para a língua inglesa, para que os luso-descendentes no continente norte-americano soubessem o que custou a liberdade em Portugal e tomassem conhecimento da beleza das artes, particularmente da literatura portuguesa. Há mesmo muito a fazer.
O Homem do País Azul é um conjunto de narrativas tendo como pano de fundo, mais uma vez, a liberdade e o sentido de justiça, a tão cobiçada igualdade. Neste livro, como nos diz uma nota sobre o próprio, estamos perante a festa, o amor e a utopia. Não fosse Manuel Alegre um construtor de utopias! Em O Homem do País Azul aprende-se, ainda mais uma vez, sobre quem somos como povo e cultura, exemplificada nesta passagem crítica que nos coloca perante alguns dos pressupostos da nossa idiossincrasia: “Inútil lembrar-lhes o aviso de Antero contra o jesuíta, o fanático e o beato que trazemos dentro de nós, mesmo quando nos julgamos muito progressistas.” Que lição lembrar-nos que fomos inculcados com alguma presunção e muita água benta, e que mesmo dentro dos nossos intelectuais mais progressistas há várias doses de ortodoxíssimos que muitas vezes os impede de ir além, de serem mais audazes. Até mesmo de defenderem colegas e “amigos” quando são ostracizados por dizerem as verdades que não queremos ouvir. E que lição para nós que vivemos no exterior, ainda intensamente ligados à memória de um tempo que já não é, e determinados a mantermos bem vivos esse: jesuitismo, fanatismo e beatismo. Daí que Manuel Alegre é um autor para se ler com paixão, porque ele apela ao mais íntimo de cada leitor, e as suas histórias são sempre narrativas que lutam contra o status quo e apelam a que cada homem e mulher reflicta neste princípio de Hegel “e a sua afirmação de que a liberdade começa na consciência de que cada homem é um ser único e insubstituível.”
A escrita de Manuel Alegre sempre me atraiu pela sua capacidade de combinar a paixão política com uma escrita lírica e emocional. Os seus poemas e a sua prosa, altamente poética, evocam sentimentos profundos e expressam uma constante luta pela justiça e pela liberdade, valores que hoje andam um tanto ao quanto abandalhados, quer pelo oportunismo da classe política, quer pela apatia da sociedade, mais interessada na má-língua das redes sociais do que nas discussões sérias e pertinentes que também estão nas mesmas redes sociais. Precisamos de mais intelectuais como Manuel Alegre, que sempre procurou a fusão única de paixão lírica, com o compromisso político e social. E espero, ansiosamente pelo próximo intervalo nas aulas para mergulhar na recente edição de Toda a Prosa (que me foi oferecido pelo meu amigo, o crítico literário Vamberto Freitas, que tanto tem escrito sobre a obra de Manuel Alegre) com um magnifico prefácio de Paula Mourão que já tive oportunidade de ler.
No meu pequeno santuário (para não fugir ao beato dentro de nós), que é a minha biblioteca/gabinete, guardo junto do meu computador, onde me sento quotidianamente, para corrigir exames, preparar lições, ler e escrever, o décimo soneto do Português Errante, de Manuel Alegre. É o hino que recito, com a certeza de que nele encontrarei a força para viver e trabalhar dentro e fora da nossa Diáspora, nesta complexa sociedade a que pertenço, neste mundo e neste tempo que me foi dado para viver, para lutar, para sonhar: permitam-me partilhar o poema: Contra a usura e o juro contra a renda / contra um tempo de ter mais do que ser / contra a ordem fundada em compra e venda / contra a vida que mói até doer // contra a força que oprime – aí eu canto. / E onde amor se procura e não se encontra / onde a vida se mede a tanto e tanto / onde a mentira impera – aí sou contra. // E por isso incomodo e sou mal visto. / Que se o tempo é de grades eu resisto / e quando alguns se calam não me calo. // Eu sou o renitente o inconformado. Por isso me deitaram mau olhado / e por isso persisto e canto e falo.
Para o bem e para o mau, identifico-me, inteiramente com este poema. Estou grato a Manuel Alegre pela sua escrita. Já Henry Wadsworth Longfellow o escreveu há muitos anos: “A poesia (ao que acrescento toda a escrita criativa) é a memória da alma da humanidade, uma testemunha silenciosa dos sentimentos, pensamentos e experiências que transcendem o tempo.”