Porque as palavras do ano passado pertencem
à linguagem do ano passado, e as palavras
do próximo ano aguardam outra voz.
T.S. Eliot
Num abrir e fechar de olhos entramos em 2024. Após uma pandemia, no meio de alguma instabilidade económica e social e com duas grandes guerras, despedimo-nos do Ano Velho, esperançosos que o Ano Novo seja diferente. Será? O mundo sempre atravessou uma amálgama de conclusões, a paz sempre foi mais desejada do que trabalhada, a justiça e até mesmo os pequenos atos de justiça no nosso quotidiano, sempre foram problemáticos. A humanidade, com a sua beleza e os seus desafios, cumpre mais um ritual sem muitas probabilidades de mudança. Se é verdade que a “esperança é a última a morrer,” não é menos verdade que em muitos espaços da nossa contemporaneidade temos vindo a abdicar de reflexões e renovações, verdadeiramente necessárias, para que o mundo, todos os nossos mundos, tenham outros rumos. É mais fácil erguer-se a taça do espumante e virar-se a cara às durezas que nos enfrentam diariamente. Permitam-me olhar de cara a cara a 2024, particularmente no que concerne aos mundos que compõem o meu mundo de açoriano, que vive na América com dupla nacionalidade e uma tonelada de preocupações ligadas à nossa identidade, à nossa diáspora, à nossa região e aos meus dois países.
O ano que agora começa a dar os seus primeiros passos, é um ano particular para quem faz parte da diáspora açoriana e portuguesa nos Estados Unidos, e distingo as duas porque são diferentes. É tempo de cá e lá, termos essa consciência e é tempo de na Diáspora não termos receio de identificamo-nos como açorianos e madeirenses. É que essa ligação só acrescenta à portugalidade em terras americanas. Não tenhamos receio de sermos quem somos. Este ano, ao qual estamos a dar as boas-vindas, é um ano marcante, já que é assinalado por três atos eleitorais importantes, para não falar nas eleições europeias onde a abstenção em Portugal é vergonhosa. A 4 de fevereiro os açorianos escolhem quem os governará. A 10 de março, Portugal escolherá novo governo, e a 5 de novembro, os americanos escolherão novo governo e parlamento federal, assim como eleições estaduais e locais. Todos estes atos eleitorais têm repercussões na nossa Diáspora em terras estadunidenses, todas deveriam ser levadas com a seriedade que gostaríamos de ter na governação da Região e dos dois países, que são parte integrante das nossas comunidades, não só da geração emigrante, mas também dos açor-descendentes que são a vastíssima maioria dos números indicados pelo Censo americano. É um erro trivializar os processos democráticos, mesmo com todas as suas imperfeições. Quem o faz na diáspora está a prestar um péssimo serviço ao nosso processo de integração e identificação.
Indo em ordem cronológica, dentro de poucos dias começa, oficialmente, o que todo o mundo açoriano já sabe e já vê nas ruas e nos órgãos da comunicação social, a campanha eleitoral. A cerca de um mês os açorianos (e espero que em números que justifiquem a nossa muito jovem democracia) vão às urnas e escolherão quem os governará, supostamente, durante quatro anos. Para a nossa diáspora cada ato eleitoral nos Açores é importante, particularmente porque a ligação afetiva que nos une e o trabalho a fazer é verdadeiramente colossal. Poderá ser redundante e até aborrecer algumas pessoas, mas acredito, veementemente, que a Diáspora norte-americana tem muito a dar aos Açores. E que uma ligação em atualização persistente e progressista, será benéfica para a Região e para a Diáspora. Não podemos, nem devemos ficar algemados ao passado. Com cada decisão que adiamos, na Diáspora, e nos Açores sobre a Diáspora, petrificamos um relacionamento que deveria respirar profundamente as potencialidades que nos aguardam.
Os queixumes não nos levarão a qualquer progresso. Daí que haverá algum partido político (incluindo o com quem mais me identifico) que queira enfrentar esta realidade? Que tenha a coragem de fechar a porta da saudade doentinha que ainda infesta ambos os lados do Atlântico? Que entenda a potencialidade e a dinâmica de jovens e menos jovens, integrados no mundo americano e canadiano? Que tenha o destemor de abdicar o que é fictício, aceitando que o que é arrojado e novo trará novos frutos. Que acredite em todo o nosso movimento associativo e que, por exemplo na Califórnia, cada irmandade do Espírito Santo é uma Casa dos Açores. Que queira criar uma Direção Regional da Diáspora, que seja parte integrante de uma orgânica governativa onde esteja todo o relacionamento com o exterior, e dotá-la de recursos e orientações consistentes para a nova diáspora que já se vive, particularmente nos EUA. É que apesar dos esforços de todos os titulares desse cargo no passado, ainda não caminhamos para o mundo que existe além da procissão, do bailarico, ou pior ainda do banquete que alimentam egos e linguagens do passado.
Em 1996, porque o mundo açoriano tinha mudado, Carlos César teve a visão de mudar o Gabinete de Emigração para a Direção Regional das Comunidades. Quem é que quase 28 anos mais tarde terá a coragem de criar a Direção Regional da Diáspora? Esta não é apenas uma mudança de nomenclatura, é sim a mudança de paradigma. Francamente, espanta-me (talvez pela minha ingenuidade) que depois de tantas conferências, tantos colóquios, tantos relatórios (e a nível pessoal, tantas conversas) ninguém ainda queira entender o que se passa na nossa Diáspora.
Um mês mais tarde, a 10 de março, são todos os portugueses que terão oportunidade de irem às urnas, dentro e fora de Portugal. Este também é um momento importante para um país que tem uma Diáspora que representa mais de 40% da sua população atual. Aqui o grito é mais severo, mais preocupante. É que se a história nos ensina algo, particularmente na Diáspora nos EUA, os Açores, com tudo o que se disse anteriormente, têm feito muito mais pela nossa presença no mundo americano, do que o poder central, sempre muito ligado ao 10 de junho e a visitas políticas que nunca nos trazem qualquer novidade, qualquer programa de interesse para o futuro. Que o ato eleitoral de 10 de março, e a campanha que se prepara, tenha na realidade uma componente dedicada à Diáspora.
Qual é o partido político que vai ter como cabeça de lista para os pacatos círculos eleitorais fora do território nacional, um/a emigrante ou um/a luso-descendente? Qual é o partido político que vai propor a abolição do exame da língua portuguesa para os netos dos emigrantes que queiram ter a dupla nacionalidade? Qual é o partido político que vai criar verdadeiros protocolos com o nosso movimento associativo? Qual é o partido político que vai ouvir a diáspora, para além de meia dúzia de pseudolíderes que vivem a alimentar os seus egos, cobiçando altares de pés de barro ou conselhos consultivos pseudo-elitistas? Qual é o partido político que terá a coragem de analisar friamente o Conselho das Comunidades Portuguesas – onde estive quatro anos e testemunhei todas as vicissitudes? Para não falarmos do fiasco de Conselheiros eleitos com seis votos? Qual é o partido político que terá a coragem (até nem é assim tão corajoso se nos respeitassem) de colocar no seu programa eleitoral a criação de um Ministério da Diáspora?
Depois de dois atos eleitorais, em pouco mais de um mês, a nossa Diáspora nos EUA enfrenta, na primeira terça-feira do mês de novembro, as eleições americanas. A campanha já começou, aliás já nos habituamos a estarmos, nestas terras do Tio Sam, em campanha permanente. É um bom sustento para a comunicação social e uma espécie de circo e pão (mais do primeiro e pouco do segundo) para a população. A eleição de novembro é, por razões óbvias, extremamente importante para todo o mundo americano, todas as etnias e culturas que compõem o mosaico humano americano, incluindo a nossa Diáspora. É um ato eleitoral com repercussões além-fronteiras. Um momento crucial em que as escolhas para o Presidente, se as sondagens tiverem alguma veracidade, estarão entre um octogenário cansado e um outro, quase octogenário, que tentou organizar uma insurreição contra a democracia americana. Preparemo-nos para 11 meses de insultos, de patetices políticas e de um Donald Trump, que usará o pior em cada ser humano, para dividir e conquistar. Preparemo-nos para o desrespeito total, para que na nossa diáspora haja ainda mais gente que se esquece que todos nós um dia “fomos estrangeiros.” As eleições americanas, sobre as quais tenciono dedicar vários dos meus textos ao longo dos próximos meses, estarão ainda marcadas por eleições para a Câmara dos Representantes (todos os seus 435 deputados estão sujeitos a nova eleição); um terço do Senado, (33 senadores) e mais de um terço de governadores e parlamentos estaduais. É, pois, um erro pensar-se que o efeito Trump está circunscrito à Casa Branca, o que só em si é uma fatalidade como vimos entre 2016 e 2020. Porém por todo o país existem trumpinhos pequenos a tentarem apoderar-se da democracia americana: como exemplo vejam o que se passa com a proibição de livros nas escolas e bibliotecas públicas deste país.
Aqui está 2024! Um ano decisivo para os Açores, para Portugal e para quem ainda se identifica com Portugal e os Açores, aqui nos EUA, além de uma romaria e de um caldo verde. É que ao contrário do que disse o Senhor Presidente da República, há uns escassos meses na Costa Leste dos Estados Unidos, nós somos muito mais do que bacalhau, cozido à portuguesa, vira e fado. Aliás, se estivesse consciente da composição da nossa comunidade teria também falado nas sopas do Espírito Santo, na carne assada no espeto, na chamarita e no bailinho da Madeira. É precisamente esse discurso populista, e irresponsável, que não cola nas novas gerações ou então quando cola, é nocivo para as relações entre a Diáspora e Portugal e para o crescimento e o progresso da Diáspora. Ainda não cheguei a compreender porque não respondemos coletivamente, ou até compreendo, infelizmente.
Este Novo Ano, que agora começamos, será ainda decisivo em termos das nossas sociedades, locais e globais: ou vivemos a democracia a sério, com todas as suas imperfeições, ou caminharemos para uma nova/velha era ditatorial, mesmo que seja embrulhada em lençóis, ditos democráticos, pela qual todos somos responsáveis. Desde os votantes desatentos aos populismos dos partidos democráticos do centro, da esquerda e da direita, que não batem com portas, estão cada vez mais distantes do cidadão comum e em alguns casos (mais à direita do que a esquerda democrática), namoram a extrema-direita, ou pior ainda – normalizam-na com inércia, mimos ou acordos. Desde a padronização de labroscas como o cada vez menos magnata da Florida pelos políticos com alguma seriedade, às nuances de uma comunicação social americana (e não só, infelizmente) cada vez mais ignóbil que serve os grandes interesses capitais para quem a verdadeira democracia é um estorvo.
Todos temos muito que pensar nos próximos meses. Não vale a pena queixarmo-nos depois de estar tudo entornado. Enfrentemos o novo ano com uma nova determinação e uma nova visão, para a democracia, para a nossa cultura, para as nossas sociedades, para a nossa diáspora.