DIÁSPORA

DIÁSPORA | Na água turva dos rios: De Mário Mesquita, Vamberto Freitas e a Presença da Diáspora

©Hugo Moreira
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“…a conceção de que cada homem e cada mulher
é feito de vários homens e várias mulheres,
salvos ou afundados segundo o efeito do seu
préstimo histórico e da sua decência.”
Lidia Jorge, prefácio do livro O Estanho Dever do Cepticismo

O recente congresso de jornalistas dos Açores, homenageou, e muito bem, Mário Mesquita, uma das vozes mais significativas do jornalismo português, que sempre prestigiou os Açores e tinha um apreço especial pela nossa Diáspora. É desse apreço, e da forma como o demonstrou ao longo de muitos anos, que gostaria de relembrar, não como apêndice, mas como parte integrante dos inúmeros contributos de Mário Mesquita, o jornalista e o intelectual.  Até porque as comunidades, a nossa Diáspora, figurava para Mário Mesquita como parte integrante da nação portuguesa e da açorianidade.  Atesta-se essa forma de ver Portugal e os Açores, na sua totalidade, com a sua diáspora, hoje ainda mais importante, nos escritos, no comportamento e nas iniciativas que Mário Mesquita teve em vários cargos que exerceu, particularmente no Diário de Notícias e na FLAD.  Quer num, quer noutro, quer em muitos outros aspetos da sua vida dedicada ao jornalismo e à cultura, Mário Mesquita soube conjugar uma parte importante de quem somos, as vidas e as histórias de homens e mulheres que além-fronteiras souberam sempre enaltecer o país e a região, ou o que Lidia Jorge, magistralmente escreveu no prefácio ao livro O Estranho Dever do Cepticismo de Mário Mesquita: o país que somos e o país que poderíamos ser.  

Sabia quem era Mário Mesquita pela sua passagem pela política e pelo seu trabalho no jornalismo, porém comecei a conhecê-lo muito melhor na década de 1980, através do meu amigo Vamberto Freitas.  Estava eu na rádio em língua portuguesa na Califórnia, onde o Vamberto também vivia, e onde era um dos meus constantes entrevistados, porque era das poucas pessoas na diáspora da Califórnia de então (e ainda hoje), com quem se podia ter uma conversa desassombrada.  As nossas conversas radiofónicas, na vasta maioria dos casos, centravam-se em torno dos textos que escrevia e das entrevistas que Vamberto Freitas publicava no Diário Notícias.  Escusado será dizer-se que para a comunidade de origem portuguesa da Califórnia, quase toda açoriana, a presença constante da escrita de Vamberto Freitas no Diário de Notícias era importantíssima.  E foi a visão, e o compromisso que Mário Mesquita sempre teve com os Açores e a açorianidade, dentro e fora do arquipélago, que o levou a convidar Vamberto Freitas para as páginas do maior jornal português, e com o Vamberto, a presença da nossa diáspora residente na Califórnia, começou, a partir dessa presença a desmistificação de muitos tabus que ainda hoje o poder central gosta de alimentar sobre: quem somos e quem poderíamos ser – o que somos e o que poderíamos ser se cultivássemos um relacionamento sério e adulto com a diáspora e esta com Portugal.    

Numa era em que se fala da aproximação da Diáspora aos Açores e a Portugal na sua totalidade, em que se fala de novos paradigmas, mas visita-se sempre as mesmas capelinhas, seria bom recuarmos praticamente quatro décadas e relembrarmo-nos da visão de Mário Mesquita, que ao convidar um jovem recém licenciado por uma universidade americana, que já escrevia para os jornais da comunidade e dos Açores, fazia o que quatro décadas mais tarde ainda não se faz: acreditar-se na Diáspora, nos talentos da Diáspora.  Não acredito que tenha sido uma medida popular, atravessar o mundo, e em Los Angeles, dar-se espaço num jornal de prestígio como o DN a um jovem emigrante da ilha Terceira.  Mário Mesquita fê-lo e o resultado está à vista.  Durante a década de 1980, não só a Califórnia teve espaço nas páginas do DN, mas sobretudo a Califórnia portuguesa e os Açores.  Basta uma passagem pelos livros de Vamberto Freitas, particularmente os publicados nas décadas de 1980 e 1990, para podemos verificar, sem qualquer margem para dúvida, a presença da Califórnia portuguesa na imprensa nacional.   No seu livro Pátria ao Longe (entre outros) nota-se a presença constante de textos sobre as nossas vivências em terras da Califórnia e um pouco por todo o continente norte-americano.  Um conjunto de textos de reflexão e entrevistas com alguns dos nossos mais conhecidos membros da comunidade, particularmente no mundo do ensino e da criatividade literária, deram ao leitor atento do DN, uma visão que infelizmente hoje, não existe na imprensa nacional. Foi uma oportunidade única para a nossa Diáspora, oportunidade idealizada por Mário Mesquita e habilmente executada por Vamberto Freitas. 

Das crónicas às entrevistas, do jornalismo cultural aos textos sobre a maior comunidade de origem açoriana no mundo, os leitores em Lisboa, e através do país, tiveram um olhar único sobre o oeste americano e os passos vanguardistas que já então a Califórnia dava, e com o estado a nossa comunidade.  Com Mário Mesquita como diretor, e Vamberto Freitas no terreno, tentou-se abolir muitos estereótipos, muitas falácias sobre a nossa Diáspora.  Pátria ao Longe, e os outros livros onde Vamberto Freitas incluiu textos revistos que tinham sido publicados no DN, mostram-nos que, infelizmente recuámos, ou seja: do jornalismo sério e que dignificava a comunidade passamos para o frenesim da romaria, das sopas do Espírito Santo com coca-cola, como escreveu Álamo Oliveira, como forma de descrever as nossas vivências.  As lições dadas por Mário Mesquita na direção do DN, e Vamberto Freitas na escrita dentro da comunidade, e com projeção nacional, pertencem a uma outra era e isso é dramático.  A nossa diáspora evoluiu imenso desde esses tempos da década de 1980, mas, infelizmente, a visão da imprensa nacional para com a mesma regrediu.  E inclua-se, não só a Diáspora, mas também a projeção dada à criatividade literária da Região dentro e fora do arquipélago.  Recordo que a o livro o Imaginário dos Escritores Açorianos, de Vamberto Freitas, obra única na nossa história literária, que deve ser parte constante de qualquer curso sobre a literatura e a cultura nos Açores, foi o resultado de uma série de entrevistas transcendentes sobre a nossa criatividade literária, publicadas em primeira mão no Diário de Notícias.  Mais uma ousadia de Mário Mesquita para levar as suas/nossas ilhas ao imaginário de Portugal continental e pela projeção do DN à Europa. 

Mais tarde, já em pleno século XXI, Mário Mesquita, lutou pela açorianidade dentro da FLAD.  Como diretor desta fundação, cuja missão está citada na sua página da Net como “ Promovemos o desenvolvimento de Portugal, dos portugueses e das comunidades luso-descendentes através da cooperação com os Estados Unidos da América,” Mário Mesquita teve uma especial atenção para com as nossas comunidades em ambas as costas dos Estados Unidos da América.  Impulsionou publicações, congressos e centros de estudo com ligações à nossa Diáspora.  Foi interlocutor de várias publicações, incluindo aqui na Califórnia, particularmente através da Portuguese Heritage Publications.  Num desses anos, esteve em Tulare, a minha cidade há 54 anos, para assistir ao congresso da Luso-American Education Foundation, um dos vários que organizei.  Para além de uma apresentação extraordinária que fez neste certame cultural, tivemos oportunidade de conversar sobre a Diáspora, os Açores, Portugal, os Estados Unidos e a FLAD.   Foi nesse congresso que me ofereceu o supracitado livro, O Estranho Dever do Ceptiscimo (vinte anos de comentários na imprensa), com esta magnifica dedicatória: “ao Diniz Borges, sinal de apreço pelo seu inconformismo e de solidariedade do conterrâneo da ilha ao lado.”  

Foi um momento bonito e emotivo.  Foi em boa hora que a organização do primeiro Congresso de Jornalistas dos Açores decidiu homenagear este pilar do jornalismo português.  As palavras da sua filha foram marcantes!  Mário Mesquita merece todas as homenagens e todos os reconhecimentos.  A Diáspora açoriana está eternamente grata por há 40 anos já compreender o que o poder político centralista ainda não compreendeu.  Basta olharmos às frases e aos discursos recentes e aos que em breve virão, um pouco por toda a Diáspora, com o 10 de junho. É mesmo de bradar aos céus.   

Reconhecendo e agradecendo, homenageio o jornalista e o intelectual que tive oportunidade de conhecer e ler.  Um açoriano que defendia a região e a diáspora e que em abril de 2004, pelos 30 anos do 25 de abril escreveu: “Cultivar a nostalgia de um passado que não chegou a existir, inscreve-se no domínio do quixotismo inútil.” 

*de um poema de Natália Correia cujo centenário comemoramos em 2023.