DIÁSPORA

CALIFÓRNIA | Do Divino e da Diáspora, por Diniz Borges

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No vigésimo aniversário do livro sobre o Espírito Santo na Califórnia

Vieram e instalaram-se em vales e junto ao litoral.
Trabalharam muito. Sofreram bastante. 
Sentiram o ferrão da xenofobia, mas nunca mais voltaram. 
O Espírito Santo foi o seu protetor.
Manuel Ferreira Duarte in Construindo Pontes
Texto incluído no Livro As Festas do Espírito Santo

            A Diáspora açoriana na Califórnia está espalhada por todo o estado, o qual é quatro vezes e meio maior do que Portugal continental e tem quatro vezes mais população.  Estado da união americana que se fosse um país independente seria a quinta economia mundial.  Aqui vive a maior comunidade de origem açoriana nos EUA, mesmo sem exagerarmos os números, como, infelizmente, há quem goste de o fazer.  É aqui que se celebram, mesmo com o decréscimo dos últimos anos, o maior número de festejos em honra do Divino fora dos Açores, cerca de 100, e onde já se celebraram mais de 180.  E foi aqui que, há vinte anos, se publicou um dos livros mais significativos sobre estes festejos atlânticos além arquipélago.  Duas décadas mais tarde, este continua a ser um dos empreendimentos mais abrangentes da nossa comunidade e um dos projetos mais valiosos, que marcará ainda muitas gerações.  Um contributo importante para a identidade açoriana no continente norte-americano.

            O projeto que começou com a ideia de se congregar algumas informações sobre as festas em várias zonas da Califórnia, para comemorar o décimo aniversário extinta Câmara de Comércio do Vale de Santa Clara, que nessa data debatia-se com a possibilidade de se expandir a todo o estado, segundo afirmou o coordenador e principal investigador deste livro, Tony Goulart, num depoimento para o projeto das histórias orais sobre as vivências portuguesas no Eldorado americano para a universidade estadual da Califórnia em Fresno, cedo se tornou num dos maiores projetos comunitários na história da nossa presença nos Estados Unidos.  Foram mais de 200 pesquisadores e autores de textos, que não só nos trouxeram a história destes festejos como a própria história de um povo que como escreveu o poeta Vasco Pereira da Costa no magnífico poema, Queen Nancy: “é o povo que cruzou mares e terras num pássaro de metal / até ao Pacífico em busca da felicidade legítima.”  É que em cada texto sobre cada irmandade, lá está um pouco da história da nossa presença nessa cidade, nessa vizinhança.  Lá está a nossa odisseia, a nossa teimosia em mantermos bem vivas as tradições e o espírito açoriano.

            Ao longo de 495 páginas, numa edição de luxo, com centenas de fotografias alusivas ao tema, vive-se os dias primordiais dos festejos, começando pela primeira igreja portuguesa na Califórnia, a igreja do Espírito Santo (Holy Ghost, que deu nome ao livro), construída em 1886 na zona de Centerville, que hoje é parte da cidade de Fremont, na baiai de São Francsico.  Existem várias versões sobre onde teria sido, na realidade a primeira festa do Espírito Santo na Califórnia.  Há algum consenso (com a possibilidade ser-se em outro lugar e outra data) que nos leva a Half-Moon Bay e a Rosa (Joaquina) Pedra Brown, oriunda da ilha do Corvo que, segundo depoimentos para este livro, teria trazido uma coroa da mais pequena ilha dos Açores e realizou a primeira festa com coroação, seguindo-se um jantar de galinha de churrasco na sua residência, terminando com baile, onde não faltou a tradicional chamarrita.  A festa continua em casa desta família até 1883, quando foi mudada para a herdade de Manuel Silva.  Aliás, existem por todo o estado, estórias semelhantes, algumas captadas neste compêndio e outras, infelizmente, foram para a cova com os seus protagonistas.  Entretanto, existem através de várias localidades as mesmas circunstâncias, ou seja: as festas em casas particulares antes de passarem a irmandades.  Por exemplo em Tulare, cidade irmã de Angra (a mais velha geminação portuguesa) a primeira festa pública foi numa casa particular, da família Brasil, no ano de 1908, instituindo-se em irmandade no ano de1912.

            Este livro, como acima referi, não se limita às histórias da história sobre os festejos do Divino. Em cada texto estão filamentos das vivências comunitárias, da trajetória de uma emigração que, com raras exceções, veio para ficar.  Lá estão as ocorrências da criatividade dos açorianos em torno da lei da proibição do álcool, o chamado período seco; das mudanças em muitos festejos durante a segunda guerra mundial, em que as comissões, por sua iniciativa, decidiram retirar a bandeira portuguesa dos desfiles, já que Portugal tinha uma posição neutra neste conflito; do salão português de Vallejo que foi utilizado para albergar soldados do exercito americano naquela zona; da irmandade de Cayucos, pequena cidade da costa litoral no centro da Califórnia, criada em 1920 por 17 homens, 12 portugueses, nascidos nos Açores, três de primeira geração, nascidos nos EUA com raízes açorianas e 5 suíços e italianos, 2 nascidos na Suíça, 1 na Itália e dois de primeira geração, nascidos nos EUA de famílias italianas.  Esta é ainda outra indicação do espírito açoriano que além-fronteiras, sempre soube conciliar-se com outras culturas e outras tradições.  Aliás, a riqueza destes festejos neste pós-modernismo, reside na mistura de etnias e no envolvimento de várias tradições e várias culturas.  Diria que o seu futuro passará pela participação ativa de outras culturas.  Aliás, em algumas partes do Vale de São Joaquim já se vê jovens hispânicos como parte destes festejos e os seus pais como membros das respetivas comissões.

            Para além das histórias de cada localidade, de cada irmandade, de cada cidade, existem ainda um conjunto de textos introdutórios que contextualizam o livro e são, acima de tudo preciosos documentos históricos.  De August Mark Vaz, um texto sobre as migrações açorianas para este estado; de Heraldo da Silva, uma dissertação sobre as origens do culto na Europa, Portugal continental e nos Açores; de Mary Lyn Salvador, uma esplendida análise sobre as festas pelo prisma antropológico no que concerne ao simbolismo religioso e a arte efémera; de Anna H. Gayton um magnifico texto sobre estes festejos em 1947 e durante as décadas em que a emigração dos Açores estava muito reduzida; do Padre Leonel Noia, testemunhos pessoais sobre estes festejos de “alterado código” como referiu Vasco Pereira da Costa, no citado poema Queen Nancy.  O livro inclui ainda um magnifico texto do coordenador Tony Goulart que não só explica as razões do projeto, mas dá-nos em apenas cinco páginas, magistralmente sintetiza estes festejos, o que eles representam para a açorianidade e para os açorianos da Diáspora.  Tal como aludiu Tony Goulart há duas décadas: estes festejos são ainda os espaços privilegiados para unir as segundas, terceiras e sucessivas gerações.  Apesar do distanciamento geracional que existe entre as iniciativas comunitárias, com as novas gerações cada vais mais afastadas de algumas atividades, existe, em torno do Espírito Santo um elo unificador, seja pelo culto, pelas tradições dos seus avós, pela gastronomia, pela música ou simplesmente por estar num único acontecimento português durante o ano. 

            O vigésimo aniversário do livro sobre as Festas do Espírito Santo na Califórnia, é ainda mais uma oportunidade para se agradecer aos mentores deste projeto, ao visionário Tony Goulart pelo seu empenho, o seu talento e a sua dedicação.  É ainda uma oportunidade de se revisitar esta publicação, aprender com estas histórias, passá-las às próximas gerações e enfrentar este legado, com abertura e humildade, traçando um plano estratégico para que as mesmas não se transformem em peças de museus.  É que quem o diz, e infelizmente ouve-se demasiadas vezes: aqui nunca acabarão – vejam, ao longo deste livro as dezenas de festejos que existiam há 80 ou 90 anos e que hoje já não existem.  É que houve um momento na nossa história coletiva em que como já foi referido tivermos cerca de 180 destes festejos em várias cidades e vizinhanças.  Hoje, ainda temos praticamente uma centena, mas muitas com necessidade de se reinventarem. 

            Duas décadas depois desta magnânima publicação, as várias comunidades que constituem a Diáspora açoriana na Califórnia, terão de refletir este legado.  Primeiro, e acima de tudo, agradecendo a quem trabalhou generosamente para que esta histórica publicação visse a luz do dia.  Fizeram-no, sobretudo o coordenador Tony Goulart, e os mais de 200 pesquisadores e autores, para servir a comunidade e não para servirem-se dela.  Segundo, fazer com que nas dez escolas secundárias onde se ensina português na Califórnia o livro esteja presente e haja uma unidade de estudo.  Fi-lo durante muitos anos.  Terceiro, revisitar estas histórias com olhos postos no futuro.  Essa é a melhor homenagem que podemos prestar a quem tanto trabalhou.  Tal como escreveu Tony Goulart: as festas têm sido o meio privilegiado através do qual, na comunidade, os valores humanos têm sido transmitidos. 

É um legado a cuidar.  O vigésimo aniversário da publicação é o momento propício.  É preciso que se entenda essa dinâmica em ambos os lados do atlântico.