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OPINIÃO | Katherine Vaz e A Linha do Sal: Fé, Exílio e a Perseverança do Amor, por Diniz Borges

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Katherine Vaz tem sido sempre uma escritora das travessias. Nascida na Califórnia de pais portugueses, habita com mestria o hífen entre o português e o americano. Os seus romances Saudade e Mariana, as suas coletâneas de contos Fado & Other Stories e Our Lady of the Artichokes, bem como a sua presença em antologias da literatura norte-americana testemunham o papel singular que ocupa ao trazer para o cânone americano os temas lusófonos. Na sua prosa, a diáspora portuguesa não permanece como um eco obscuro de memória, mas torna-se um terreno de descoberta para um público vasto. Com o seu mais recente romance, A Linha do Sal (lançado nos EU em 2023 com o título Above the Salt em português em junho de 2024 pela ASA), Katherine Vaz empreende a travessia mais ambiciosa: a ressurreição de um capítulo pouco conhecido do exílio religioso português, transformando-o numa narrativa de amor, fé e resistência que fala diretamente ao nosso presente.

No coração de A Linha do Sal está a história de John Alves, um rapaz nascido na Madeira no século XIX, preso ainda criança com a mãe por esta recusar-se a renegar a fé presbiteriana. O romance abre-se na escuridão da clausura, onde a fome e o medo moldam a alma de um menino que carregará para sempre as cicatrizes da perseguição religiosa. Ao seu lado, ainda não plenamente unida ao seu destino, surge Mary Freitas, filha adotiva de um botânico, cujas origens estão envoltas em rumores e segredos. Numa sociedade dilacerada pelo conflito entre católicos e protestantes, o laço entre ambos é frágil, perigoso, precioso. Obrigados pela violência e pela necessidade de deixar a Madeira, tornam-se parte de uma migração que os levará ao Illinois, a uma nova terra, a novas vocações e à possibilidade de reencontro sob a longa sombra da Guerra Civil Americana.

A autora com raízes na ilha Terceira inspira-se em factos históricos: a expulsão dos protestantes madeirenses na década de 1840, a sua fixação no Illinois e os testemunhos de John Alves registados já na sua velhice. Estes fragmentos, preservados em entrevistas e crónicas locais, oferecem apenas os contornos do acontecimento. Mas o registo histórico deixa lacunas — sobretudo em relação a Mary. Vaz agarra essas ausências como frestas para a ficção, enchendo-as com a respiração da imaginação. O resultado não é apenas um romance histórico, mas também um ato de restituição cultural: uma narrativa que devolve voz a uma comunidade esquecida, transformando o exílio em ferida e dom ao mesmo tempo.

O título — A Linha do Sal — evoca a antiga metáfora medieval da honra, lembrando os lugares à mesa reservados aos mais dignos. Katherine Vaz utiliza-o para sugerir a dignidade daqueles que foram rejeitados, a honra devida aos que foram lançados no exílio pela perseguição, mas que trouxeram consigo sementes de resiliência. A sua prosa eleva essas vidas “à linha do sal”, recusando que permaneçam notas de rodapé na história da imigração americana ou nas disputas religiosas portuguesas.

Desde o início, o romance insiste na ligação entre o pessoal e o político. A fé nunca é doutrina abstrata, mas sofrimento vivido e escolha radical. John Alves observa a fidelidade inabalável da mãe na prisão e dela herda a coragem da consciência. Mary, por sua vez, aprende a viver com a ameaça de rumores sobre a sua origem, consciente de que a identidade pode ser letal tanto quanto necessária. Para ambos, o exílio não é metáfora, mas sobrevivência. Não deixam a Madeira por escolha; são expulsos pela própria História. Katherine Vaz capta esse paradoxo: ao ser arrancado da terra natal, o exilado fica duplamente ligado a ela, transportando a memória como uma ferida que não cicatriza.

Na América, o exílio transforma-se em reinvenção. John torna-se professor de surdos, descobrindo no silêncio uma nova forma de comunicação, uma maneira de transmutar sofrimento em serviço. A sua vocação é metáfora da condição imigrante: aprender a falar através de barreiras, criar sentido em novas línguas, escutar onde os outros apenas ouvem silêncio. Mary dedica-se aos jardins, cultiva frutos, envolve-se no comércio de produtos exóticos. As suas mãos, enterradas em solo estrangeiro, repetem gestos da pátria distante, mantendo viva a continuidade na descontinuidade. Estas vocações são mais do que episódios narrativos: são alegorias da própria diáspora. Ensinar, cultivar, cuidar — o trabalho do imigrante é sempre semear, transmitir, fazer frutificar aquilo que o exílio ameaçou apagar.

Mas para além das trajetórias de fé e de trabalho, A Linha do Sal é sobretudo uma história de amor. John e Mary encarnam a persistência da ligação humana contra as devastações da perseguição e da distância. O amor aqui não é romance sentimental, mas fidelidade duradoura, posta à prova por anos, oceanos, guerras e silêncios. Vaz entende que, no contexto do exílio, o amor nunca é simples: traz consigo memória, ausência e promessa. O romance respira a palavra portuguesa saudade — essa mistura indissolúvel de dor e ternura, perda e esperança. Para John e Mary, amar é a única forma de suportar o exílio.

A força do livro reside também na atenção aos lugares. A Madeira surge em toda a sua exuberância e violência — socalcos, flores, penhascos sobre o mar. O Illinois, por sua vez, é presença viva: campos abertos, horizontes imensos, jardins e pomares que oferecem nova pátria aos desterrados. Na prosa de Katherine Vaz, a natureza não é cenário, mas personagem, testemunha da dor e da renovação. O gosto de um fruto, o cheiro de uma flor, a cor de um campo: tudo se torna memória e reinvenção.

Embora profundamente histórico, o romance não se lê como crónica. Vaz escreve com lirismo, num ritmo que transforma arquivo em experiência. Mesmo a fome e o cárcere se tornam música nas suas frases. Essa capacidade de dar corpo ao silêncio histórico é o que faz de A Linha do Sal não só um romance de valor documental, mas também uma verdadeira obra de arte.

Lido neste ano de 2025, em que a questão da migração volta a ocupar debates em Portugal e nos Estados Unidos, o livro ganha ressonância particular. Lembra-nos que a perseguição religiosa, a expulsão, a criminalização da identidade não são novidades do presente. Já no século XIX famílias foram dilaceradas, forçadas a atravessar oceanos. Mas Katherine Vaz também recorda que destas violências nascem atos de resistência: ensinar, cultivar, amar.

A contribuição de A Linha do Sal para a literatura luso-americana é profunda. A comunidade dos protestantes madeirenses de Illinois, apesar de documentada, permanecia praticamente invisível na representação literária. A autora restitui-lhes lugar, mostrando que a história portuguesa se inscreve na americana não apenas pela pesca da baleia ou pela agricultura californiana, mas também pela fé, pelo exílio e pela educação.

O romance não teme abrandar o ritmo para mergulhar em detalhes — sermões, carregamentos de fruta, descrições minuciosas. Mas é precisamente nesse gesto que reside a sua ética: resistir à tentação de reduzir o exílio à metáfora e insistir no real, no concreto, no vivido.

O que fica, depois da leitura, não é apenas a história de John e Mary, mas a voz de Katherine Vaz: uma voz que atravessa o Atlântico para unir memórias, que transforma ausência em canto, que acrescenta à literatura americana uma tonalidade de saudade. Em A Linha do Sal, Vaz mostra que o exílio não termina; continua na memória, nos jardins cuidados, nas frases escritas.

O romance encerra-se não com triunfo, mas com resistência. E a resistência, em si, é vitória — a vitória discreta dos que recusam o apagamento. John e Mary, ressuscitados na ficção, tornam-se figuras de fidelidade: ao amor, à memória, à possibilidade de que até em solo estrangeiro o coração encontre raízes.

Katherine Vaz oferece, assim, mais do que um romance histórico: dá-nos uma meditação sobre a fé e o amor em tempos de exílio, lembrando que ser humano é viver entre a fragilidade e a resiliência, entre a ferida e a esperança. A Linha do Sal é elegia e hino, obra que transforma os silêncios da história em música.

Com este livro, a autora que se orgulha das suas raízes açorianas, do berço dos seus antepassados, a ilha Terceira, amplia o cânone da literatura luso-americana, lembrando que as nossas histórias não são marginais, mas centrais; não estão perdidas, mas à espera de serem redescobertas. E, ao fazê-lo, confirma o que o título anuncia: estas vidas, estes amores, estes exílios pertencem à Linha do Sal — honrados, lembrados, celebrados.

Mauricio De Jesus
Maurício de Jesus é o Diretor de Programação da Rádio Ilhéu, sediada na Ilha de São Jorge. É também autor da rubrica 'Cronicas da Ilha e de Um Ilhéu' que é emitida em rádios locais, regionais e da diáspora desde 2015.