OPINIÃOSÃO JORGE

OPINIÃO | Quando Ignoramos o Passado, Quem Paga é o Património, por Sérgio Santos

Sérgio Santos - Licenciado em História, com Menor em Estudos Europeus e atualmente estudante do Mestrado em Ensino de História no 3º ciclo do Ensino Básico e no Ensino Secundário, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
2kviews

O património histórico é, antes de mais, memória. Representa o legado de gerações passadas, permitindo compreender de onde viemos e como se construiu a nossa identidade. Não se resume a monumentos imponentes: muros, fontes ou simples marcos carregam também valor simbólico. É o caso do muro de suporte situado junto à conhecida Curva do Lacete, na Estrada Regional que dá acesso à Vila da Calheta. Em vez de ser protegido e integrado num plano de valorização patrimonial, foi recentemente alvo da colocação de um letreiro com a inscrição “Vila da Calheta”, intervenção promovida pela Junta de Freguesia, que, apesar da intenção de “embelezar” a entrada, acabou por ignorar o valor histórico do local.

Foto 1 –  Letreiro “Vila da Calheta” instalado sobre um muro de valor patrimonial, desrespeitando a sua importância histórica. Fonte: Junta de Freguesia da Calheta.

Não se trata de destruição total, mas de um menosprezo subtil, que, porventura, é ainda mais revelador. Ao ser aproveitado de forma imprópria, o muro perde parte do seu valor simbólico, transformando-se num objeto utilitário descontextualizado do seu significado original. Este tipo de práticas fragiliza a relação da comunidade com a sua própria história, conduzindo a uma erosão lenta, mas profunda, do sentimento de pertença.

A Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 78.º, consagra o direito à fruição e à salvaguarda do património cultural, atribuindo ao Estado e às autarquias a obrigação de o proteger. A Lei de Bases do Património Cultural (Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro) reforça que o património é “um bem de todos para todos”, cuja preservação constitui dever legal e moral. Portugal é ainda signatário da Convenção da UNESCO de 1972 e da Convenção de Faro (2005), instrumentos que sublinham o património como valor coletivo, essencial à cidadania e à coesão social.

À luz deste enquadramento, torna-se evidente a falta de cuidado das entidades locais. Embora a intervenção tenha partido da Junta de Freguesia, a Câmara Municipal também não pode eximir-se da sua responsabilidade, nomeadamente na definição de critérios técnicos, na manutenção de inventários atualizados e na fiscalização adequada. A escolha do muro de suporte junto à Curva do Lacete – um bem com valor histórico e identitário – revela falta de sensibilidade patrimonial e transforma a intervenção num gesto apressado que pouco engrandece a vila. Importa ainda sublinhar que, após quatro anos de mandato, só agora se avançou com esta medida, coincidindo curiosamente com a proximidade das eleições autárquicas. Poder-se-ia ter selecionado outro local, concebendo uma solução própria e digna, sem colocar em causa um bem que faz parte da memória coletiva.

Em muitos municípios do país, observa-se a colocação de letreiros com o nome das vilas e cidades, prática comum na afirmação identitária e na atração turística. No entanto, na maioria dos casos, estas intervenções foram planeadas de forma a não colidir com elementos patrimoniais existentes. O problema na Calheta é que se optou pelo caminho mais fácil, desvalorizando um bem histórico, em vez de criar uma solução própria, digna e respeitadora do passado.

É tempo de exigir às entidades locais – Junta e Câmara – que revejam a sua postura, que atualizem os inventários patrimoniais, que definam políticas claras de preservação e que respeitem, em todas as intervenções, o valor histórico dos elementos existentes. O muro da entrada da Vila não é um caso isolado: fontes antigas, poços de lavar a roupa e outras construções tradicionais têm sido desvalorizadas, reutilizadas sem critérios ou ignoradas. Cada um destes bens constitui fragmentos de uma memória coletiva que, se negligenciada, se perde para sempre.

A degradação ou utilização indevida destes elementos patrimoniais pode parecer, a alguns, uma questão menor. Mas não é! Cada intervenção imprópria representa um atentado direto à memória, à identidade e ao saber-fazer herdado.

Deixemos, então, algumas questões para o nosso caro leitor refletir:

• Estamos dispostos a assistir silenciosamente à destruição do nosso património histórico?
• Que futuro queremos para a memória coletiva do Concelho da Calheta se permitirmos que o nosso património material seja vulgarizado?
• Qual é o nosso papel, enquanto cidadãos, na defesa e valorização da identidade local?

Como lembra José Sarmento de Matos: “O património é a memória da cidade; sem ele, não há história nem identidade.” Esta afirmação não poderia ser mais pertinente para a Calheta. Cada muro, cada fonte, cada marco que se desvaloriza é uma parte da nossa história que se perde.

Proteger o património não é apenas cumprir a lei: é um dever moral, cultural e cívico. É garantir que as gerações futuras possam conhecer, compreender e valorizar o legado que nos foi confiado. A Calheta não pode adiar mais esta responsabilidade: é tempo de agir, de reconhecer e de valorizar o seu património antes que a memória coletiva se transforme em passado irreversível.

Mauricio De Jesus
Maurício de Jesus é o Diretor de Programação da Rádio Ilhéu, sediada na Ilha de São Jorge. É também autor da rubrica 'Cronicas da Ilha e de Um Ilhéu' que é emitida em rádios locais, regionais e da diáspora desde 2015.