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OPINIÃO | Entre a Lenda e a Memória: Os Contos Populares da Terceira e de São Jorge como Património Vivo da Açorianidade, por Diniz Borges

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“As pessoas falavam, cantavam e contavam histórias umas às outras desde tempos imemoriais…” — assim se inicia a rica introdução de Contos Populares Açorianos (Terceira e São Jorge), obra organizada por Manuel da Costa Fontes e Paulo Jorge Correia, que é muito mais do que uma recolha folclórica: é um repositório de vozes, ritmos e imaginação de um povo insular. Esta antologia reúne 88 contos recolhidos nas ilhas da Terceira e de São Jorge, envolvendo-nos num universo de magia, esperteza, riso, sabedoria e moralidade transmitida oralmente por gerações.

A tradição dos contos populares é anterior à própria escrita. Desde as fábulas indianas do Panchatantra até às Fábulas de Esopo e às Mil e Uma Noites, as narrativas orais foram, durante milénios, a principal forma de educação, entretenimento e preservação de valores culturais. Nos Açores, como nas regiões mais isoladas do mundo, estas histórias sobreviveram em dialectos, cadências e expressões únicas, moldadas pelo isolamento e pela geografia marítima.

A introdução da obra oferece um panorama riquíssimo da evolução dos contos populares. Desde as recolhas românticas de Almeida Garrett e Adolfo Coelho até às investigações contemporâneas, destaca-se o papel dos Açores como uma zona conservadora onde se mantêm contos raros ou até únicos em todo o mundo lusófono. A classificação dos contos segundo o sistema Aarne-Thompson-Uther (ATU) reforça o rigor académico e a universalidade dos temas abordados.

Os contos estão organizados em categorias como Contos de Animais, Maravilhosos, Religiosos, Realistas, Jocosos, de Fórmulas e Não Classificados. Esta diversidade revela a complexidade e a riqueza do imaginário açoriano. Entre os contos maravilhosos, encontramos pérolas como “Brancaflor”, onde a heroína é capaz de vencer provas mágicas graças à sua inteligência e coragem — tema universal com ressonâncias em contos europeus medievais.

No conto “A Comadre Morte”, o protagonista escolhe a morte como madrinha, por ser ela “a mais justa”. Esta narrativa filosófica remonta à tradição europeia da mors iusta e mostra como a literatura popular reflete preocupações existenciais profundas, mesmo entre os mais humildes.

Já os contos jocosos como “O Padre e a Criada” ou “O Conto da Merda” revelam um humor transgressor, quase carnavalesco, que permite ao povo rir-se das figuras de autoridade — padres, ricos, juízes — subvertendo, ainda que momentaneamente, as hierarquias sociais.

Um dos grandes méritos da obra está na fidelidade linguística às falas dos informantes. Os contos foram transcritos preservando ruralismos, açorianismos e arcaísmos — como “home”, “prantar”, “veve” ou “ío” —, o que lhes confere uma autenticidade profundamente enraizada no território. A fonética do “r” uvular na Terceira e alveolar em São Jorge, ou a interjeição do -i- (como em “bail-i-ar”), tornam-se marcas da oralidade insular.   Estes elementos linguísticos não só documentam formas raras do português arcaico, como também constituem um corpus de valor etnográfico e histórico, permitindo estudar a fixação das comunidades açorianas desde o povoamento inicial.

Três Contos em Foco: Ecos da Tradição e da Imaginação

No conto “João Periquites”, um dos mais longos e elaborados da coletânea, um rapaz esperto engana sucessivamente figuras de autoridade com engenhosidade e astúcia. Como um Ulisses rural, João vence não pela força, mas pela palavra. “Então o João Periquites disse: ‘Padre, comadre Morte é minha madrinha, e não há padre que me mande embora!’” — esta reviravolta final ilustra o triunfo do saber popular sobre a autoridade imposta.

Em “O Papagaio Calvo”, que se conta desde o século XVI em múltiplas línguas, encontramos o jogo de palavras como ferramenta de justiça. O papagaio, testemunha de adultério, expõe a hipocrisia de uma senhora nobre: “— Papagaio, que disseste? — E ele: ‘Vi, vi…’ E tudo repetiu.” O recurso ao animal falante como espelho moral está profundamente enraizado em tradições orientais e europeias.

Por fim, o conto “Ovos Cozidos Não Dão Pintos”, presente em mais de 20 línguas europeias, satiriza a lógica absurda de certos julgamentos. “— Como pode um homem dizer que nascem pintos de ovos cozidos?” pergunta o juiz. E o protagonista responde: “— E como pode o juiz crer que um homem fez mal sem ter visto?” — crítica mordaz à injustiça baseada em presunções e não em provas.

Os Contos como Pontes da Diáspora

Num mundo em que a globalização apaga sotaques, cheiros e mitos locais, obras como esta adquirem uma importância vital. Para as novas gerações da diáspora açoriana nos EUA, Canadá e Brasil, estes contos representam mais do que histórias — são fios que ligam netos e bisnetos aos serões das suas avós, ao tempo antes da televisão, à terra que os viu partir.

Transmiti-los é reativar um contacto afetivo e simbólico com as origens. Como afirma Manuel da Costa Fontes, “contavam-se muito quando as pessoas se juntavam para amarrar milho, nas desfolhadas, nos serões…” — é esse espírito comunitário que os contos reavivam, mesmo a milhares de quilómetros de distância.  Mais, o registo escrito permite que estas histórias resistam à erosão do tempo e do esquecimento. São um arquivo de identidade cultural que complementa a memória oral. Ensinar estes contos em escolas comunitárias de herança portuguesa ou incluí-los em programas de língua e cultura é um gesto de resistência e pertença.  Registar estes contos é salvaguardar o património imaterial de um povo. A sua força reside precisamente na sua humildade: nasceram do povo e ao povo pertencem. Como salienta a introdução, “alguns também serviam para ensinar” — e hoje podem ensinar ainda mais: empatia, história, humor, linguagem e pertença.

         A sua divulgação junto das comunidades da diáspora não deve ser vista como uma simples curiosidade, mas como uma estratégia de revitalização cultural. Quando um jovem luso-americano ou luso-canadiano ouve um conto como A Comadre Morte, ele não apenas escuta uma história — ele escuta o eco da voz da sua bisavó, talvez já esquecida, talvez nunca conhecida. E esse reencontro simbólico é, por si só, um ato de pertença.

        Este livro, que saiu à rua graças ao patrocínio da Câmara Municipal de Angra do Heorísmo, numa publicação conjunta com a Bruma Publications do instituto PBBI da Universidade do Estado da Califórnia em Fresno e a Letras lavadas, é uma biblioteca de vozes. Cada conto é uma vela acesa no escuro da distância e do tempo. É como se, ao lermos estas histórias, ouvíssemos de novo o chiar do fogo no serão, o sussurro da avó entrelaçado ao barulho do tear, o riso cúmplice da vizinhança.  Os contos da Terceira e de São Jorge aqui reunidos por Fontes e Correia são cápsulas de memória, mas também sementes para o futuro. Que os contemos de novo — em casa, na escola, em português ou traduzidos — é o desafio e a missão. Que não deixemos que o vento leve as palavras dos nossos avós, pois nelas mora a alma de um povo.

Como disse um contador em São Jorge: “Contos são como pão quente: se não os partilhamos, arrefecem.” Que este livro seja, pois, forno e mesa — e que cada leitor, onde quer que esteja, saboreie estas histórias como quem volta a casa.

As histórias orais são a respiração mais antiga de um povo — nascem no sopro da voz e vivem enquanto forem contadas. São bússolas de pertença, mapas invisíveis que conduzem os filhos da distância de volta às raízes. Para povos com diásporas, como os açorianos espalhados pelo mundo, essas narrativas mussitadas ao entardecer têm o peso do sagrado. Cada conto, cada lenda, cada piada partilhada à volta da mesa é um fio que cose o rasgão da saudade. Mesmo quando a língua se desfaz na boca dos netos, a memória dessas histórias — ditas por uma avó entre as mãos que descascavam favas, ou por um avô que ria com os olhos — permanece como a mais genuína música de fundo da nossa identidade. Contar é um ato de amor. Ouvir é um gesto de pertença. E preservar é uma promessa silenciosa de que nenhum povo será esquecido enquanto souber narrar-se a si próprio. 

Mauricio De Jesus
Maurício de Jesus é o Diretor de Programação da Rádio Ilhéu, sediada na Ilha de São Jorge. É também autor da rubrica 'Cronicas da Ilha e de Um Ilhéu' que é emitida em rádios locais, regionais e da diáspora desde 2015.