OPINIÃO | Memórias que Moldam o Amanhã: A Relevância do Passado na Diáspora Açoriana, por Diniz Borges
Guarda o passado, se não tens já futuro.
Porque se também o perderes,
o presente que te restar é o da pia,
que não tem tempo algum.
Vergílio Ferreira
A comunidade de origem portuguesa na zona centro/sul do vale de San Joaquim, não possui, neste momento, uma rádio sua. Os condados que constituem, geograficamente, esta zona do centro da Califórnia, nomeadamente Tulare, Kings, Fresno e Kern, foram, em tempos idos, locais frutíferos em programas de rádio na língua portuguesa. Uma área geográfica com 54 mil quilómetros quadrados, uma população na ordem dos 2,5 milhões de habitantes dos quais cerca de 33 mil são de origem portuguesa, mais de 90% nascidos ou com raízes nos Açores. Não há, nas ondas hertzianas, ou mesmo nas novas tecnologias, uma única voz desta comunidade, desta zona da nossa diáspora, onde os açorianos e açor-descendentes ainda têm uma forte presença na indústria agropecuária, entre outras. A comunidade do centro/sul do Vale de San Joaquim precisava de voltar a ter a multiplicidade de vozes que outrora construíram quem fomos e quem somos.
Longe vão os tempos em que esta zona da Califórnia possuía uma amálgama de programas de rádio, feitos pelas mais diversas personalidades, muitos com estilo verdadeiramente artesanal, mas todos contribuíam para uma comunicação constante com a comunidade. Muito antes da antiga emissora KIGS, que transmitiu totalmente em português durante pouco mais de duas décadas; muito antes da primeira estação de rádio em circuito fechado na Califórnia- Rádio Clube Comunidade, fundada em 1982 (com muito suor e muita dor); e antes da estação KTPB, também em circuito fechado e que tentou fazer o inimaginável, juntar todos os programas de rádio, a qual durou cerca de uma dúzia de anos. Muito antes de tudo isto, os programas de rádio em língua portuguesa, transmitidos nas mais variadas estações foram vozes extremamente pertinentes nas vidas das nossas comunidades. Tal como essas mesmas estações também deram um valioso contributo às nossas comunidades. Estamos muito esquecidos, aqui e em outras partes, da importância destes programas de rádio, dos imensos contributos à diáspora, do que fomos em termos de comunicação social. É bom relembrarmos este passado que ajudou a construir o presente que temos, e sobretudo, utilizá-lo para construir o futuro que queremos ser. É que os programas de rádio traziam, o que começa a faltar em muitas comunidades da nossa diáspora, inclusão. Aqui nesta zona geográfica da nossa diáspora, um microcosmo da mesma, verifica-se, cada vez mais, desconhecimento pelo passado e manipulação da cultura através da efeméride da festa. Como escreveu Mario Quintana: O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente.
Em tempos idos, até há cerca de meia dúzia de anos, Tulare (cidade geminada com Angra nos Açores), no centro desta zona geográfica, tinha um evento público, associado ao movimento estudantil, onde se dedicava um espaço à nossa memória coletiva. Em 2017, por exemplo, foi relembrado um dos mais dinâmicos casais desta comunidade, sobejamente conhecido e respeitado em todo o estado da Califórnia, desde o fim da década de 1950 até ao começo da década de 1980: Joaquim e Amélia Morisson. Em todas as tardes de domingo, precisamente pelas seis horas, ao som da célebre marcha “Estrelas e Riscas” do compositor luso-descendente John Phillip Sousa, ouvia-se através das ondas hertzianas, no 620 da onda média, na antiga KNGS, o programa Ecos do Vale. Durante 90 minutos a comunidade de origem portuguesa nos condados referidos, e em outros onde chegava esta estação, parava, literalmente, para ouvir e aprender com o casal Joaquim e Amélia Morisson. Os seus contributos para a nossa comunidade ainda hoje são sentidos e tiveram uma importante repercussão.
Primeiro, e acima de tudo há que referenciar que num momento em que a instrução dos locutores das nossas rádios era limitada, o casal Morisson denominava com mestria a língua portuguesa. Daí que os 90 minutos do programa Ecos do Vale, eram uma aula de português. Antes de sonharmos com escolas e cursos de língua nas nossas instituições ou no ensino público americano, de domingo a domingo, o casal Morisson, ensinava, para quem quisesse aprender, a arte do bem falar. Durante uma hora e meia não havia, um único tropeço linguístico. Para crianças e jovens, que como eu haviam emigrado muito novos (no meu caso com 10 anos de idade) ouvir, religiosamente, Ecos do Vale, era continuarmos a aprender a língua portuguesa em terras americanas.
Numa era em que a nossa emigração dos Açores era composta de homens e mulheres com pouquíssima instrução escolar, muitos com dificuldades na sua própria língua, o casal Morisson, ao contrário de outros colegas seus, mantinha a integridade da língua portuguesa. Da publicidade às dedicatórias, das notícias da comunidade às novidades da mãe pátria, Joaquim e Amélia Morisson, emigrantes da ilha do Faial, mantinham um programa de rádio organizado, bem-apresentado, bem-humorado e com um português que tal como dizia uma tia minha: consolava ouvir.
Um dos segmentos únicos na rádio em língua portuguesa desses anos eram as suas famosíssimas Lições do Joaquim. Uma rúbrica que marcava o programa Ecos do Vale e que marcou a comunidade. Nesses longínquos anos, nas décadas de 1950, 60, 70 e começo dos anos 80, as Lições do Joaquim, eram, nesta zona da Califórnia, radio-teatro, no seu melhor. Durante 10 a 12 minutos, Amélia Morisson, voltava ao seu tempo de professora primária nos Açores, com um único aluno, o seu marido Joaquim. Nessas lições vivia-se a comunidade, Portugal e os Estados Unidos. As Lições do Joaquim eram mais do que meras rábulas, eram sim, autênticas lições de história, sociologia, filosofia, antropologia, política, língua e cultura. As posições progressistas que o casal Morisson assumidas através destas lições estavam alicerçadas numa tradição portuguesa e açoriana, fortemente influenciada pelo culto do Espírito Santo, e a solidariedade que o mesmo envolve (porque pensa-se cada vez mais que o culto ao ES é, meramente, para se fazer festa), assim como os princípios da justiça social provenientes da tradição católica contida na teologia da libertação tão popular na década de 1960. O casal Morisson, no seio de uma comunidade bastante conservadora, eram vozes de progresso e as Lições do Joaquim, refletiam um ato de coragem e ousadia.
O programa Ecos do Vale, e a postura do casal Morisson nesta comunidade, através do seu serviço de emigração, viagens e notário público, foram marcantes. Num período em que seria muito fácil enriquecer à custa da falta de conhecimentos de uma emigração pacata e desconhecedora do mundo que a rodeava, e muitos pelo estado da Califórnia fizeram fortunas na rádio e no aproveitamento da comunidade de então, o casal Morisson manteve uma verticalidade ímpar. Os seus serviços eram sempre mal remunerados e quer Joaquim, quer Amélia Morisson, para além da rádio, trabalharam imenso para a integração da nossa comunidade, particularmente ao longo das décadas de 1960 e 1970. Acreditavam, veementemente, na integração sem diluição e já nessas décadas apelavam à participação cívica das nossas comunidades, encorajando aos emigrantes a adquirirem a cidadania americana. Através do seu programa, e nos fóruns públicos em que participavam, fomentavam o desejo de ver a nossa comunidade mais instruída e mais envolvida no mundo americano. Recordo-me, que as Lições Joaquim, propunham à comunidade que o ensino, os cursos superiores, eram a trajetória certa para as nossas comunidades e que os pais, mesmo com poucos ou nenhuns conhecimentos da língua inglesa, deveriam envolver-se no ensino dos seus filhos e encorajá-los a irem mais além. Ter um discurso destes numa comunidade que acabava de chegar, particularmente nos anos 60 e 70 do século passado era louvável, de uma grande visão e relevância.
Era através dos Morisson’s que muitos dos imigrantes dos Açores, no êxodo dos anos 60 e 70, conseguiam o seu primeiro emprego, adquiriam conhecimentos sobre como abrir uma conta bancária, comprar o seu primeiro carro, conseguir carta de condução e saber as notícias da nossa terra. O casal Morisson, literalmente, dava as mãos à nossa comunidade recém-chegada e levava-nos pelos caminhos do novo país. Como referenciei, teria sido muito fácil explorar gente tão necessitada. Não o fizeram, e isso diz-nos muito sobre a sua integridade, o seu carácter. E há vários casos em muitos outros lugares da nossa diáspora, como também há outros, demasiados que se aproveitaram da comunidade e que hoje queremos branquear esse aproveitamento.
Daí que, mesmo com a distância do tempo, mesmo com o desconhecimento que existe por um passado histórico coletivo que vá além da festa da semana passada, é importante relembrar estes pilares das nossas comunidades de origem portuguesa nesta zona da Califórnia. A nossa trajetória não começou ontem, nem começou com a atual geração, ou os seus pais. Estamos aqui há cerca de 150 anos. Se hoje somos a comunidade que somos, incluindo as imperfeições que temos, devemo-lo a pilares como Joaquim e Amélia Morisson. Pena que não tenhamos espaço no quotidiano comunitário para a nossa história coletiva. Talvez seja discurso de velho, mas acredito que os mais novos precisam saber como foi a comunidade e quem construiu o presente que eles hoje usufruem. É que tal como foi dito algures: entre o passado, onde estão as nossas recordações e o futuro, onde estão as nossas esperanças, fica o presente onde está o nosso dever.