OPINIÃO | O Voo da Liberdade: a comunicação-social de língua Portuguesa na Califórnia, por Diniz Borges
A comunicação social dos vários grupos étnicos e de várias culturas serve como mediadores entre as suas comunidades e a sociedade em geral.
Hilda Guidían, Jornal hispânico, La Notícia
Há mais de um século e meio que os portugueses dos Açores fazem da Califórnia a sua segunda pátria. No estado do Eldorado, as gentes das ilhas de bruma lançaram novas raízes e cultivaram a sua própria identidade – uma açorianidade mesclada pela irrigação contínua do multiculturalismo americano.
Após a travessia do imenso Atlântico, e todo o continente norte-americano, o açoriano agora transplantado nas “Califórnias perdidas de abundância” de que nos fala o poeta florentino Pedro da Silveira, sentia (e ainda sente, para os poucos que agora chegam) a necessidade de agarrar-se ao que é da sua terra: as festividades, a religião, as tradições populares, e, sobretudo a língua. Daí que pouco depois da primeira chegada das ondas emigratórias de portugueses para a Califórnia tenham aparecido alguns órgãos da comunicação social.
Vozes de Povo, os jornais e as rádios de língua portuguesa neste estado à beira do pacífico plantado, têm tido uma relevância enorme no contacto dos emigrantes com a sua língua e a sua terra. O grande desafio para o século XXI, entrados que estamos na segunda década do mesmo, e com a revolução que nos trouxe as redes sociais e novas plataformas e alternativas, é como se chega às segundas, terceiras e quartas gerações, que, neste momento compõem cerca de 70% da nossa comunidade em terras da Califórnia, e que já não falam a língua dos pais, dos avós, dos bisavós.
Durante décadas, nos anos AC-Antes do Computador, órgãos da comunicação social foram as cartas coletivas que se recebia da ilha e da freguesia lá distante. Foram essencialmente estas Vozes do Povo, que davam ao emigrante o contacto com a terra natal – através das notícias de Portugal e dos Açores e com o mundo estranho que os rodeava – com as notícias da sociedade americana. Porém, a função de maior magnitude para muitos dos emigrantes estaria na divulgação dos acontecimentos comunitários – o espaço que os mantinha em contacto uns com os outros, aquele contacto necessário que lhes dizia que em terra de ninguém ainda eram alguém.
Apesar do muito que se disse, e se dirá, sobre o amadorismo, o pouco ortodoxismo, o cómico, e até mesmo o trivial, que se passou, e porventura ainda se passa em algumas parcelas dos órgãos da comunicação social de língua portuguesa na Califórnia, não esqueçamos, nunca, que foram estes homens e estas mulheres, que durante muitíssimas décadas, e muito antes das escolas portuguesas, antes de centros de estudos universitários, antes da existência de muitos clubes, filarmónicas e associações, das parabólicas, da TV Cabo e da Internet, foram eles e elas, os verdadeiros propugnáculos da língua portuguesa no estado da Califórnia. É uma homenagem que ainda não se fez, de uma forma consistente e coletiva.
Os primeiros órgãos da comunicação social em língua portuguesa neste estado foram os jornais. A imprensa lusíada em terras de Cabrilho deu os seus primeiros passos através do Voz Portuguesa, estabelecido a 5 de agosto de 1880, em São Francisco, este jornal foi dirigido pelo brasileiro Manuel Stone.
E vejamos a vitalidade da imprensa de língua portuguesa na Califórnia, nos finais do século XIX e princípios do século XX. Em 1884, também na cidade de São Francisco, aparece O Progresso Californiense, fundado pelo florentino António Maria Vicente. Em 1887, de novo em São Francisco surge: A União Portuguesa. O Amigos dos Católicos, fundado pelos padres Manuel Francisco Fernandes e José Francisco Tavares, apareceu em 1888, mais tarde foi mudado o nome, uma espécie de laicização, para O Arauto pelo açoriano, também da ilha das Flores, Pedro Laureano Claudino da Silveira sendo transferido de Hayward para Oakland.
Em 1900 aparece em Sacramento A Liberdade; em 1905 nasce na cidade de Fresno, no vale de San Joaquim, O Portugal-América; no ano de 1909 é fundado O Reporter; em 1913, também na capital californiana, aparece O Imparcial; em 1908 A Voz da Verdade na cidade de Oakland; em 1912, O Lavrador Português em Lemoore, Hanford e Tulare; em 1914 o A Califórnia Alegre é fundado nas mesmas localidades; A Colónia Portuguesa em Oakland e a Revista Portuguesa em Hayward no ano de 1915. Entre estes, existiram outros que tiveram vida ainda mais efémera e que foram publicados em várias partes do norte e centro da Califórnia.
Dos jornais publicados no passado mais recente, saliente-se o Jornal Português, que resultou de uma fusão do Imparcial e A Colónia Portuguesa. Dirigido durante mais de três décadas por Alberto Lemos, o Jornal Português, extinto, infelizmente há alguns anos, por falta de sentido histórico, foi, indubitavelmente o jornal de língua portuguesa com maior tradição nas comunidades da Califórnia. Foi ainda um semanário que gozou de um bom contacto com os luso-descendentes, muitos dos quais assinavam-no como um legado cultural vindo dos pais ou dos avós.
Ainda no século vinte registe-se o aparecimento do Progresso publicado em Sacramento entre 1933 e 1940; As Novidades publicado em Newman durante alguns meses no ano de 1940; A Voz de Portugal de Hayward, existente entre os anos de 1960 a 1976; o Portuguese Tribune fundado por João Brum (o único até à data que no princípio tinha um projecto cultural e que cujo director foi pioneiro no chamado jornalismo cultural) em 1979 e ainda em publicação, há duas décadas quinzenal e o único jornal da nossa Diáspora no oeste americano; o Novidade em Tulare, que existiu desde 1983 a 1991; O Notícia publicado de 1984 a 1986; o Portugal/USA 1986/87 e ainda mais recente o Portuguese-American Chronicle fundado em 1997 e o Luso-Americano de New Jersey que em 1992 começa uma edição da Califórnia. A imprensa de língua portuguesa tem sido prolífera e acabou por ter deixado as suas marcas no historial dos portugueses em terras de Cabrilho.
E porque não só de jornais vive o homem, se bem que sem eles, mesmo que sejam eletrónicos, sejamos mais pobres, a comunidade portuguesa, quase toda açoriana da Califórnia tem tido na rádio um dos mais importantes, e o talvez mais influente meio de comunicação social deste estado, no que concerne à nossa Diáspora. Porque os hábitos de leitura dos portugueses emigrados não eram os melhores, porque o trabalho e o processo de integração pouco espaço dava para a leitura, a rádio foi o meio que mais cresceu dentro das comunidades portuguesas deste estado do pacífico. Uma mistura da música tradicional que as rádios tocavam, e ainda tocam, o desejo de se ouvir falar português, e a tão necessária interligação das pessoas, e das associações, popularizou as rádios no seio desta que ainda é o estado com a maior comunidade açoriana, mais açorianos e açordescendentes do que a atual população do arquipélago.
O primeiro programa de rádio em língua portuguesa, criado na Califórnia, chamou-se Vasco da Gama. Este programa foi dirigido por José Vitorino. Lançado para o ar no dia 10 de Junho de 1920 pela estação KGBM, que era um projeto inovador e sem licença, e uns anos antes de a rádio ter aparecido em Portugal. Foi o mesmo José Vitorino que mais tarde dirigiu o programa Voz Dos Açores da cidade de Modesto.
No ano de 1930 Artur Vieira Ávila, que havia fundado o jornal O Lavrador Português e havia colaborado em outros periódicos, lançou o primeiro programa português emitido diariamente na Califórnia, Castelos Românticos. Este programa era apresentado em colaboração com a sua esposa Celeste Ávila e transmitido desde a cidade de Oakland. Sete anos mais tarde, em 1937, na cidade de Tulare, Enos Santos aparece com o programa Portugal que se tornou num dos programas com maior duração nas lides radiofónicas portuguesas em terras californianas. Este programa de rádio foi transmitido, ininterruptamente, de 1937 até 1995. Nos últimos anos era dirigido pelo popular locutor da rádio, oriundo da ilha do Faial, Joe Silva.
Desde então, têm sido prolíferos os programas de rádio em língua portuguesa nas várias estações de rádio do norte ao sul da Califórnia. Sem dúvida que estes pioneiros da rádio, e os que lhes seguiram, suavizaram a nostalgia, o desejo do regresso, pelo menos imaginário, à terra de origem. Este apego ao passado, e às ilhas, é transparente nos nomes que os homens e as mulheres davam aos seus programas: “Saudades da Nossa Terra”, “Recordações de Portugal”, “Ecos Portugueses”, “Portugal de Hoje”, Memórias de Portugal”, “Saudades de Portugal”, “Voz da Saudade”, “Recordar é Viver”, “Jardim dos Açores”, “Sonhos de Portugal”, “Amor da Pátria”, “Melodias de Portugal”, “Voz do Emigrante” “O Emigrante Português”, “Portugal na Califórnia”, “Sol de Portugal”, “Voz do Atlântico”, “Voz da Lusitânia”, “Portugal, Terra de Fé”, “Aurora de Portugal”, “Ecos dos Açores”, “Saudades dos Açores”, “As Nove Pérolas dos Açores”, “Portugal em Marcha”, “Voz da Nossa Terra” etc.
Nem sempre com a qualidade desejável, por vezes feita em situações verdadeiramente artesanais, a rádio portuguesa foi criando através dos anos um público fiel e uma audiência atenta, em muitos casos, extremamente participativa, quer nas famosas dedicatórias musicais, quer nas festividades que as próprias rádios proporcionavam ao celebrarem o seu aniversário. Eram os programas de rádio que davam as últimas de Portugal, embora em muitos casos, com algumas semanas de atraso. Eram os programas de rádio a ponte entre o isolamento da emigração, a terra distante e as outras comunidadesque nos rodeavam.
Como me disse uma anciã em Tulare há cerca de dois anos: “eram os programas de rádio que nos davam tudo. Metiam-nos medo ao falar da violência americana; dos desastres e das tragédias; diziam-nos quem nascia e quem morria na nossa comunidade; falavam-nos das festas e das romarias; de quem precisava de trabalho ou de empregado; até mesmo ficávamos a saber quem tinha comprado rancho ou vacaria (leitaria), carros novos, e quem ia às ilhas de passeio. Eles diziam-nos tudo.”
Alguns dos primeiros homens e mulheres da nossa rádio jamais deverão ser esquecidos. Não foram apenas pioneiros das ondas hertzianas em português como foram construtores importantíssimos da comunidade que hoje somos. Artur e Celeste Ávila, Joaquim Esteves, Francisco e Josefina Canto e Castro e mais tarde Miguel Canto e Castro, Frank Dias, Maria Cabral, Maria Sousa, Higino Costa, Joaquim e Amélia Morisson, Ana Calado, Frank Dias, Enos e Margarida Santos, Mimi Dias, Idalina Melo, Jorge Ázera, Joaquim Correia Sr., Frank Mendonça, Arnaldo Gonçalves, Isalino dos Santos, Agnelo Clementino, Camilo Melo, Manuel Leal, Paulo Goulart, Antonio Carvalho, Aires Medeiros, e tantos outros que devem ser merecedores do nosso reconhecimento pelo contributo que fizeram para a manutenção do lusitanismo, e da açorianidade, em terras da Califórnia.
Na década de 70 surgem outros nomes e outra forma de fazer rádio. Um caso único foi o aparecimento de Eugénio Alcoforado, antigo locutor do Rádio Clube Português do Porto que a partir do sul da Califórnia lança a primeira tentativa para profissionalizar a rádio portuguesa deste estado. O seu projeto não foi rentável, infelizmente. Um projeto radiofónico que unia três estados da união americana era utópico. Alguns anos depois, com a KRVE (Rosa, Vieira e Esteves) de Los Gatos e a contratação dos locutores José João Encarnação e Mário Vargas é dado o primeiro e o grande passo para essa desejada profis sionalização. Dir-se-á que depois deste duo e das polémicas “Linhas Abertas” a rádio portuguesa na Califórnia jamais foi a mesma. Esta mesma rádio, mais tarde propriedade do magnata da nossa comunidade Batista Vieira, trouxe-nos nomes que hoje fazem parte da história da nossa comunicação social: Tito Rebelo, Filomena Rocha-Mendes, Aida Barbosa e Álvaro Aguiar, entre outros.
Um pouco por todo o estado apareceram projetos similares ou diferentes, mas todos com objetivo de transformar a rádio portuguesa. No sul do estado foi a Rádio Lusalândia, um projeto que envolve vários indivíduos. Nomes tão conhecidos da diáspora como: Vamberto Freitas, Osvaldo Palhinha, Pedro Costa, Alfredo Silveira, e outros tentaram durante alguns anos fazer uma rádio informativa, formativa e com um forte espírito crítico. No centro do estado, em Tulare/Visalia instituiu-se a primeira tentativa na Califórnia do sistema de circuito fechado, a Rádio Clube Comunidade. Mais tarde na mesma cidade e também com o mesmo sistema a KTPB passa a ser a primeira estação do género na Califórnia a transmitir 24 horas por dia totalmente em português. A KLBS em Los Banos, do grupo Batista Vieira é a única estação que ainda continua totalmente em português, assim como as rádios online da Diáspora Media Group e a RTA em Artesia.
A televisão em língua portuguesa também teve a sua história, com o primeiro programa em língua portuguesa na Califórnia, e em todo o país, vindo de Tulare, a cidade irmã de Angra do Heroísmo, em 1957, iniciativa de um luso-descendente, Acácio (Casey) Santos. Há uma amálgama de nomes ligados à nossa televisão comunitária: Joaquim Esteves, Osvaldo Palhinha, Diniz Borges, Lúcia Noia, Padre Raul Marta, João Fontes Sousa, Carlos Goulart, Laura Rebelo, e outros.
Depois de uma história que tem 143 anos (1880 o primeiro jornal), há que olhar-se, objetivamente, para a nossa comunicação social em língua portuguesa na Califórnia, como é hoje e como, possivelmente, será amanhã.
Primeiro, e acima de tudo, seria importante ter-se um momento de reflexão e termos a coragem de transformarmos o que temos, e temos projetos muito bons, em projetos e plataformas que estão enquadrados na comunidade que somos e não na com unidade que fomos. Para além das novas tecnologias, que os OCS da nossa Diáspora na Califórnia já usam, e ainda bem, é essencial, para que os mesmos sobrevivam, que se passe para conteúdos que estavam perfeitamente corretos no século passado, mas que hoje já não se enquadram. Os projetos de videoamadores, os canais YouTube, os podcasts, as formas de comunicar, mudaram a realidade, e por vezes vieram preencher lacunas deixadas pelos órgãos tradicionais da nossa comunicação social, que não quiseram fazer o que os seus congéneres americanos, desde os nacionais aos locais, passando pelos étnicos, fizeram: utilizar essas novas redes e terem uma presença sólida nas mesmas.
A comunicação social em língua portuguesa, melhor agora a comunicação social de expressão portuguesa na Califórnia, para o bem e para o mal (porque tenho histórias de matar) tem sido parte da minha vida desde os 17 anos de idade, ou seja, há quase 48 anos. Gostaria muito que nos próximos sete anos, ao preparamos as comemorações dos 150 anos (2030), que aproveitássemos o nosso tempo (nosso de comunidade e homens e mulheres da comunicação social portuguesa na Califórnia – quase todos só homens, infelizmente) para olharmos além do nosso percurso pessoal e da nossa zona de conforto, para o que podemos e devemos fazer para não só salvaguardar, mas sobre tudo, renovar o que temos, a fim de ter vida frutífera e marcante para a nossa diáspora neste grande estado americano. Seria muito triste, muito mesmo, estarmos a celebrar os 150 anos com uma comunicação social moribunda. Não deixemos que isso aconteça.
Tenhamos a coragem de mudar, ou então de sairmos e deixarmos que outros o façam. Respeitemos o legado da comunicação social de expressão portuguesa na Califórnia com a visão de que só com novos paradigmas e novas plataformas poderemos comemorar, com vigor e rejuvenescimento, os 150 anos que se avizinham. A história da nossa imprensa, rádio e televisão na Califórnia merece mais do que sonhos adiados, ou utilizando uma frase do poeta Álamo Oliveira, não podemos ficar para sempre: “uma ilha rodeada de saudade.” Até porque já não somos essa comunidade.
DI/RÁDIOILHÉU