OPINIÃO | Autores da Diáspora Açoriana: Lembrando o passado para construir o futuro, por Diniz Borges
E o emigrante sozinho,
Recorda os tempos velhos
Alfred Lewis escritor emigrante
das Flores do poema Emigrante Sozinho.
A Diáspora açoriana na Califórnia tem tido uma enorme criatividade literária. Há que reconhecer homens e mulheres que quer na sua língua materna, quer na sua língua adotiva têm contado as nossas vivências e a nossa saudade, que nem sempre chora. Já em 1986, Eduardo Mayone Dias e Donald Warrin, no seu livro Cem anos de Poesia Portuguesa na Califórnia, escreviam sobre a criatividade comunitária. Desde os finais do século XIX que os jornais da nossa emigração na Califórnia eram repositórios da escrita comunitária, particularmente em crónica, em poesia e também em pequenos contos e fábulas. Uma dessas vozes é a de Maria Fernanda Simões, que ao longo das últimas décadas publicou três livros. E ainda bem, porque tal como escreveu Clarice Lispector: “quem escreve ou pinta ou ensina ou dança ou faz cálculos em termos de matemática, faz milagre todos os dias. É uma grande aventura e exige muita coragem e devoção e muita humildade.”
O último livro de Maria Fernanda Simões que deveria ser traduzido para inglês a fim contar, numa linguagem direta, aos açor-descendentes as vivências de outros tempos, muitas vezes ocultadas nas estórias passadas pelos pais e avós. Este é, essencialmente, um livro de família e um livro de paixões. De família porque todos os textos, em torno de uma série de eventos que ocorriam ciclicamente no arquipélago dos Açores, desde as debulhas às searas, dos trigais às ceifas, das eiras aos moinhos e atafonas, tudo se passava em torno do agregado familiar, como a autora exemplifica, entre outras circunstâncias, com a história do tio Antonico São Miguel e a tia Maria do Rosário. É que entre a descrição destes tempos que já lá vão, a autora mistura uma série de pequenos episódios do quotidiano os quais tornam a leitura mais pessoal, mais íntima, mais em família. Um olhar romantizado ao passado onde a vida talvez fosse mais simples, mas, seguramente, que era mais dura. Daí que a autora com esta escrita do quotidiano Picoense e açoriano relembra-nos o que o célebre romancista latino-americano Gabriel Garcia Marquez escreveu no seu livro Amor em Tempos de Cólera: “A memória do coração elimina o mau e amplifica o bom.”
As estórias, na história deste livro, estão alinhavadas com a solidariedade do ilhéu açoriano, cujo sentido de justiça faz-me lembrar o que ainda há dias vi, de autor desconhecido: se você se sente só é porque constrói muros em vez de pontes. E o povo açoriano, apesar do mar que o separa, tem, com criatividade e determinação, construído pontes importantes na unificação do arquipélago e na ligação entre a Região e a Diáspora. Ao delinear as vivências de um tempo e de um lugar, Maria Fernanda Simões, perpetua essa criação de pontes que ligam a nossa herança cultural ao mundo contemporâneo. Com pormenores por vezes esquecidos, os textos de Marai Fernanda Simões são pedaços de um tempo que marcaram as gerações mais idosas, e são parte do legado das gerações mais novas. É que apesar de tudo o que se tenta dizer e escrever, para que as comunidades conheçam, e acho muito bem, os novos Açores, o novo Portugal, cometemos um gravíssimo erro quando não falámos, em ambos os lados do atlântico de que nem sempre foi assim. Para que os novos Açores e o novo Portugal sejam apreciados pelas novas gerações de açor-descendentes, há que lhes transmitir a vida no tempo dos pais, dos avós ou bisavós.
E é um livro de paixões, porque, para além da história de amor do tio Antonico de São Miguel e da tia Maria do Rosário, a autora relata-nos estes tempos do passado com uma grande paixão. Maria Fernanda Simões vive, neste livro, um grande namoro com o tempo dos seus antepassados. Como escreveu o ensaísta norte-americano Edmund Burke no seu livro que reflecte a revolução francesa, considerado a melhor análise anglófona sobre essa revolução: “As pessoas não serão capazes de olhar para a posteridade, se não tiverem em consideração a experiência dos seus antepassados.” Daí a importância de se estar consciente que o passado, mesmo quando romanceado, poderá servir de lição para o presente e de alicerce para a construção do futuro.
É este o último livro publicado por Maria Fernanda Simões Saudades dos Tempos Que Já Lá Vão de Maria Fernanda Simões, que já havia publicado Os Meses das Nossas Raízes e As Lavadeiras, suas lidas e maluqueiras. É mais um testemunho de um tempo e de um lugar na cultura açoriana. É ainda o retrato de uma mulher eternamente ligada à sua ilha do Pico e a um povo que soube do basalto construir uma das mais míticas e encantadoras ilhas do arquipélago dos Açores. É que o Pico, que a autora descreve no seu livro é, ainda, uma ilha cheia de encanto e mística. As pedras do Pico, relembram-nos, ainda hoje, a vida difícil daquela ilha e a tenacidade do seu povo. Um povo tão vertical como a montanha da sua ilha.
Maria Fernanda Simões, para além da escrita e de uma vida dedicada à nossa Diáspora na Califórnia, quer na rádio em língua portuguesa com o seu programa Saudades da Pátria, quer no movimento fraternal, tendo sido presidente da Sociedade Portuguesa da Rainha Santa Isabel (SPRSI), dedica-se ainda à pintura. Tendo feito exposições em mãos os lados do atlântico. As suas criatividades evocam as paisagens açorianas. As vivências de outros tempos, o mundo açor-californiano e as paisagens deste estado plantado à beira do pacífico.
Um dos nossos melhores escritores da língua portuguesa, Eça de Queiroz, escreveu: “contar histórias é uma das mais belas ocupações humanas: e a Grécia assim o compreendeu, divinizando Homero que não era mais que um sublime contador de contos da carochinha. Todas as outras ocupações humanas tendem mais ou menos a explorar o homem; só essa de contar histórias se dedica amoravelmente a entretê-lo, o que tantas vezes equivale a consolá-lo.” Os autores da nossa diáspora, como a Maria Fernanda Simões, são contadores de histórias que numa terra multicultural, precisam, cada vez mais, de fazer parte da nossa comunidade, parte das nossas festividades, parte do mundo que integramos. As histórias do passado alicerçaram o presente e constroem o futuro.