SÃO JORGE

“Retalhos Soltos” para a História do Concelho da Calheta (IX) | Barco “São João” da Fajã de São João, por Paulo Teixeira

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Figura 1- Barco o “São João”

Mais de cem anos de existência é razão para se celebrar ou pelo menos se assinalar. Ora a vida de um barco de madeira, que parece ter nascido ainda no século XIX, atravessa o século XX e ainda resiste no século das tecnologias, é certamente merecedor de umas linhas que possam perpetuar a sua história e a memória daqueles que com ele conseguiram levar comida à mesa de suas famílias.

Figura 2 – Major Alberto S. Leonardo do U.S. Marine Corps

Neste processo não é menos digno de assinalar o esforço e empenho do homem que assegurou que este barco chegasse ao século XXI e em boa hora o doou à Associação “O Cachalote”, para poder ser exposto e dada a conhecer a sua história às gerações vindouras. Esse homem é o Major Alberto Silveira Leonardo[i], do U.S. Marine Corps, que teve a visão de acautelar este e outros bens de grande interesse histórico, mesmo quando à sua volta as pessoas não percebiam o seu interesse por “coisas velhas”. Mais, foi capaz de recuperar a matrícula desta embarcação e reunir dados fundamentais, junto de pessoas que, entretanto, já faleceram, para que seja possível articular a simbiose entre os registos e a história que graças ao Major Leonardo chegou aos nossos dias, que permite urdir este retalho que se espera possa ajudar a perpetuar a história do barco “São João”. E reconhecer penhoradamente ao Major Leonardo todo o seu esforço em prol da terra natal, apesar de ter emigrado em tenra idade e muitas vezes incompreendido na sua luta por recuperar e preservar factos da nossa história. Pessoalmente, considero o Major Leonardo um grande amigo com quem espero desenvolver um conjunto de trabalhos capazes de trazer à luz do conhecimento geral a sua investigação de muitos anos.

Posto isto, vamos com a nossa humilde capacidade compor o retalho que resulta da combinação da história recolhida pelo Major Leonardo e os dados que consegui reunir, graças à prestimosa colaboração do Capitão de Fragata Mendes Cabeças, a quem aproveito para aqui deixar o justo reconhecimento e agradecimento.

No dia 7 de março de 1921, é registado em nome de João (António) Areias[ii], residente na Fajã de São João, com o nome de “São João” um barco com o valor estimado de 400 escudos, a que foi atribuído o número V-4-PE (mais tarde passa a ser VE-4-L). Este João António Areias foi casado com Maria Clementina, filha do fundador da freguesia de Santo Antão, Senhor João Silveira Leonardo e de sua esposa Dona Mariana Clementina e que por afinidade vem assim a ser tio-bisavô do Major Leonardo.

Trata-se de um barco em madeira, com locomoção a remos e vela, destinado ao “serviço de portos e pesca”.

Este “serviço de portos” deixa subentender que este seria o serviço de carga e descarga entre o pequeno porto e os barcos de carga e de passageiros que paravam ao largo, como era comum acontecer ao longo dos portos da costa sul da ilha de São Jorge.

Trata-se de um barco com 6.05m de comprido, boca de 1.37m, pontal de 0.81m e tonelagem bruta de 1.671.

Na história, sobretudo de testemunhos orais, que o Major Leonardo conseguiu reunir basicamente em 1997, junto do saudoso e incontornável Artur Areias Augusto Noronha, neto do já referido João António Areias, este barco teria sido construído cerca de 1890 no logradouro da casa que no Canto do Calhau, é contigua à calçada que dá para o Alcaide, pertencia precisamente a João António Areias. Acrescenta que, no início, o barco era só a remos e vela e foi mantido na Baia da Areia até por o ancoradouro em betão no Porto da Panela ser de 1941, zona que se segue à dita casa, e era usado para pesca e para transportes ao longo do sul da ilha de São Jorge e também para o Pico.

Apesar do interregno entre a provável data de construção e o registo do “São João”, as versões confirmam-se mutuamente. Nem podemos estranhar que o “São João” tenha tido uma pré-existência ao seu registo.

Continuando a seguir o Major Leonardo, o “São João” foi vendido para o lugar do “Salto Verde” (costa norte da freguesia de Santo Antão), pelo avô do Artur Areias, a Serafim Inácio Teixeira, também conhecido pela alcunha de “Papio” (avô paterno de minha mãe), onde permaneceu na atividade de pescas e fretes, até ser adquirido por João Medeiros que, residente nos Terreiros, levou o “São João” para o porto local, onde permaneceu vários anos.

Voltando aos registos, temos que o “São João” foi adquirido a 27 de maio e registado a 1 de setembro de 1944, por José Medeiros Brasil, marítimo nº. 1650 morador na Fajã de São João, a Serafim Inácio Teixeira pelo valor de 100 escudos e destinado ao tráfego local, situação que aparece averbada em 30-3-1942, mas sem se saber quem faz o pedido. Apesar de não haver registo e data de aquisição, é de aceitar que já tenha sido Serafim Inácio Teixeira, considerando que terá adquirido o barco antes de 7 de outubro de 1936, data de falecimento de João António Areias ou então pode a data de 1942 ser indicativo da mudança do “São João” do Salto Verde para os Terreiros.

Há aqui alguma confusão entre o meu José Medeiros e o João Medeiros do Major Leonardo, contudo por informação do Henrique Manuel Carvalho, o José Medeiros, seria da freguesia das Manadas, mas havia casado na Fajã de São João com a D. Madalena Reis, irmã do mestre Artur Reis.

Com José ou com João, parece que o “São João” foi mesmo para os Terreiros e, onde durante o tempo da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), “alegadamente” o “São João” reabastecia, com produtos alimentares, submarinos alemães a altas horas da noite, no canal entre São Jorge e Pico.

Em 15 de julho de 1947, é adquirido e averbado em 2 de fevereiro 1948 a favor de Alexandre Silveira Miguel, morador no Sanguinhal (costa norte da freguesia da Ribeira Seca) que ao emigrar para os Estados Unidos da América terá deixado o barco a seus sobrinhos. Ainda tivemos oportunidade de observar nesta localidade as ruínas daquela que foi uma casa de barco. Terá sido aqui o albergue do “São João” enquanto andou pela Fajã do Sanguinhal?

Pelos registos, sabemos que em 3 de junho de 1957 foi registado a favor de Manuel Luís Matos e em 29 de março de 1963, em nome de Miguel Silveira Miguel, morador na Fajã do Sanguinhal, e destinado à pesca local. Não sabemos se estes são sobrinhos do Alexandre Miguel, mas tudo indica que o “São João” se terá mantido pelo Sanguinhal até que, em 11 de junho de 1974, é averbado a favor de Artur Reis A. Noronha, neto de João António Areias e igualmente residente na Fajã de São João, a partir de onde continuou na pesca e no tráfego local, chegando mesmo a fazer viagens para alem do Pico, às ilhas da Terceira e do Faial. Pelo último registo que dispomos, foi por esta altura que passou a dispor de um motor EFI 10HP.

Para arrematar o nosso retalho, seguimos a narrativa do Major Leonardo: – Terá sido, também, durante esses tempos, que o “São João”, “alegadamente”, participou no transporte de “contrabando” de produtos, como a aguardente, ferro, carvão, etc., do Pico para São Jorge, para bem de evitar o pagamento de despacho alfandegário.

Em 1983, o barco foi vendido ao Sr. João Luís Gomes Silveira Gonçalves que, entusiasmado o recuperou com o seu cunhado Jorge Nunes Azevedo, e mais tarde transferiu-o para o porto da Calheta.

Em 1997, o “São João” foi comprado pelo Major Leonardo que o guardou no Cruzal, freguesia de Santo Antão, com intenção de o doar como peça de museu, como aconteceu em 2014, para assim manter viva a sua memória.

Nesta altura, o “São João” é o barco mais antigo da ilha de São Jorge, provavelmente até dos Açores, contando com mais de 130 anos.

Ao longo desta “aventura”, o “São João” aguentou maresias e tempestades, atravessou os tempos com resiliência, ao serviço de múltiplas gerações, nascendo no século XIX, atravessando o século XX e esperando que neste século das tecnologias sejamos capazes de o conseguir fazer regressar à Fajã de São João, onde nasceu e agora ali merece eternizar-se na reforma para conhecimento dos visitantes e dos jovens. Para compreenderem de como os homens da Fajã de São João foram capazes de, no logradouro de uma casa, construir uma embarcação que correu meio mundo e resistiu por mais de 100 anos. E que graças aos esforços do Major Leonardo e através da Associação “O Cachalote” pode aspirar a regressar à Fajã de São João, onde a imaginação de muitos não deixará de perceber que se o “São João” pudesse falar quantas e quantas histórias teria para contar!!!

Para concluir, um apelo às autoridades que possam ajudar a Associação “O Cachalote” a concretizar esta última missão do “São João” para continuar ao serviço de todos.

Proximamente esperamos poder compor mais alguns retalhos para a história de outras embarcações ligadas à Fajã de São João, como o Espírito Santo, o Santo António, o Voador, o Noémia e a Flor do Topo. Agradece-se qualquer informação/ fotos sobre estes ou outros barcos que tenham aqui servido e que pode ser enviada para saojoao11@gmail.com.


[i] O Major Leonardo nasceu a 8 de março de 1949 na Presa do Cruzal, Santo Antão, São Jorge, Açores onde frequentou a escola primária e auxiliava no trabalho da agricultura. Aos 11 anos emigra para os EUA. Em Modesto, na Califórnia frequentou a Escola Primária, o Liceu e a Universidade, trabalhando ao mesmo tempo na leitaria da família.

Após receber a licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade da Califórnia de Stanislaus, foi admitido na Escola de Oficiais Aspirantes dos Fuzileiros Navais em Quantico, Virgínia, recebendo o grau de Alferes, em dezembro de 1972. Após completar o curso Básico de Oficial com Especialização em Infantaria, foi transferido para a Primeira Divisão em Campo Pendleton, Califórnia, como Comandante de vários Pelotões de Infantaria e como Imediato da Companhia de Comando e Serviços e outra de Infantaria, sendo promovido ao posto de Tenente.

Em 1976 foi transferido para o Centro de Treinamento de Recrutas em San Diego, onde serviu como Comandante. Em 1978 foi transferido para a Argentina, onde serviu com a Infantaria da Marinha Argentina e foi promovido a Capitão. Em 1979 foi transferido para Okinawa, no Japão, onde serviu como Comandante de companhia. Em 1980 foi transferido para a Segunda Divisão em Campo Lejeune, Carolina do Norte, onde serviu como S-4 (Logística) no Estado Maior de um Batalhão de Infantaria de Forças de Desembarque que inicialmente operou no Mar Mediterrâneo e mais tarde atravessou o Canal Suez onde também operou no Oceano Indico. Após esta comissão serviu como S-3 (Treino e Operações) no Estado Maior de um Batalhão, servindo depois como comandante de uma Companhia de Infantaria destacada para as Caraíbas e para o Canal de Panamá, e também comandou o Destacamento de Fuzileiros Navais da UNITAS.

Em 1982 foi transferido para o Brasil onde serviu com os Fuzileiros Navais do Brasil, e foi promovido a Major. A seguir foi destacado por um breve período para El Salvador. Em 1985 foi transferido para o Campo Lejeune, tendo ali servido no G-3 (Treino e Operações) do Estado Maior e como Comandante das Companhias Bravo e da Polícia Militar. Em 1989 foi transferido para o Centro de Treinamento de Recrutas em Parris Island, Carolina do Sul, onde serviu a princípio como Oficial Encarregado de um Grupo de Treinamento que se deslocou para a Colômbia, e posteriormente no G-3 como (Oficial de Operações) no Estado Maior.

O Major Leonardo completou o seu Mestrado em Administração de Recursos Humanos com a Universidade de Pepperdine e graduou das seguintes escolas militares: Oficiais Aspirantes; Treino Básico de Oficiais; Guerra Anfíbia; Rangers (Comando); Paraquedista; Empacamento de Paraquedas; Mergulho; Tácticas de Guerra na Selva; Comando e Estado Maior; Paraquedismo de Queda Liver; Mestre de Salto e Academia de Polícia Militar.

Condecorações Recebidas: Medalha de Mérito; Fita Conjunta de Unidade; Fita de Louvor de Unidade (quatro vezes); Medalha Expedicionária; Medalha de Defesa Nacional (duas vezes); Medalha de Serviços Humanitários; Fita por Destacamento em Serviço no Mar (duas vezes); Fita por Serviço no Ártico; Fita por Serviço no Estrangeiro (quatro vezes); Distintivo como Perito em Tiro com o Fuzil (cinco vezes); Distintivo como Perito em Tiro com a Pistola (sete vezes); Insígnias de Paraquedismo e Mergulho.

Em 1992, após mais de 20 anos de serviço, o Major Leonardo encerrou a sua carreira militar nos Fuzileiros Navais.

                Entretanto tem viajado, as saudades da terra natal levaram a uma longa permanência na ilha de São Jorge, onde ajudou, gratuitamente, muitas pessoas a resolverem situações de titularidade de propriedades, mas é sobretudo na procura de preservar a nossa história e património que se dedica empenhadamente, não só enquanto esteve na ilha mas desde sempre e onde quer que pudesse reunir elementos para compor essa obra que se espera um dia lhe faça justiça. [1] João António Areias (n:+- 1850/ f:7-10-1936), filho de António José Nunes cc Ana Vitorina Areias,  casou com Maria Clementina Areias (n: +-1865/ f:25-8-1934/ filha de João Silveira Leonardo cc Mariana Clementina de Azevedo). Seria assim genro do fundador da freguesia de Santo Antão.

Nota acrescentada após correção da data de aquisição e que resulta do comentário em artigo publicado na Rádio Ilhéu, do Senhor Jorge Azevedo a quem agradecemos e aqui transcrevemos o referido comentário por nos parecer que complementa um pouco mais a vida do “São João”.


(Jorge Azevedo, Facebook do Grupo Fajã de São João, 24 de maio de 2022) – “Apenas uma pequena correção. O São João foi “vendido” ao Sr. João Luís em 1983 e não em 1993. Era nosso costume (o João e eu) passarmos os fins de semana na Fajã de São João, e a primeira casa onde sempre parávamos era a casa do Mestre Artur. Na sexta feira a noitinha, quando chegávamos, a Senhora Melania tinha sempre uma jantarada a nossa espera. Isto não foi durante meses, mas sim durante anos.

Já há dias que o Mestre Artur nos andava a incitar a comprarmos o São João, pois não queria que acabasse ali, na furna, a decompor-se em achas para o lume. Ao fim de algum tempo, lá consegui convencer o João a ficar com o barco, e claro, o João ficou com ele na condição de eu o ajudar a reconstruir o barco. E no meio de uns copos e uma boa jantarada, lá aceitamos a incubicão do Mestre Artur. Se não me engano começámos no fim de semana seguinte, depois de trazermos o que necessitávamos. O projeto, se não estou em erro demorou cerca de 4 meses.

O João encarregou-se do motor FI de 10 cavalos, um só cilindro, preto e ferrugento, enquanto eu, como neto de carpinteiro, me encarreguei das madeiras. Não me vou adiantar, mas em abono da verdade diga-se que o São João ficou um primor. Quando o Mestre Artur viu o barco, ate as lagrimas lhe vieram aos olhos. E que para homem do mar, um barco tem sempre algo…que não se pode explicar. Chegou finalmente o dia de irmos fazer o teste. Era um Domingo, nunca mais me esqueço, e depois de prepararmos tudo (a excitação era de meninos pequenos a quem se da um brinquedo), lá apareceu o Mestre Artur para dar as suas explicações de como arriar um barco a maneira. Perguntava-nos quase ininterruptamente: rapazes não se esqueceram de nada? Ao que respondíamos que estava tudo a “modos”. E lá fomos, devagarinho, a medo, lançar a água o São João. O plano era sair do porto da panela, e virar para a baia da areia, dar a volta e regressar.

O Mestre Artur lá estaria, em cima do cais para nos ensinar a varar. Não demoramos muito tempo, e o Mestre Artur já o sabia, como só um sábio homem do mar o pode saber. Nem sequer tínhamos chegado a baia da areia, e eu, noto os pés molhados. Como que em pânico digo em voz rápida: – Ó João, o barco está a meter água!! O que o João confirmou depois de levantar um dos sobrados. Demos a volta o mais rápido possível e, quando já íamos bem, não é que o FI falha. E não havia remos, pois tínhamo-nos esquecido deles dentro da furna. Estávamos bem perto do cais e foi isso que nos valeu. Imaginem que não se sabe nadar e se entra numa coisa destas. Claro que não falo do João. Mas naquele tempo, a juventude era outra. Não havia medo de nada, pelo menos por fora. Enfim acostamos e o Mestre Artur deu-nos as instruções para varar o barco.

Depois de estar em terra diz-nos: – “ó rapazes então não se calafeta o barco?” Nunca em meus dias poderei esquecer a nossa cara e dissemos ao Mestre Artur como nos tinha deixado ir para o mar com o barco daquela maneira ao que ele respondeu. De hoje para o futuro tenho a certeza de que nunca mais se esquecem. E na verdade assim aconteceu. O meu querido amigo João teve ainda muitas aventuras com o São João, que eu, infelizmente perdi, pois, parti para outras paragens. Ficou-me a saudade de um amigo como não tive outro. Ao saudoso Mestre Artur, um obrigado sentido pelo que teve a paciência de nos ensinar.”

Mauricio De Jesus
Maurício de Jesus é o Diretor de Programação da Rádio Ilhéu, sediada na Ilha de São Jorge. É também autor da rubrica 'Cronicas da Ilha e de Um Ilhéu' que é emitida em rádios locais, regionais e da diáspora desde 2015.