OPINIÃO | Pelos Caminhos do Destino: a nossa diáspora na obra de Eduardo Mayone Dias, por Diniz Borges
No último simpósio Filamentos da Herança Atlântica, antes do mesmo regressar em sistema digital em 2021, ou seja no ano de 2003, há 20 anos, lançou-se aqui em Tulare, no centro da califórnia A Presença Portuguesa na Califórnia do Professor Doutor Eduardo Mayone Dias. Obra que, duas décadas mais tarde, continua a ser um livro importante de um académico que dedicou uma grande parte da sua vida ao estudo dos portugueses e seus descendentes em terras americanas, mais concretamente nos estados da Califórnia, no Hawai e de uma forma geral no oeste americano. Vale a pena revisitar este livro pelo valor histórico que tem, e pela tradução em inglês, para a qual tive o prazer the contribuir. Quer no original, quer na tradução, este livro precisa de ser revisto, ampliado até aos dias de hoje e republicado. Vejamos pois o que que se pode ler e aprender com A Presença Portuguesa na Califórnia.
Antes, permitam-me uma breve passagem pela vastíssima obra do saudoso Eduardo Mayone Dias. Depois de em 1975 ter publicado a tese de doutoramento Menéndez Pelayo e a Literatura Portuguesa, com a chancela Biblos de Coimbra, este distinto catedrático, jubilado da Universidade da Califórnia em Los Angeles, que infelizmente nos deixou a 24 de abril de 2021, com a bonita idade de 94 aos, lançou, ao longo da sua viada académica, uma série de livros sobre as nossas comunidades portuguesas e que merecem não só ser lidos pelos dados históricos que fornecem a cada leitor, mas ainda pela prosa escorreita, o estilo subtil e delicado com que o Professor tratou cada um dos detalhes que nos contou. As suas crónicas, os seus ensaios, são mais do que simples relatos de ocorrências ou de pessoas. Cada frase é trabalhada e cada crónica ou ensaio é uma obra de arte. A arte de bem contar. Miguel Torga disse algures que “descrever é fácil, escrever é difícil”. A obra do Dr. Mayone Dias é, toda ela, um exercício de belíssima escrita que nos deixa mais ricos e ao fim e ao cabo é dessa riqueza humana que se faz o humano.
Crónicas das Américas em 1981; Cantares de Além-Mar em 1982; Coisas da L(USA)lândia em 1983; A Literatura Portuguesa na Califórnia (separata da revista Arquipélago da Universidade dos Açores) em 1983; Cem Anos de Poesia Portuguesa na Califórnia (co-autor com o Professor Doutor Donald Warrin) em 1986; Novas Crónicas da Américas em 1986; Portugueses na América do Norte em 1987; Falares Emigreses, uma abordagem ao seu estudo em 1989; Crónicas da Diáspora em 1992; Escritas de Além-Atlântico em 1993; O Meu Portugal Antigo e Distante em 1997; Misclânea Lusalandesa em 1997; Portugal’s Secret Jews, The End of an Era em 1999; Criptojudeus Portugueses, o fim de uma Era (edição bilingue) em 1999; Portugueses na Guerra do Vietname (co-autor com Adalino Cabral) em 2000 e A Presença Portuguesa na Califórnia em 2022.
Uma vasta obra que reflecte a dedicação que o Professor Doutor Eduardo Mayone Dias teve pelas comunidades e pelas ligações Portugal/Diáspora, e de uma fomra particular pelos Açores. Tal como afirmou o Professor Doutor Onésimo Teotónio Almeida, catedrático da Universidade da prestigiosa universidade Brown, numa alocução feita no sul da Califórnia a propósito de uma homenagem feita ao Professor Mayone Dias em 1985 e mais tarde publicada no livro L(USA)lândia a décima ilha: “a obra de Eduardo Dias é uma excelente prova de que, afinal, a cultura é algo vivo. É de que, se é passado, é também presente, pois as duas dimensões não se excluem.”1 Em todos os livros de Eduardo Mayone Dias encontra-se retratado o seu empenho em dignificar as vivências portuguesas em terras americanas. Ele que no meio da cosmopolita cidade de Los Angeles, leccionando e investigando num das mais prestigiosas universidades públicas dos Estados Unidos, não se fechou numa redoma, pelo contrário, viajou pela Califórnia lés-a-lés recolhendo dados sobre as nossas comunidades. Tal como foi escrito no livro inserido no trabalho “Abraço Verbal a Eduardo Mayone Dias” inserido no livro que já referimos de Onésimo Teotónio Almeida “…na comunidade portuguesa, Eduardo Dias é um homem simultaneamente dela e da Universidade. Ele mantém sempre escancaradas as portas que vão de um mundo ao outro…da minha parte, não conheço na história da comunidade portuguesa nos Estados Unidos professor universitário nenhum que tanto e tão bom tenha feito por essa comunidade. A sua obra está aí a desafiar quem por mera hipótese queira verificar empiricamente esta minha afirmação.”
São muitos os seus companheiros do ensino e da escrita que ainda hoje admiram a obra deste académico e tal como eu, tem muitos inábeis aprendizes da vida que consultam, com muita frequência os seus estudos. Não há, nos Estados Unidos, quem no campo universitário não conheça o nome e o trabalho que este distinto professor desempenhou em prol das gentes portuguesas, e particularmente açorainas na Califórnia. É impressionante notar o seu compromisso perante as vivências dos portugueses, e seus rebentos, em terras do Eldorado, assim como extraordinária admiração que a comunidade, desde o político ao vaqueiro, do professor ao empregado fabril, lhe têm. É que tal como afirmou o critico literário Vamberto Freitas no prefácio para o livro Miscelânea Lusalandesa: “A esta quase incrível persistência e dedicação à historia e registo da actualidade dos Portugueses na Califórnia, junta-se qualidade como uma natural capacidade de empatia que Mayone Dias sempre demonstrou pelo grupo e, ao mesmo tempo, a ausência de qualquer condescendência ante o que ele entende ser defeitos ou meras fraquezas colectivas nossas.”
A Presença Portuguesa na Califórnia, publicado pela, infelizmente extinta editora Peregrinação, do escritor José Brites, é um livro sobre a história dos portugueses na Califórnia. Mais do que uma colectânea de crónicas, que do professor Dias seriam uma delícia, este livro dá-nos, em 124 páginas, a história das gentes portuguesas no gigantesco estado da Califórnia. Começando com um trabalho intitulado “Os primeiros tempos: presenças fugazes” onde percorremos os primórdios da nossa presença desde João Rodrigues Cabrilho a Sebastião Rodrigues Sermenho, passando para “Os primeiros emigrantes” no qual encontramos a história de António José Rocha e a sua vinda em 1814 até ao baleeiro jorgense Joseph Miller (José de Sousa Neves) que à Califórnia chegou por volta de 1836, ao ensaio “A emigração em massa” que nos relata em prosa de quem sabe penetrar os labirintos da escrita, as sucessivas ondas de emigração para este estado do pacífico onde hoje, segundo os melhores cálculos, residem perto de 340 mil portugueses e luso-descendentes, quase todos com raízes nos Açores.
Prosseguindo a leitura deste pequeno/grande livro de história, nem que os livros se medissem aos palmos ou ao peso, encontramos a nossa experiência e o nosso contributo nas industrias dos laticínios, da baleagem e da pesca do atum. Há um capítulo dedicado às festas sociais da nossa comunidade, desde o espírito santo ao carnaval, passando pelo fenómeno recente (da última década) das touradas, de praça e à corda, que mobilizam milhares de pessoas em todo o Vale de São Joaquim e no sul da Califórnia, mais concretamente nas cidades limítrofes de Los Angeles: Artesia e Chino, assim como em uma ou duas ciades da zna da baiá de São Francisco, particularmente em São José e Newark.
Há um capitulo dedicado ao movimento fraternalista, as sociedades fraternais que ainda movimentam milhões de dólares de poupanças e investimentos da comunidade e que continuam a ser uma importante parcela da vida social das nossas comunidades. Com raízes profundas na segunda e terceira gerações, as sociedades fraternais são de suma relevância para a ponte que todos queremos que se estabeleça entre as gerações emigrantes e aqueles cujos pais, avós ou bisavós um dia, por necessidade, emigraram dos Açores e plantaram raízes na terra prometida.
Um dos capítulos mais aprazíveis é o que o Professor dedicou ao fenómeno da mistura dos dois idiomas no linguajar das nossas comunidades. O “portinglês” é um ensaio que explicita as razões destes vocábulos e a riqueza dos mesmos. Vistos em tempos idos como algo depreciativo, tratados em Portugal e nos Açores pejorativamente, foi o Porfessor Doutor Eduardo Mayone Dias que sempre lutou, com todo o rigor académico, e patenteou perante os puristas de todos os “Terreiros do Paço” que a utilização destes vocábulos no discurso quotidiano das nossas gentes era, e é, indicador do poder de adaptação dos emigrantes.
Dedicando um longo capítulo à “comunicação social de expressão portuguesa” o autor mostra-nos, ainda mais esta vez, a tal empatia que Vamberto Freitas nos falava. Um estudioso da nossa comunicação social e um colaborador fiel da mesma, Mayone Dias sempre colaborou nos jornais, nas rádios e nas televisões das nossas comunidades. Muitos dos seus artigos, dos seus ensaios, coleccionados em vários dos seus livros, viram primeiro a luz do dia em jornais da Califórnia, da Costa Leste, do Canadá e claro também de Portugal continental e dos Açores. Nos momentos de pujança e de contratempo as crónicas do Professor sempre brilharam nas páginas da nossa imprensa. Nos 16 anos que fiz rádio nas nossas comunidades, nunca me recusou uma entrevista, um comentário, uma conversa. E foi ainda o responsável pelo guião que conduziu a produção videográfica de David Martins “Os Portugueses na Califórnia.” Daí que o texto sobre a comunicação social seja um dos mais enriquecedores desta história dos Portugueses na Califórnia.
Outro capítulo deslumbrante é o que dedica à nossa literatura de expressão portuguesa neste estado. Não tivesse sido ele um dos responsáveis pelo seu estudo durante tantos anos! Desde a literatura de cariz popular aos escritos mais eruditos, Mayone Dias, dá-nos um retrato fidelíssimo das narrativas dos portugueses nesta parcela norte-americana. E termina, muito ao seu estilo de observador eminente: “E o futuro? É evidente que esta literatura oferce um carácter intrínseco e de considerável efemeridade, já que é produzida por e para o núcleo transplantado. A ser interrompido o fluxo migratório, ficará inexoravelmente condenada a tornar-se peça de museu.”
Já na parte final deste livro há “Um Balanço Geral” em que o escritor e estudioso das nossas comunidades e da vida, fala do que fomos e somos. São três páginas de prosa empolgante convidando os leitores a reflectirem as vivências e o futuro, a curto e longo prazo, da nossa presença neste estado, e a tal metamorfose que todos, aqueles vivem e se interessam pelas nossas comunidades, andámos a falar já lá vão muitos anos. E é nesta prosa sadia que termina, afirmando: “Será difícil prever por que trajectória enveredará a emigração portuguesa para a Califórnia. Nas últimas décadas as chegadas diminuíram substancialmente. A manter-se este decréscimo será pois de conceber um envelhecimento da comunidade e um progressivo domínio da vida social por uma geração de luso-descendentes. Não é porém de crer que com facilidade desapareça a tradição cultural que os portugueses trouxeram a essa região e que tão vigorosamente tem marcado a sua presença por mais de 180 anos.: Acrescente-se, agora com praticamente 200 anos de história.
As últimas páginas de A Presença Portuguesa na Califórnia são de uma riqueza prodigiosa para a nossa história de comunidades portuguesas neste estado banhado pelo pacífico. Primeiro apresenta-nos uma cronologia (1542 a 1999) da nossa presença com os principais acontecimentos que marcaram as nossas comunidades, segundo, as bibliografias (especial e geral) são documentos riquíssimos para os arquivos comunitários.
Daí que se recomende a leitura deste livro e em boa hora a tradução que foi publicada pela Portuguese Heritage Publications of Califórnia. Uma republicação (reformulada e adpatapada aos dias de hoje) em língua portuguesa é importantíssima para uma geração que ainda consegue ler em português, para os estudos das nossas comunidades nas universidades americanas e portuguesas, para as bibliotecas em Portugal onde devem estar as obras de quem nas comunidades, corajosamente, ainda escreve em português para que a nossa língua sobreviva, mais algum tempo, a fim de registar, com todo o rigor, os nossos feitos em terras americanas e estabelecer a tal ponte que todos queremos entre a terra de origem e as comunidades. Em português ainda, porque tal como outras obras da nossa emigração, este livro deveria ser leitura obrigatória pelos políticos portugueses antes de visitarem as nossas comunidades ou dos diplomatas antes de serem desatcados, ou até mesmo cônsules honorários, antes de serem nomeados. E em inglês, também numa edição amplificada, porque sem ser maçador, este pequeno/grande livro traça a história dos portugueses na Califórnia, a história, que muitos luso-descendentes, desconhecem e estão apetitosos para conhecê-la. A história que deve estar nos currículos dos estudos étnicos nas universidades e em breve nas escolas secundárias através deste mega estado.
Confesso que tenho saudades do Professor Doutor Eduardo Mayone Dias, da sua escrita, das nossas conversas, da sua dedicação à nossa comunidade, da compreensão que já há duas décadas atrás tinha de uma comunidade em mudança. Confesso que ainda tenho, como dizia meu pai: “uma espinha atravessada na garganta” por nunca os Açores o terem reconhecido. Tantas insígnias que andam por aí sem se saber porquê! Tantas até mesmo postumamente. O esquecimento dos Açores é um pecado que jamais perdoarei (não que isso interesse os poderes públicos, de todos os partidos, particularmente o meu), assim como o esquecimento dentro da comunidade. Confesso que tenho pena de o seu espólio, que doou, (algum, não todo) a uma organização comunitária não ter sido cuidado e de não se saber onde estará o resto. Há coisas que não podemos mudar, há outras que são tarde demais para retificar, mas a obra dele, aqui está e na Bruma Publications do PBBI da Universidade Estadual da Califórnia em Fresno, (organização que ele teria acarinhado e muito me teria ajudado) queremos, com a colobração de quem nos quiser ajudar, republicar alguns dos seus livros, com as devidas adaptações para o século XXI e para a diáspora e a região e o país que somos, ou que deveríamos ser.
Na obra de Eduardo mayone Dias estão os passos do nosso valioso contributo para o multiculturalismo americano e para a fértil diversidade do estado da Califórnia.
*inspirado numa frase do poema Memória de Pedro da Silveira